26 de novembro de 2012

o ontem

Eu o procuro em outros homens.

Chuva de verão. 
Cumprimentam-se meio sem jeito. Ele usa uma camiseta listrada, ela, um vestido floral. Sorriem e entram no apartamento. Bah, que lugar massa, tu mora bem, hein? Ela o guia em um tour rápido pelos cômodos. Sentam na varanda. Um colchão se escora na parede sob um toldo, mais ou menos protegido da chuva. O que esse troço faz aí? Eu gosto de deitar aqui no sol. E de noite também. Agora no verão é tri bom. Ficar olhando pro céu. Mas às vezes os vizinhos aparecem na janela. Ele ri e pede para ver as músicas no ipod sobre a mesinha. Tu quer beber alguma coisa? Esqueci de oferecer. Tem cerveja e tem um champanhe que sobrou do ano-novo. Falava mais do que de costume, mas não estava propriamente nervosa. Sobem com as taças e a garrafa até o terraço. Ela posiciona a garrafa sobre a mureta lateral e se escora, apoiada nos quadris. Ele circula, olha para baixo, olha para frente, inspeciona o lugar e volta na direção dela. Se aproxima, acaricia o ombro dela com a mão esquerda, estica o braço direito para soltar a taça.

O físico, as roupas, os gostos, o jeito de falar e mexer as mãos enquanto fala.

Madrugada.
Cara, eles fumam Black.
Ele rouba um e se dirige à porta.
Ah, que graça tu. E o meu?
O sorriso.
Sempre o sorriso.

Eu sei que você não é uma pessoa comum.

Essa pode ser a nossa música, se a gente puder ter uma música. Repousavam sem perspectiva sobre a cama desarrumada no apartamento dela. Tarde de sábado. O ipod conectado à pequena caixinha de som tocava as músicas aleatoriamente. Muitas tardes se resumiam a isso. Ouvir música, nenhum objetivo, passando as mais chatas - essa não, essa não, deixa, volta naquela, não -, ela deitada sobre o peito dele, ele escorado no almofadão xadrez. Era capaz de passar a tarde naquela posição, o braço esquerdo levantado, servindo de apoio extra à cabeça, a mão direita habilmente trocando as músicas no aparelhinho. Ela ficava deitada, mexendo nos botões da camisa dele, desabotoando, abotoando de novo, enfiava os dedos no pequeno bolso do lado direito, fazia o indicador e o dedo médio caminharem sobre o peito que subia e descia lentamente. De repente levantava rápida, ajoelhava-se na cama ao lado dele, empolgada com alguma ideia ou pensamento, falava, ria faceira, voltava aos poucos para a posição original até se acomodar de novo, ele baixava o braço que segurava a cabeça e a envolvia, apertando bem forte.


Menos vontade de voltar do que só a saudade.

Via-a agora: blusa preta, suada, pulando, aos berros, enquanto quatro figuras de preto a poucos metros comandavam um show apoteótico. Percebe que está sendo observada e vira o rosto, sorriso aberto, mais feliz do que jamais a havia visto. Ela nunca teve receio de distribuir sorrisos. Melhor do que andar de cara fechada, espanta a felicidade, dizia. Mas ali não era um sorriso de hábito ou simpatia. O ápice de uma felicidade que se experimenta poucas vezes na vida. Ao vê-la assim, dançando e balançando os cabelos sem se importar ao som da banda que ambos tinham no topo de seus top5, não era difícil lembrar por que se apaixonara. Você só pode imaginar o que perde. O show de uma década. Cara, tu não tem ideia. A mulher que não é mais sua.

O som da voz e o perfume. 


Nos apaixonamos pelo cheiro. 

O moletom emprestado. 
O travesseiro usado. 
O nome de um na voz do outro.
Vem cá.

Não posso te fazer feliz.

Nunca souberam lidar com eles próprios, era de se esperar que não soubessem lidar com os outros. Era compreensível. Embora não fosse justo - a vida não é justa. Mesmo que sentissem falta, e em momentos específicos e esparsos viesse uma lembrança, a certeza de que nunca encontrarão outra pessoa que pense do mesmo modo. A intimidade dos casais que não precisam falar em contraste com o acúmulo do não dito que um dia começa a pesar e despenca sobre os dois. Não vamos nos enganar. O que quer que tivemos já não temos mais. Uma saudade latente que vai te acompanhar para sempre. Eu não quero depender assim de alguém.


Um rosto na rua que parece ser o dele.

Amores insuperáveis a vida não devolve. Vem com eles uma réstia da eternidade: nenhum outro em nenhum tempo será possível. Uma árvore cuja sombra do último momento em que esteve de pé permaneceu gravada no chão.

- Tu nunca vai ser feliz assim.

- Eu sei.

29 de outubro de 2012

os carros

Pense nos carros.
Pense em um modelo de carro.
Pense em quantos deles há em uma cidade.
Pense em todos os carros de uma cidade.
Pense no barulho dos motores desses carros.
Pense nas buzinas.
Pense que em cada um desses carros ouve-se algo diferente.
Pense em todas essas músicas tocando ao mesmo tempo.
Pense nas pessoas que conversam ou gritam umas com as outras dentro dos carros.
Pense em quantas pessoas dentro de carros existem em uma cidade.
Pense nas vozes falando sem parar ao mesmo tempo.
Pense nos motores de todos os carros fazendo barulho ao mesmo tempo e ao mesmo tempo em que as pessoas dentro desses carros falam enquanto ouvem música.
Pense na confluência de todos esses sons.
Pense nas bocas se movendo, pense na fumaça que sai pelo escapamento, pense no calor.
Pense nas cores do semáforo, pense no som de uma freada, pense no som de uma batida.
Pense nos gritos.
Pense no caos.
Pense que essa é a nossa vida.

Eu nunca parei para pensar.
Na vida que já foi, na vida que existe, na vida que poderia ser, na vida que será. Talvez realmente não exista um homem que não seja, em todos os momentos, tudo o que foi e tudo o que será. Talvez nós sejamos mesmo donos da eternidade. Nós só não sabemos disso.

Meu coração nunca vai ser o lugar de ninguém. Imaginei que encontraria a felicidade quando encontrasse companhia. Encontrei diferentes companhias em diferentes momentos e descobri que era mentira. Em companhia e infeliz, imaginei que era a pessoa errada, sem saber que não existem pessoas certas e pessoas erradas. Sem companhia e infeliz, imaginei então que encontraria a felicidade quando eu fosse só eu - sem ausências, sem vazios, sem tristeza. Consegui e descobri que isso também era falso. Quis ainda acreditar que fosse coisa da minha cabeça, como costumava ser tantas vezes, e depois eu sentia em mim toda a imbecilidade humana – mas a gente sabe quando não é, quando é pra valer, quando acabou de verdade, mesmo que no ano seguinte a gente volte a tentar, não, não dá certo, acabou.

Amei tudo com o triste amor que inspiram as pessoas que não nos amam, com o triste amor que inspiram, nas pessoas que não nos amam, os fracassos, as doenças, as manias. Chorar até sentir dor de cabeça, dor nos olhos, dor no corpo inteiro, até não aguentar mais, até desmaiar sobre a cama na esperança de que desfalecer amenize a dor, mas acordar não vai ser melhor. Chove todos os dias e quando o sol aparece as cores continuam as mesmas. O que eu era morreu ali, tarde da primavera. A atenção e o carinho das pequenas paixões momentâneas agora não são o bastante, não me fazem abrir braços e sorriso e achar a vida linda outra vez. A vida nunca foi linda.

Mais rotina, menos novidade. Ser dá trabalho. Nos delegaram a função de existir, mas existir é demais. É muito. Além ou aquém. Os vizinhos sempre têm algo a dizer, eles falam das seis da manhã às dez da noite, levam a ao pé da letra o horário do silêncio. Não importa os bilhetes que deixam - eles deixam bilhetes nas paredes do corredor porque não falam com os outros. Andam em círculos, felizes.

Meu pai não avisou para não mexer com essas coisas. Ele disse que ninguém quer ficar sozinho, é melhor ter alguém, é isso que faz a gente feliz. Eu caí nessa e dormi e agora não consigo acordar. Não consigo amar e amo. Não quero amar e amo. E se tivesse dado certo? O amor. O que teria sido de nós?

Pense nos casais.
Pense em quantos casais há em uma cidade.
Pense nas mãos dadas, nos beijos, nos sorrisos.
Pense nas risadas e nos cobertores divididos, nos presentes de Natal, no conforto do silêncio.
Pense nas línguas se tocando, nos movimentos de braços, pernas, mãos, bocas.
Pense nas línguas na orelha, nos arrepios sem aviso.
Pense em todos esses casais transando ao mesmo tempo.
Pense nos sons que eles fazem.
Pense nos corpos tão próximos que um está dentro do outro.
Pense no depois.
Pense no cigarro depois do sexo.
Pense nas brigas, nas mulheres que atiram vasos nas paredes, nos homens que dizem que elas são vadias.
Pense em um relacionamento que termina.
Pense nos casais que tentam de novo.
Pense nas lágrimas.
Pense na raiva.
Pense no amor.

Eu nunca parei para pensar.
No amor que já foi, no amor que existe, no amor que poderia ser, no amor que nunca será. E se tivesse dado certo? Há uma solidão terrível em um que faz planos para dois. Qualquer coisa impronunciável, que as palavras não descrevem. Morar juntos, a cinco, dez anos daqui. Ou agora. Nós teríamos livros e cds em pilhas numa praia longe dos carros. Café. Gastaríamos o tempo e o dinheiro que fossem necessários para encontrar um sofá decente. Redes na varanda. Cozinharíamos juntos. O mar. Andaríamos até um lugar que nos satisfizesse e então nos deixaríamos ficar. Enxergaríamos o que somos no outro. Eu nunca parei para pensar, mas nunca vou ter um carro.

17 de outubro de 2012

a lanchonete

Entraram na lanchonete e escolheram uma mesa no fundo. Lanchonete e restaurante. O buffet pequeno na entrada, dezenas de mesas lado a lado, paredes sem cor – e por certo havia uma cor nas paredes, mas daquelas impossíveis, se bege ou se um dia já foi branco, e qualquer que fosse o caso agora era suja, sem nome, e até certa altura as paredes eram azulejadas, e havia ainda, no mesmo nível dos rostos das pessoas sentadas, uma faixa de espelho de ponta a ponta, ninguém olhava realmente para a cor das paredes. Era uma lanchonete barata, grande, e por ser barata e grande estava sempre movimentada, sempre cheia, os garçons na dança incessante entre as mesas, as bandejas eram extensões de seus braços. O melhor do cardápio, que os clientes quase não requisitavam mais, porque clientela fiel sabe como as coisas funcionam, era o xis. Não importava muito o sabor. E foi pelo xis que foram até lá àquela hora, já passava da uma da manhã, outra graciosidade do lugar. Era começo de inverno, fim de outono, se é que existe diferença, e poucas coisas na vida poderiam ter o sabor daquela combinação, caminhar na noite agradavelmente fria e comer um xis de madrugada.
“Tá com fome de quê? De xis, meio xis? Eu tô com fome de xis bacon.” Ela bem sabia que não existia essa de meio xis, meio xis é frescura. Se a fome não é suficiente, pede outra coisa. A dinâmica da alimentação. Três refeições por dia ou refeições de três em três horas. O café da manhã é a mais importante, não, o almoço, nem pensar, a janta. Comida pesada à noite dá pesadelo. Mentira. Feijoada. Lasanha. Churrasco. Carne vermelha e mal passada. O boi pendurado na árvore pelas patas traseiras, a cabeça para baixo, balançando bem de leve. Ele não sabe o que está acontecendo e pode estar olhando para a grama ou para o céu ou para as pernas dos homens ao seu redor quando vem a primeira paulada. E de dentro da casa, "tapa os ouvidos", só se ouvem os guinchos, urros, não são mais mugidos. A cabeça decepada no chão, o corpo sem cabeça ainda pendurado, sangue gotejando sobre a grama, vermelho no verde.
“Um xis bacon e um xis galinha.” A ruína no meio de duas fatias de pão. A vida era boa.
Outro casal, outro casal igualmente jovem, outro casal igualmente sem dinheiro, ocupava uma mesa mais à frente. Como eles, dois numa mesa para quatro. As contas nunca fecham na vida real. Sobra ou falta, os dois que são um, o um que ocupa o espaço de dois, os dez que não valem um, matemática imprecisa, e talvez se não tentassem ajustá-la com toda essa veemência burra a vida poderia funcionar. O casal, o casal da outra mesa, não conversava alto. Pareciam falar amigavelmente, e embora a menina chorasse, os olhos levemente vermelhos, uma lágrima mansa escorrendo, ela tinha talvez o semblante mais tranquilo que alguém naquela situação poderia ter.
“Eles tão terminando”, ele disse.
“Como tu sabe?”
“É só olhar. E ele tá botando o cabelo dela pra trás, tirando a lágrima.”
“Mas ela pode estar chorando por outro motivo.”
“Mas não tá.”
“Como tu sabe?”
“Eu sei.”
E ele sabia. Homens sempre sabem. Não porque sejam mais espertos ou mais sensíveis, eles simplesmente sabem. Nem toda consciência tem ou pede explicação. Tirar os cabelos da frente do rosto de uma menina que chora. Secar as lágrimas dela. Beijá-la na testa. Pouca coisa pode ser pior do que um beijo na testa.
“Ela é bonita.”
Comemoravam involuntariamente um mês de namoro. Um xis bacon, um xis galinha e suco de laranja. O começo e o fim na mesma madrugada, na mesma lanchonete, a duas mesas de distância. Havia certa medida de poesia naquilo tudo. Bobagem isso de poesia, bobagem isso de namoro. Eles não se sentiam à vontade com a palavra. Não houve um pedido, porque pedidos de namoro são bestas. Ninguém quer ou não quer namorar; namora-se. Mas ela era a namorada, ele era o namorado. Já passava da hora de se pensar em algo melhor. Tampouco contavam os dias. Pior do que namoro, talvez só mesmo aniversário de namoro. O que eles têm na cabeça, afinal?
O outro casal levantou. Saíram de mãos dadas. Ele percebeu enquanto ela acompanhava os dois com o olhar. Sabia o que ela pensava porque pensava a mesma coisa.
Ela ajusta a coluna à cadeira.
“Qual o sentido de pensar nisso agora?”
“Ué, tu não pensou?”
“Pensei, claro, mas justamente por isso. Qual o sentido de pensar em como vai terminar quando recém se começou?”
“Não sei. Qual tu acha que é?”
“Nenhum. Boa coisa é que não pode ser.”
“Não é nada, né? Quer dizer, quando acontecer vai acontecer, mas por enquanto não é nada.”
“É.”
“Como tu acha que vai ser?”
“Acho que tu vai ser um boçal e sumir.”
“Eu acho que tu vai ser uma neurótica que vai me fazer ser um boçal e sumir.”
“Tu vai me dar motivos pra ser neurótica.”
“Porque tu vai me cobrar.”
“Cobrar o quê?”
“Atenção, que eu seja mais presente.”
“Tu não vai ser presente?”
“Não.”
“E se a gente terminar agora?”
“Agora?”

16 de outubro de 2012

(n)o final

Todos ligam ou mandam mensagens no dia seguinte. Querem dar uma volta, tomar um café, quem sabe sair de novo. Querem o que sempre querem. Entre uma cerveja e outra, mas invariavelmente sóbria demais, digito meu número em incontáveis modelos de celulares, as luzes do visor misturando-se às da pista. Dou a eles o número correto – por quê? – e nunca respondo.

São todos broncos. Inabilmente, começam a falar sempre as mesmas asneiras e dão a impressão ou a certeza de que nunca se empenharam em conhecer ou tentaram aprender a despertar vontade e interesse. Não são nem semiconscientes da vida. As piadas são infames, os comentários não dizem nada, a voz intrincada é desagradável. E mesmo assim sorrio, respondo, deixo que se aproximem, que me toquem e mesmo que me beijem.

Dançando sóbria entre pessoas bêbadas, minha consciência do entorno não encontra outro caminho senão minha consciência dela própria e me sinto ainda mais sóbria, mais do que em qualquer outra ocasião, mais do que sempre. O álcool que me permito ingerir já não tem efeito algum além do decréscimo no saldo – e então eles passam a me rodear. Nos momentos em que questiono a humanidade, nossa capacidade de sermos mais do que pessoas bonitas ou feias, a existência de um método para se sentir verdadeiramente vivo. O resultado não poderia ser mais desastroso. Devastador. A tragédia das relações humanas notívagas.

Às vezes falo com alguns que, depois, me procuram na internet. Adicionam nas redes sociais, puxam papo, fazem perguntas, e quando vejo não estou em uma conversa, mas em um inquérito. Pacientemente, respondo. Algumas vezes, leio as mensagens na tela e espero uns dias para dizer o quanto ando ocupada, sem tempo para internet. Em outras, simplesmente não falo até que venha a próxima indagação. Eles demoram a desistir, sempre têm uma maneira a mais de importunar. Dou corda para ver até onde vão e até onde eu posso ir. Quanto interesse preciso fingir, quanto desinteresse posso mostrar, o quanto posso ser rude, o quão diretas, ou curtas, ou mentirosas, podem ser minhas respostas – o quão ignóbil eu posso ser e ainda ter um homem atrás de mim – quanto tempo eles levam para perceber.

Nunca aconteceu de valer a pena. Eu me acostumei a um padrão alto – todos que já dormiram na minha cama mais de uma vez são homens que vão além do óbvio. Estabelecemos outro nível de relação interpessoal. Experimentei com eles o gosto de ser o que sou, na maior medida em se pode ser o que se é na presença de outra pessoa. A surpresa de arrepios e batimentos irregulares. Ouvir e falar. Corações calmos. Com o resto, homens que na verdade não são homens, o êxtase é improvável ou impossível. Fica fácil rir, deprimir-se, perder a fé e a paciência, minha xícara transborda e eu sigo enchendo.

Numa noite, um veio até mim e perguntou se eu emprestaria um cigarro. Em algum momento, tirou o chapéu, pôs os cabelos para trás, e eu pude ver o quanto era bonito. “Emprestar?”. “É”, ele disse, “no dia do juízo final eu vou te devolver”. No mínimo profético, o nome dele era Ítalo. O sofá vagou, nós sentamos e falamos sobre linguagem, as potencialidades e as restrições, sobre sensações, sobre como pensamos e traduzimos o mundo, a realidade. As horas passaram, a noite acabou. Ele não pegou meu número, eu não peguei o dele.

(N)o final, é sempre só sexo. Ou nem isso.

20 de setembro de 2012

o patético

- Por que tu não procura alguém num desses sites? Vai que tu conhece um cara decente e se apaixona como nunca antes.
- Até que eu queria, mas eu não vivo num filme.
- Mas pode acontecer. Como tu sabe que não?
- Sim.
- Tipo em Must Love Dogs.
- Aham, daí mês que vem eu te apresento o John Cusack.
- Tá, tá. Mas o que eu perguntei tu não respondeu. Por que não?

E eu respondi que “é, quem sabe numa dessas eu tento” e ouvi meu amigo comentar sobre a série a que assistíamos, jogados no sofá sem qualquer preocupação com a chuva que desabava do lado de fora, já pelo terceiro ou quarto dia. A cidade passava por uma semana caótica, e, para quem aparentemente já veio ao mundo com tendência a não sair do lugar, ficar em casa o máximo de tempo possível não foi uma decisão difícil. Eu sempre soube me acomodar.

Por que eu não tentava? Meu amigo conhecera o namorado assim, os dois moravam juntos há dois anos. A sucessão improvável de fatos que me levou a conhecer meu ex – duas pessoas que escreviam blogs e liam o blog uma da outra sem saber de quem era a autoria até que foram apresentadas por um amigo em comum que não sabiam que tinham – talvez seja um exemplo de que histórias de filmes podem acontecer na vida. Eu já tivera a minha, e esperar que uma segunda sorte desse tipo se manifestasse era no mínimo tolice.

Fora há mais de três anos, e desde então eu não me relacionara com mais ninguém. Acostumara-me de tal forma não à solidão, mas a ser sozinha, que era, àquela altura, difícil imaginar um cenário diferente. Ter de novo uma segunda escova de dentes na pia, roupas masculinas no armário, pelos no sabonete, outra vez dividir a cama, o banheiro, o carro, as contas, a vida. 

- Mas não precisa ser assim.
- Mas sempre acaba sendo assim, tu sabe.

Era medo e era, também, preguiça de outra vez rearranjar minha vida a fim de acomodá-la a uma companhia que, mais cedo ou mais tarde, iria embora deixando a bagunça para mim. Da forma que estou, eu sei viver.

Para algumas pessoas, parece sempre funcionar. Elas encontram novas pessoas e tudo, de novo, funciona maravilhosamente. Para outras, simplesmente não acontece. Sorte ou azar, por ser bonita, não é difícil encontrar homens. Eu durmo na cama deles, eles pegam meu número, ligam no dia seguinte. Mas é uma janela que se fecha depressa, como depressa diminui a minha vontade de passar a noite com esses homens. Sempre imaginei para mim alguém com quem pudesse conversar, e agora, aos trinta, começo a descobrir, a aceitar, que talvez essa pessoa não exista, que talvez eu nunca a conheça. Viver sem amor é estranho, perigoso e uma perda. É difícil acreditar que, tendo só noventa anos para viver, seja possível passar até um terço deles sem amar. Não faz sentido.

Lembro ainda da primeira vez que fui chamada, naturalmente, de mulher. Mulher, não guria, menina, garota, mina. "Você é uma mulher incrível, e se interessa por coisas que te diferenciam das outras mulheres; a maioria delas é exatamente igual", ele escreveu, em inglês, em um e-mail. Woman. Irônico que o primeiro homem a me chamar de mulher tenha sido um homem de outro país. Ou talvez fosse um detalhe a que eu devesse ter prestado atenção. Ele escrevia e viajava muito. Durante o período em que nos correspondemos, morou em pelo menos cinco cidades, cada uma de um estado. Ele levava uma vida que eu também gostaria de ter, e eu deveria ter ido encontrá-lo, como chegamos a imaginar. A faculdade não teria sido uma perda.

Mas eu fiquei, e aqui, ao caminhar, decoro as pedras soltas e os desenhos das calçadas em caminhos repetidos à exaustão, quase milimetricamente. Sozinha, pelo rigor da sorte ou culpa própria.

Alguém já disse uma vez que a humanidade daria um salto se cada ser humano, ao levantar de manhã, olhasse para si mesmo no espelho e repetisse: "Patético. Patético. Patético. Você é patético". Poderia funcionar, não fosse o fato de que somos patéticos demais para admitir, mesmo que só para nós mesmos, o quanto somos patéticos.

11 de setembro de 2012

a poeira

Eu respiro.
Nos cantos, o parquet está coberto de poeira. Como as prateleiras do corredor. Sobre os livros, em cima da geladeira, na estufa fora de uso e no abajur da mesinha.
As células mortas de pele: somos a poeira.
Do pó viemos. Ao pó voltaremos.
Todas as profecias.
Tive vontade de voltar, mas não para ser o que éramos antes; quis que voltássemos para ser o que somos agora. Em algum lugar, nós ainda existimos - porque somos nós, sempre fomos nós. Não eles, não outros: nós.
Tudo o que nunca aconteceu.
A vida.
Essencial e eternamente desencontros.
E tudo era assim.
Centenas de coisas.
O imaginável e o possível.
O abstrato e o concreto.
O mundo e o mundo que eu vejo.
Deixa eu te contar uma história.
Amores platônicos.
Cinquenta anos de futuro sonhado.
Nossa pele formando a poeira que respiramos juntos.
Nosso filho.
Nossa casa na praia.
Muito longe.
A espera ansiosa pelas palavras novas.
Um chocolate e um livro.
Dançar, dançar, dançar.
Toda a superficialidade do mundo.
E no caminho de volta eu poderia fechar os olhos, os passos repetidos nas mesmas ruas, e nas mesmas calçadas das mesmas ruas, o frio de quase todas as madrugadas. As chaves, portas, trancadas, pijama, espelho, demaquilante, escovar os dentes, copo d'água, despertador, dormir. De qualquer jeito, o baile segue. Sinto a tristeza macia, e ela me provoca. E por que não é forte o bastante para acabar com a minha força? E por que eu sou tão forte? E por que não um pouco mais de alegria? E por que não felicidade? E por que ser forte o suficiente para conviver com uma tristeza cínica mas não o bastante para ser feliz? Sentir o que ninguém sabe, na verdade, não é engraçado, não é coisa alguma. Quase sempre é nada, mas às vezes é o amargo que sobe a garganta e dá vontade de gritar eu não sou como vocês, eu sou o oposto de praticamente tudo o que vocês sustentam, vestem e sorriem, eu só estou aqui porque não sei em que outro lugar posso estar, por favor me entendam, por favor me deixem, pelo amor de deus parem de olhar pra mim.
E silêncio.
E o mundo é sempre o mesmo.
E eu respiro.
E eu sou a poeira.
E o chão continua empoeirado.

22 de agosto de 2012

as roupas

Conheci a Alice pela internet. Descobrimos mais tarde, ela via o meu perfil, eu via o dela e éramos stalkers inveterados um do outro sem saber. Depois de trocar algumas mensagens intervaladas, porque os horários não batiam e mesmo nas férias nunca estávamos online ao mesmo tempo, conseguimos conversar pela primeira vez e foram mais de dez horas. Ela era incrível, e tudo o que disse me mostrou uma pessoa ainda melhor do que a que eu havia imaginado. Parecia ter as medidas exatas de solidão e bom humor, de tristeza e ironia. Não se levava a sério, e só por isso tinha todos os méritos. Nunca ficou claro para mim como e por que nos demos tão bem, de onde vinha tudo aquilo o que tínhamos para dizer um ao outro. Mas era fácil falar por trás de uma tela, e foi quando ela me ligou pela primeira vez, numa madrugada, poucas horas depois de ter se despedido na internet, a voz de um rosto que eu ansiava por ver, e nos falamos por quase duas horas, e ela disse meu nome, foi aí que eu percebi que tínhamos começado um relacionamento.

Morava sozinha, e nos encontramos no apartamento dela. Toquei o interfone e logo depois a enxerguei atravessando o hall, de vestido longo verde e sapatos floridos. Os cabelos castanhos, longos e ondulados, eram ainda mais bonitos pessoalmente e o sorriso – ela sorria e algo dizia que alguém com aquele sorriso não merecia sofrer. E eu descobriria, mais tarde, ao vê-la rindo das minhas piadas infames, a melhor das felicidades que já havia experimentado até então.

Passei a viver no apartamento dela tanto quanto na minha própria casa. Era fácil: eu encontrava alguns amigos para beber e lá pelas tantas lembrava que o prédio não ficava longe e ligava avisando, “abre pra mim?”. Ou saía do trabalho e, com preguiça de ir até em casa, ia para lá outra vez, e nós jantávamos e passávamos a noite juntos. Ela não chegou a me dar as chaves, mas eu tinha roupas no armário e uma escova de dentes no banheiro. Vagabundo, matava aulas de manhã, porque ela tinha a melhor cama e o melhor sofá, mas esperava ao meio-dia com almoço. Fazia meus trabalhos lá. Minha mãe ligava para lá quando não conseguia falar comigo no celular. Meus amigos iam lá. Era o nosso canto, afinal.

Uma noite, alugamos Where the Wild Things Are.
“Mas a gente não precisa ir até a locadora, eu baixo aqui rapidinho.”
“Gosto de ver filme na tv.”
Estava escorada no meu peito, o filme acabou e ela continuou em silêncio. Assim que terminei de perguntar o que havia achado, percebi que ela estava chorando e na mesma hora ela levantou do sofá tapando os olhos com uma das mãos e foi para o quarto.
“O que foi? É por causa do filme?”
Conforme me aproximo, ela se encolhe e vira de costas e esconde o rosto de mim. Estendo meu braço ao redor dela, puxando-a para sentar comigo na cama.
“Calma, não precisa chorar, pequena. Por que tu tá chorando?”
Ela retoma o ritmo da respiração e faz uma pausa comprida.
“É porque eu sei que vai acabar.”
Eu a abraço forte e digo que não. Está tudo bem, é bobagem dela pensar nisso.
“Seca esses olhinhos.”
E em questão de dez minutos estamos na cozinha procurando algo para comer. Agindo como se nada houvesse acontecido.

Eu nunca soube como me comportar em um relacionamento. Como e quando estar presente, como responder e corresponder ao carinho – como gostar, em suma. Mas a Alice lidava bem com esses e todos os meus outros defeitos, e é provável que eu estivesse feliz com ela justamente por isso. Porque eu acreditava que ela era o meu tipo de mulher, alguém independente e que não se apegava a tolices como eu ou um relacionamento.

E, ao contrário de mim, ela sabia bem o que queria e fazia o que tinha de fazer. Virava noites terminando os projetos da faculdade se fosse preciso, trabalhava num escritório famoso, não deixava de ir às aulas por bobagem. E ao mesmo tempo era minha companheira em quase tudo. Bebia comigo, não tinha as frescuras de dividir xis ou pegar táxi, gostava dos filmes que eu gostava e das músicas que eu ouvia. Viajávamos juntos, nos dois sentidos, e ela fazia eu me sentir bem. Eu estava feliz, talvez como nunca antes, e se aquela noite não tivesse acontecido possivelmente nada teria mudado.

Depois que a vi chorando por medo de me perder – porque ela ‘sabia que ia acabar’ –, nunca mais consegui vê-la do mesmo jeito que via antes. Alice passou a ser só uma menina. Uma guriazinha boba que ficava feliz por eu chegar sem avisar, que abria um sorriso idiota quando me via e fazia uma cara triste quando eu ia embora, que chorava pela possibilidade de eu não voltar. Cada mensagem que ela mandava era motivo para um suspiro de tédio e ah, que saco, e eu comecei a esnobá-la e quase não ia mais para o apartamento. Sabia que ela estava sofrendo e não me incomodava.

Um dia, quando entrei em casa, minha mãe contou que havia ligado para ela. Meu celular estava desligado, e ela pensou que eu pudesse estar lá. Disse que a Alice estava estranha no telefone, perguntou se tinha acontecido alguma coisa, eu respondi que não sabia, fazia um tempo que não nos víamos, e ela achou prudente que eu fosse até lá, só para ver se a menina estava bem. Era tarde e, ao contrário de alguns meses antes, a ideia de atravessar a cidade para ver a Alice não me agradava. Fui na manhã seguinte. Bati, ninguém atendeu e, já pensando que “bom, ela não está em casa”, girei a maçaneta e a porta abriu. Alice estava dormindo no sofá, e em cima da mesa eu vi um potinho vazio.

“Ah, mas era só o que me faltava”, cheguei a dizer em voz alta, com raiva, antes de começar a sacudi-la e chamar o nome dela. Acordou meio desnorteada e levou uns segundos para entender a situação e me reconhecer na penumbra.
“É isso mesmo? Tu vai tentar te matar agora, é?”, perguntei em tom de deboche.
Ela levantou e ficou me olhando séria. Tive vontade de rir.
“Ah, Alice. Quem te viu e quem te vê, né.”
Eu conseguia sentir os olhos verdes em cima de mim, devorando e consumindo. Ela mexeu o rosto por um instante e quando voltamos a nos encarar eu enxerguei o sorriso da primeira vez que nos vimos.
“Some daqui.”
E minhas roupas ficaram lá. 

19 de agosto de 2012

o álbum

A foto enquadra uma praia quase vazia, de ondas tranquilas e morros ao fundo. O sol está alto e uma nuvem grande se espalha pelo céu. De um lado, a faixa de areia estreita deixa ver os ilhotes da beira e do outro é só o mar. Consigo te imaginar por trás disso, segurando a câmera, de pés descalços, camiseta branca e uma bermuda qualquer.

Mudar pela vontade de nadar, e não poderia haver lugar melhor, porque piscinas não são nada perto do mar. A imensidão azul até o fim. E mergulhar, literalmente ou não, como se as ondas pudessem levar as dores para longe do continente, como se no momento em que se bota o pé na água a vida ficasse na areia.

Olha para mim sério, escorado na parede, a cabeça levemente inclinada. A barba, grande, cobre o queixo e parte das laterais do rosto. Ele sabe o que faz. Não é como os meninos que deixam crescer de qualquer jeito e acreditam ter mais cara de homem por isso. E a diferença é sutil e tão clara ao mesmo tempo: alguma coisa no semblante, na maneira como ele sustenta o rosto. Quando a barba não suja ou estraga a face, esses são os homens.

Não é como se eu fosse uma deslumbrada, que nunca ouviu palavras bem ditas ou que se apaixona por frases bonitas, que nunca esteve frente a frente com quem vale a pena. Mas naquela tarde eu encontrei um eco para o que existe de melhor em mim. Quem acredita na mesma coisa e da mesma maneira e sabe que, sem trazer a imaginação à realidade, a vida seria outra, pobre e vazia.

Segurava o bebê no colo não sem jeito, mas um tanto compenetrado, como se virar o rosto pudesse causar um desastre, e aquela coisinha, que cabia inteira nas duas mãos, poderia se partir ao menor descuido. Olhava para ele, os dois de olhos fechados, e a mãozinha pequena e rosada tocava a barba logo acima.

Como não notar o silêncio? Eu me acostumei a passar dias e até semanas sem falar, mas quando existe alguém que, em uma ocasião, quebra essa rotina, é impossível não perceber. Só pode ser por isso que algumas pessoas prezam tanto a solidão: porque quando ela é quebrada, mesmo que só por uns momentos, fica difícil voltar.

Um pedaço de céu ao fundo e os morros a perder de vista. O verde e a paz e o vazio que às vezes faltam. Um lugar para viver. E não ser nada além do que somos - só nós e nós mesmos. E na outra o perfil em meio à sombra, em preto e branco. Talvez olhando pela janela, talvez encarando o nada. O rosto dele é a personificação do carinho e olhar para o rosto dele é estar em outro lugar.

Tu nunca vai ser mais bonito do que agora. Nós nunca mais estaremos aqui.
E nessas fotos te amo tanto que não sou capaz de dizer.

15 de agosto de 2012

o romance e a poesia

Nasceu numa tarde gostosa de novembro, um mês antes do início do verão. Os pais estavam casados há pouco menos de dois anos e haviam construído a segunda casa de um bairro afastado do centro. Sob o colchão da cama do quarto de hóspedes, desenhos feitos pelo pai em papel pardo revelavam cenas íntimas do início do casamento. Quando havia romance e poesia em lavar a louça depois do almoço no sábado, lustrar o chão ou cuidar do jardim.
Nas imagens filmadas, a mãe a empurrava no balanço da varanda, o pai dançava com ela no colo sob o móbile de palhacinhos estrategicamente pendurado no bar, ela sorria sonolenta no cadeirão, "que malvado esse pai, né, não me bota pra dormir".
Às vezes maltratava as bonecas.
Não que fosse uma criança malvada, mas a maldade atraía. Porque, ao infligir o mal, também era capaz de salvar e, assim, de ser útil de alguma forma. E as bonecas e os amigos imaginários tinham nela uma amiga, alguém em quem podiam confiar, com quem podiam conversar. Tudo o que as pessoas não eram.
Secretamente gostava dos brinquedos de menino. Em especial os carrinhos. E com frequência roubava do irmão o kit de explorador, composto por bússola, binóculo, mapa, lupa, caderno de anotações, ferramentas em geral. Os meninos é que sabiam brincar.
Os livros e os intermináveis passeios de bicicleta vieram depois. Quando explorar o quintal, o porão, o sótão e os terrenos baldios conversando com quem não existia deixou de fazer sentido para preencher as horas livres. Saía com a mochila: os livros, o discman, a água, diário e caneta. Pedalava atrás dos lugares escondidos, os terrenos vazios, as praças e parques que ninguém parecia frequentar, e do conforto de não ser vista nem encontrada. E com o tempo já não adiantava ir mais longe, porque a cidade se esgotara.
Vai a bicicleta, ficam os livros, chegam o computador, o primeiro porre e a vida noturna.
A primeira noite em que ela e as amigas saíram foi uma das últimas do Ferreiro. O bar do pessoal que queria se divertir, beber e ouvir música pagando pouco. Crianças e pré-adolescentes marginalizados esperavam ano a ano pelo dia em que finalmente cresceriam e poderiam passar uma noite lá. O bar fechou, mas a noite sempre encontra um meio. Outros lugares vieram, e voltar para casa de madrugada ou esperar o dia começar na rua não era mais estranho.
Com o primeiro namorado, chegou a primeira mentira. E depois dele a primeira vez em que se apaixonou, por um cara mais velho, que já tinha namorada. Havia crescido, enfim, e descobriu não o que era amar, mas o que era sofrer por alguém que se julga amar. Era mentira, não amor, e histórias semelhantes se seguiram àquela. Como a noite, a dor também encontra um meio.
Mudou, pintou o cabelo, entrou na faculdade. Cansada dos homens, ficou com meninas. Meninas é que sabiam viver, e beijá-las tinha um gosto bom. Mas, mais do que beijos, era enganação, também era mentira, e ela trocou ambos, homens e mulheres, por um punhado decente de paz.
Formada, mas sem vontade, foi trabalhar em uma livraria. Nem grande nem pequena, com um café-lojinha no fundo e diversas estantes espalhadas no resto do espaço. Entre os livros, a vida era mais fácil, mais prazerosa, e tinha aquele gosto de romance e poesia. Era bom estar de volta.
Os dois casamentos sem sucesso, que acabaram por uma separação e um acidente fatal, fizeram-na aceitar que morreria sozinha. Em segredo, manteve o desejo de adotar. "O que há de errado em amar uma criança que já existe?" Vê-la crescer, educá-la na medida do possível, passar adiante os livros empilhados no chão do escritório. Encarando o reflexo no espelho, porém, sabia que não poderia ser boa mãe. Pele ainda jovem para a idade, cabelos macios e vivos - mas o corpo bonito escondia desordem. Cobria em curvas a confusão, o pessimismo e a falta de vontade que em algum momento criam raízes nas pessoas para quem nada deu certo, escolhidas a dedo entre a massa que as cerca.
Aos 77 anos, com dores agora físicas e um cansaço bem diferente do da juventude, já tinha aturado a vida. Mais do que seria saudável, mais do que poderia querer. Morreu dormindo, depois de errar a dose e os remédios. Sem romance nem poesia.

7 de agosto de 2012

os dois pratos

Estava sentada com os pés apoiados sobre o porta-luvas. O vento na cara, os cabelos castanhos espetados que não paravam de balançar, para trás, para a frente, para os lados. Àquela altura, saíamos de Tramandaí, depois de já termos passado por Capão da Canoa, Atlântida, Xangri-Lá e Imbé. "As praias sem graça", como ela dizia, porque conhecia cada uma quase tão bem quanto sua cidade natal.
Helena teve uma infância praiana. Com casa em uma prainha próxima de Capão Novo, não era difícil que a família circulasse entre as praias vizinhas, subindo ou descendo no mapa ao longo do verão. Ela cresceu odiando o litoral, sendo arrastada até a areia pelos pais todos os dias enquanto durassem as férias, e hoje não havia lugar em que gostasse mais de estar. "O pedaço de chão que separa a gente do horizonte", disse uma vez. E diante daquelas palavras o resto da humanidade de repente era pobre e medíocre.
Uma semana antes, alugamos o carro que naquela hora eu dirigia pela Paraguassu e que nos levaria a Cidreira. De férias por tempo indeterminado - ela porque mandava no próprio trabalho, eu porque tecnicamente não tinha nenhum -, decidimos, em detrimento de conhecer algum paraíso tropical, viajar de carro pelas praias do estado. Até Cassino, que ela queria conhecer desde a adolescência, quando leu os livros do André Takeda.
- Dan, a gente não trouxe o outro porta-cds? - perguntou meio decepcionada depois de mexer no porta-luvas e não pegar nada.
Me chamava de Dan.
E falava "a gente".
Nós éramos eu e ela, mas também éramos nós. Éramos "a gente".
- Sim, eu peguei! Mas acho que ficou na mochila. A do notebook.
E ela salta para o banco de trás e levanta a aba protetora do porta-malas para procurar. Linda.

*

No ano retrasado foi o aniversário de 90 anos da avó dela. A família - os irmãos da mãe, mais primos, mulheres e maridos - combinou um churrasco num sábado à noite. Quando é que tu vai trazer teu namorado pra gente conhecer? Hein, Heleninha? Eu quero saber quem é esse cara, ela ficava dizendo, debochada, imitando a avó e os tios.
- É sério, é horrível quando eles tão todos juntos.
- Não tem problema, com toda família é assim.
- Com a tua não.
E eu me lembro de como ela gostava dos finais de semana que passávamos na casa dos meus pais. Ajudava minha mãe antes e depois do almoço, conversava com todo mundo, e não importava se meus irmãos, primos ou tios eventualmente estivessem também - ela ria gostoso, com vontade. Gostava de estar lá, de ser parte daqueles momentos.
- Não importa, eu vou junto - reformulo minha frase. 
Ela sorri e me beija.
- Depois não diz que eu não avisei.

Dona Evani não parecia ter mais de 70 anos. Querida, extremamente ativa, me tratou quase como um novo neto. "Não quer mais, ô Daniel?", perguntou sobre cada um dos pratos - só a carne rendeu dois ou três questionamentos - e mais a sobremesa. O problema eram mesmo os tios. Que pareciam ser pessoas altamente bem educadas, mas juntos, bebendo, falando alto - dava para entender a falta de boa vontade da Helena. Ela nos encontrou refúgio com o marido de uma tia, um alemão que falava com quem quisesse ou entendesse só em inglês. Era um sujeito sisudo, calado e que, de tão mal-humorado, acabou sendo a pessoa mais acolhedora da garagem. Como Helena, ele não gostava das reuniões familiares, e nossa conversa regada a salsichões deu vida a algumas risadas dignas.

- Viu, acabou. Não foi tão insuportável assim, vai.
- Não?
- Só um pouquinho?
E nós rimos, comentando sobre o comportamento das pessoas enquanto caminhávamos em direção ao pub próximo à casa dela.
- Chega deles, quero beber e falar de coisas legais.
- Assim seja.

*

Essa era a Helena. Tão simples e fácil que era difícil entender. 
Às vezes descobria uma música na internet e deixava repetir por horas para depois nunca voltar a ouvir. O mesmo valia para os livros. Salvo algumas exceções, ela costumava se entusiasmar com o que lia, e enquanto não terminasse a leitura não falava de outra coisa, e por vezes ficava só folheando, olhando as páginas, os trechos sublinhados, vidrada, e quando finalmente terminava de ler - o livro ia para a prateleira, provavelmente para não sair outra vez. Era um jogo de contrastes que me intrigava; o prazer e a felicidade que ela sentia com os livros de que gostava e o desprendimento quase total que vinha em seguida. "Faço assim com os homens também", dizia para me provocar, rindo na minha cara de um jeito carinhosamente maldoso.
Ela me conhecia - sabia sempre onde eu gostaria de estar e sabia o que eu gostava de ouvir. 

*

Nossas discussões eram diminutas, por bobagens eventuais, e não passavam de briguinhas passageiras que nós esquecíamos em questão de minutos. Tudo bem, talvez horas. Ela tinha uma raiva contida que impedia qualquer um de nós de sair quebrando coisas pela casa, gritando disparates de que nos arrependeríamos depois. Mas um dia aconteceu.
Eu estava lendo, esperando ela chegar para jantarmos juntos.
Parou perto da mesa e ficou me olhando, estática.
- Que foi?
- Acho que eu tô grávida.
- Oi?
Ela não fala nada.
- É sério?
- Não sei, já passou quase uma semana e nada.
- Tá, mas e o teu anticoncepcional?
Pergunta estúpida.
- Eu esqueci um dia. Mas foi só uma vez - ela se justifica, provavelmente notando a alteração no meu rosto - A gente nem transou aquele dia.
- Ah, Helena, por favor. Até eu sei que não quer dizer nada. Por que tu não me avisou? Tu tinha que ter me avisado. Tem camisinha no quarto, porra!
Ela já não me olhava. Tinha virado de costas, apoiada na mesa.
- Tá, Daniel. Tá bom.
Daniel.
- O que a gente faz agora?
- Não sei.
- E como assim tu acha que tá grávida? Tu tá ou não tá?
- Não sei, porra! Não fiz o teste ainda.
Foi a primeira vez que ela gritou comigo. E hoje, pensando melhor, acho que foi também a primeira vez que a ouvi gritar de fato.
- Ah, que ótimo!
- É. É ótimo mesmo.
Passou reto por mim e se trancou no quarto para sair uma hora depois com uma mochila.
- Onde é que tu vai? Helena!
Corro atrás dela nas escadas, gritando para ela esperar, até conseguir segurar a alça da mochila entre o segundo andar e o térreo.
- Espera, porra!
- Me solta! Idiota - ela grita outra vez, me empurrando contra a parede.
- Onde é que tu vai?
- Eu vou pra casa! Me deixa em paz - e bate a porta.
"Aqui é a tua casa", eu quero dizer. Mas não digo. E deixo ela ir.

Voltou pouco menos de uma semana depois. Foi um susto, e o atraso na menstruação pode ter sido de fundo emocional ou por algum desequilíbrio dos hormônios, ela já fez uns exames. Eu me desculpo por ter sido tão imbecil, digo que a amo, que aqueles dias foram horríveis, que se eu fosse ter um filho só poderia ser com ela. Ela me olha por um momento, séria, a franja cobrindo a metade direita da testa. "É, deu pra ver." Mas mostra um sorrisinho quase escondido na expressão doce de ironia, e então eu sei que está tudo bem.

*

Quando eu a traí, em uma viagem, com uma amiga que trabalhava em uma rádio, não tive a menor chance. Ela soube no momento em que me viu entrar, eu sei. Ficou me olhando, como se esperasse eu confessar. Eu não disse nada e tentei agir normalmente pelo resto do dia, até que à noite, quando terminamos de comer, ela foi direta o suficiente para eu não conseguir evitar.
- E aí, quando é que tu vai me contar o que aconteceu na viagem?

Ela saiu de casa. E o nosso apartamento voltou a ser meu de novo. E eu sabia que dessa vez não seriam só alguns dias, que dessa vez eu tinha passado dos limites. De qualquer um que pudesse haver e mesmo dos que a gente pudesse criar. Durante semanas ela não me atendeu, não quis falar comigo. Eu consegui que o síndico do prédio dela me deixasse entrar e não saí mais de lá. Durante dias ela passou por mim como se eu não estivesse ali. Eu estava quase sem esperanças na madrugada em que a porta abriu, e ela saiu, sentou no chão do meu lado e chorou. Era a primeira vez que eu a via chorar. Chorar de verdade, não por um filme. Não dizia nada, só chorava. E eu queria abraçá-la e apertá-la bem forte contra o meu peito e pedir que me perdoasse, mas não sabia se devia, se ela deixaria. Aos poucos foi parando e, quando as lágrimas cessaram por completo, os olhos vermelhos ainda úmidos, "tu tem que fazer essa barba, né". E aí foi a minha vez. E aos soluços eu enterrei o rosto no ombro dela.

*

Quando ela me traiu é que foi um choque. Em momento nenhum eu imaginei que pudesse acontecer, que a possibilidade sempre existiu, estava ali o tempo todo. Foi com um cara que ela conheceu no trabalho, me contou. Almoçaram e passaram algumas tardes juntos discutindo detalhes do projeto - Helena era arquiteta -, e em uma dessas tardes aconteceu, "não foi planejado, eu não queria".
Foi quando eu percebi que, afinal, ela podia errar tanto quanto eu. Era uma de nós. Humana como eu. Toda como eu.
Mas foi um sofrimento seco, silencioso. Doeu mais trair e ver a dor nos olhos dela do que o contrário. E acho que para ela também, o que pela lógica anularia nossa dor, mas sabemos que não é assim. Helena não conseguia me encarar e saiu de casa outra vez.
- Tu não vai me querer aqui por enquanto, né?
Eu não queria.

*

Recomeçamos dois, talvez três meses depois. Eu nunca acreditei nos "tempos", e é possível que continue não acreditando, mas funcionou com a gente. Nós sofremos, e respiramos, e pensamos, e sentimos a saudade e a distância, e voltamos a ser a gente.
- Eu te amo - ela disse.
Daquela única vez, a cabeça escorada para trás no sofá, virada na minha direção, e eu vou guardar a imagem para sempre ou enquanto tiver memória.
Eu já não a via como namorada. Helena era minha mulher. Morávamos juntos e, tanto quanto ou mais do que a cama, dividíamos a vida um com o outro.

*

Estamos jantando, e entre uma garfada e outra da minha tentativa de risoto, entre um gole e outro do vinho, ela me conta sobre o novo projeto em que está trabalhando, para uma livraria que vai abrir no bairro.
A campainha toca, mas eu não quero atender.
- Daniel?
O irmão dela. Eu abro a porta.
- Oi.
- Ainda?
Ele vê os dois pratos na mesa.
- Tu precisa acordar.
Mas eu não quero acordar. Em todas as nossas mentiras houve verdade.

31 de julho de 2012

a camila

Ela tem a vida que eu queria. É fotógrafa e amiga de outros fotógrafos. Conhece, trabalha com ou é também amiga de músicos, escritores, poetas, artistas. As fotos dela são incríveis e me fazem pensar em como. Como é possível sempre estar lá quando acontecem os momentos que se transformam em fotografias – que se transformam em arte. Ela é a prova, literalmente viva, de tudo o que eu não sou.
O nome dela – Camila Severino – é citado com frequência, e não sou capaz de dizer que o trabalho não mereça a badalação. São fotos em cafés, bares, livrarias, parques, praças, ruas. Lugares e pessoas sempre bonitos. Viagens, encontros, coisas interessantes, e em tudo aquela aura de diversão, de entretenimento, é, eu sou paga pra isso, é assim que ganho a vida. Camila canta também. É linda e feliz.
Outro dia, não há muito, postou uma foto – tirada pelo Leon, ela disse. Leon era Leon Eifler, escritor bem sucedido que eu tivera a chance de entrevistar uma vez e que, dada a bonita mistura de tons de cinza, a câmera olhando diretamente para a expressão leve no rosto dela, certamente era um dos amigos artistas. A foto mostra um apartamento conjugado, a luz do sol entrando pelas janelas. Estavam sozinhos?

*

Era uma quinta-feira do começo de dezembro. O calor costumeiro de Porto Alegre que não se envergonha em chegar cedo demais, vestidos e bermudas, braços, ombros e pernas à mostra. Camila trabalhava com uma banda e, em São Paulo, passava os dias entre fotografar os shows e tomar uma cerveja, na companhia de Leon e outros caras. Dois escritores, um poeta, dois fotógrafos, cinco músicos, as namoradas dos que tinham namoradas – esse era o grupo da Camila naquela quinta-feira.
Quanto a mim, estava sentada em uma cadeira, em um fim de noite de turma, no apartamento de uma das meninas. A maior parte dos colegas já havia ido embora, e além dela e do namorado restavam só mais três pessoas. Em outra cadeira, do lado oposto da sala, estava o Beto e no sofá entre nós, o Felipe, com quem eu já havia ficado algumas vezes, algumas semanas antes. Era inteligente, não era feio, ótima companhia e alguém com quem até então eu costumava gostar de conversar. Mas ele gostava de mim.
Minutos antes da sala, nós estávamos na cozinha, um de frente para o outro, e quando o assunto acabou eu gastei um pouco mais de tempo olhando diretamente para ele. E tudo o que havia de instigante no Felipe desapareceu naquela hora. Me olhava como se nunca tivesse visto uma mulher ou como se eu fosse alguma espécie de divindade que tivesse de ser admirada enquanto havia tempo, como se eu pudesse sumir no ar a qualquer instante. A feição do rosto dele não poderia ser mais insuportável de olhar. E não importava o assunto novo que eu trouxesse ou quantas vezes eu virasse de costas e olhasse para outros lugares – a expressão na cara dele continuava a mesma, patética, tosca, abobada. No sofá da sala, ela ainda estava lá, e ele não desviou os olhos de mim enquanto tirou os tênis, depois as meias e começou a mexer nos pés. Do outro lado, o Beto me olhou. Meio rindo, meio embasbacado. Tanto quanto eu.
Eu nunca tinha vivido ou assistido a nada tão repugnante. Felipe destruiu a si mesmo em menos de uma hora e, diante da minha estupidez, conseguiu fazer aquela noite a pior da minha vida. Não dormi. Saí assim que o dia clareou, enojada, sentindo toda a sujeira do mundo no meu corpo, e chegando em casa fui direto para o chuveiro. Lavar e esquecer.
Em São Paulo, Camila, Leon e todos os outros estavam em um dos bares da Augusta. Sentados ao redor de três mesas, bebiam e conversavam. Eu podia ouvir, na foto que registrou a noite, as risadas mais graves dos homens entre as mais agudas das mulheres. As maquiagens e sorrisos bonitos delas. O jeito deles de vesti qualquer coisa e vim. A harmonia que parece transbordar quando pessoas bonitas, educadas, inteligentes e interessantes decidem se reunir.

*

Entrevistei Leon meses depois dessa noite, tão desastrosa para mim quanto agradável para Camila.
Ele me recebeu quase como se eu fosse uma amiga. Mesmo sem nunca ter me visto, deu-se o direito de diminuir meu nome, chamando pelo apelido óbvio, uma atitude de quem sabe que, apesar de soar ousado, uma intromissão, trata-se na verdade de um gesto carinhoso. Foi encantador durante todos os minutos da hora que passamos conversando. Trocamos um beijo no rosto na despedida, e do lado de fora, enquanto esperava o motorista do jornal, não pude deixar de pensar no privilégio que ela tinha, possivelmente sem se dar conta.
Durante quase um ano e meio, Camila namorou um dos integrantes da banda de que era fotógrafa. Terminado o namoro, teve início a aproximação com Leon. Quase automaticamente. A amizade, as fotos, os dois no mesmo apartamento. As coisas simplesmente acontecem para ela. Com ela. Na vida dela. A vida que eu queria.

*

Estou na cozinha lavando a louça depois do jantar. Na sala, ele assiste a alguma coisa na tv. No momento em que eu termino de lavar o segundo prato e pego a panela de cima do fogão, ele me puxa pela cintura, empurra o registro da torneira e me leva até a sala. A tv está desligada e o som vem agora do rádio, que toca Burning Love. Ele sabe que eu sou uma garota Burning Love muito mais do que Love Me Tender. Minhas mãos ainda molhadas marcam o moletom que ele usa enquanto me conduz para um lado e para o outro antes de começar a me rodar e depois a rodar comigo pela sala. Se não for o único, Leon é um desses poucos homens abençoados e fica extremamente sexy usando abrigo. E ele dançando comigo essa noite, o fato de ter me tirado para dançar enquanto eu lavava a louça – é simplesmente gracioso. Em cada movimento, o meio sorriso todo para mim, os olhos castanhos nos meus. Muito mais do que eu poderia imaginar ou esperar de um sonho.

*

A ex-namorada de Leon não mora mais na cidade. Quando li o primeiro livro que ele escreveu, há mais de cinco anos, um detalhe me escapou para só ser notado recentemente: um dos contos foi dedicado a ela. pra Marília. As letras pequenas em itálico, simples e bonitas, logo abaixo do título.
Não sei nada dela, da Marília, além do fato de que se mudou. A história dedicada é viva – ardente – carregada de verossimilhança – e eu imagino o que há de verdade para além daquela ficção. Mas também não sei. O que sei é que quando notei a presença das duas palavras – pra Marília – durante vários minutos não consegui olhar para outra coisa na página. Eu estava longe, minha cabeça mergulhada em devaneios.
Tentei imaginar a sensação de ter um livro ou um conto dedicado a mim. Mas, muito mais do que isso, pensei em como seria se eu tivesse alguém para quem pudesse dedicar uma história. Alguém tão especial que merecesse as que poderiam ser, talvez, minhas melhores palavras. E alguma coisa dentro de mim teme a possibilidade de essa pessoa nunca existir. Do amor não existir para mim.

*

Camila é social. De algum modo, atrai as pessoas, acontece, vive. Eu a invejo a cada demonstração que tenho disso. Por mais que eu me debata contra o mundo que me cerca, o meu mundo, todos os meus esforços não surtem qualquer efeito. Eu não consigo me livrar de nada - nem dos lugares, nem das pessoas, nem do trabalho, nem das palavras. É possível que sejamos de tal modo atrelados a um tipo específico de futuro? Alguns de nós vêm ao mundo com a sorte da Camila, outros não e não há nada que se possa fazer a respeito? Eu tendo a acreditar que ainda não fiz o suficiente - que ainda não me debati com a força necessária para romper a bolha ridícula em que estou presa. A Camila é a prova do que eu não sou, mas é também a de que existe a possibilidade. E se eu não acreditar nisso, se um dia eu parar de acreditar nisso, então não haverá mais nada.

*

Estou saindo atrasada do apartamento de Leon. De propósito, ele não ativou o despertador na noite anterior, e eu abro os olhos com um susto, uma hora depois do que deveria. Ele acorda com a minha movimentação pelo quarto, juntando e vestindo as roupas ao mesmo tempo em que tento escovar os dentes e pentear os cabelos. Dou uns tapas nele e ele ri, enrolado no edredom. Vem cá, volta pra cama, pede enquanto jogo o celular e a necessaire na bolsa. Me abaixo para dar um beijo de tchau e quando me viro para sair ele fica me puxando pela mão. Não posso, eu digo, não faz isso. Ele me solta, eu jogo outro beijo e sigo para a sala, em direção à porta. Giro a chave, chamo o elevador, abro a porta da rua no hall e paro. Não posso, eu penso. E faço o caminho de volta para ter o corpo inteiro beijado.

*

Eu preciso acreditar, eu penso. Ou não haverá mais nada.

26 de julho de 2012

a ideia

- Dá pra tomar isso bebendo?
Você pergunta na hora que eu tiro uma das pílulas da cartela e boto na boca enquanto nós bebemos champanhe em taças de vinho. A resposta é um sonoro "pfffff", meus lábios sacudindo com o ar que passa, como se eu dissesse sei lá se posso, mas olha a minha cara de quem vai transar. A vida não é bem o que esperávamos que seria.

A magia da juventude - de sorrisos, festas, bebedeiras, sexo, relacionamentos - não. Não era assim. Eu estava no centro de todas essas coisas, e era exatamente isso: elas aconteciam ao meu redor. Como em uma conversa; as contribuições que parecem sair da minha boca para atingir o ar entre as cabeças e sumir, inteiramente ignoradas, como se eu falasse de outro assunto e com outras pessoas. Como se eu não estivesse ali.

- Vamos sair?
- Sim.

Ouço do quarto o alerta de mensagem do celular que está na sala. No momento em que soa, o barulhinho acorda a expectativa, e um ou outro nome surge automaticamente. São segundos de ilusão até eu dizer a mim mesma que é minha mãe ou a operadora. Eu nunca falho.
Existe algo na minha cabeça que eu não posso deixar para trás. As vidas que me cercam, quando não há nada a perder. O que me mantém viva não no sentido estrito da expressão, fisiologicamente, fisicamente. O que me mantém viva na medida em que me faz sentir. E sentir apesar do resto - todos os momentos de cansaço, raiva, tristeza e frustração que têm o hábito impertinente de ressurgir.

- Isso é inútil.
- Por quê?
- Porque ninguém conquista só com palavras.

Mas tem você.
E não há nada como você.
Essa ideia de alguém que pode me completar. Da pessoa que encontra no apartamento de dois quartos do quinto andar o mesmo que eu. É ali que queremos estar. Uma ideia em ideia. Você nunca me decepciona. Apoiados na sacada, olhando cá de cima a colcha de prédios, ruas e árvores, somos um casal invejável. Eu me apaixonei por uma pessoa real? Ou isso ou você é a fantasia dos meus desejos. Nossas noites e manhãs. Os segundos tiquetaqueando nossos corpos nos lençóis.

- Gosto de lavar louça no inverno.
- Por quê, meu Deus?
- A água quente esquenta as mãos.

Você nunca tirou uma foto comigo. Das reveladas e guardadas e vistas aleatoriamente durante a vida. Elas seriam a prova de que um dia nós existimos juntos não fosse o fato de não existirem. As fotos guardam enquanto duram, e se houvesse uma da briga, outra da raiva e uma terceira das lágrimas eu talvez não pudesse dizer que esses momentos não aconteceram. Sem fotos, é com você que eu rio até o estômago doer. Isso pode ser amor?

- Você sente falta?
- Todos os dias.

22 de julho de 2012

o lugar

- Tu por acaso não tem um isqueiro aí?
- Tenho - respondi, e procurei no bolso lateral da mochila e alcancei para ele meu isqueiro rosinha.
Não entendo as pessoas que carregam caixas de fósforo.

Depois que eu me mudei, rodoviárias passaram a ser um cenário constante - chegando ou indo, esperando, circulando, vendo malas e pessoas em todas as direções e em todos os lugares. Imagens de quando eu era criança e vinha a Porto Alegre com minha mãe surgem na minha cabeça: a rodoviária parecia para mim um labirinto imenso de que só minha mãe conhecia as saídas. Hoje passo tanto tempo lá, na rodoviária, às vezes mais do que gostaria, que quase tudo já perdeu a graça. Ou tudo. Mas de uma certa maneira ela ainda me agrada. É feia, desconfortável, atrasada e estranha, mas me agrada. Seja pelo hábito, seja por qualquer presença misteriosa na atmosfera, seja ainda pela melancolia de ficar sozinha, estar lá é confortante.
Contrariando as expectativas, recentemente descobri, em um dos meus passeios, uma ala nova. Por vezes penso que talvez ela exista desde sempre, e eu que nunca havia percebido, mas prefiro acreditar que não fui tão desatenta e durante tantos anos. É um corredor comprido no segundo andar, com bancos distantes uns dos outros, de frente para o Guaíba. Está sempre vazio, e é gostoso sentar lá para ler com o sol de fim de tarde batendo nas pernas.

- Vai pra onde? Não é pra Lajeado, é?
- Não, não, vou pra Canela.
- Passear?
- Não, minha família é de lá.
- Bah, nunca tinha conhecido ninguém que fosse de lá mesmo. É legal?
- Ah, não sei. Foi bom pra crescer. E é confortável de morar também. O problema é que as possibilidades se esgotam rápido.
- Que é o que acontece em toda cidade pequena, né.
- É, bem por aí.
- Mas como é lá? Todo mundo sabe da vida de todo mundo?
- Não... Quer dizer, depende. Não são cinco mil habitantes, então não. Mas se tu pegar círculos de famílias, e amigos, e conhecidos, e os apêndices relacionados, aí sim. Não sei se tudo, mas dá pra saber um monte de um monte de gente. Ouvir, no caso. Saber é outra história.
- E o que que sabem de ti?
- Ah, não sei. Devem saber que eu me mudei - eu rio.
Ele sorri.
- No meu caso, acho que nem sabiam que eu existia antes, pra poderem notar que eu saí.
- Eu queria conhecer Lajeado. Não sei por que, mas tenho curiosidade.
- É meio melancólico demais, sabe.
- Tu estuda aqui também? Que que tu faz?
- Engenharia civil, grande futuro.

Tinha uns olhos verdes faiscantes, intensos, e eu poderia só ficar olhando, nada mais. Cabelo castanho, curto, do tipo que teria cachos se fosse maior. Ele era bonito, em suma. Mas não sorria muito; quando o fazia, passava a impressão de que não queria, como se sorrir fosse errado. De costas, fumando apoiado na grade, era uma dessas pessoas que renderiam um personagem. Perguntou o que eu estava lendo, e eu mostrei a capa do meu exemplar de Exit Ghost. Sorriu de novo.
Movimentou a cabeça em convite para eu ir com ele, e seguimos andando pela plataforma. Fomos até o fundo, como que explorando o que ainda nos era desconhecido, e voltamos. No fim, o lugar mostrou-se tão comum quanto qualquer outra parte da rodoviária - mas ainda assim diferente.

- Não é um lugar que vale a pena?
- Onde?
- Aqui.
- Aqui Porto Alegre? Ou aqui exatamente aqui?
- Aqui exatamente aqui.

Olhei outra vez nos olhos verdes e sorri.
Ele tirou o celular do bolso para ver as horas e em seguida sentou ao meu lado abrindo a mochila. Tirou de dentro um caderno, rasgou um pedaço de uma folha.
- Tu por acaso não tem uma caneta aí também?
Entreguei a caneta que por acaso eu tinha, ele escreveu umas linhas, dobrou o pedaço de papel e me entregou ambos.
- Meu ônibus deve estar quase saindo.
Jogou a mochila no ombro direito e foi embora. Antes de chegar à curva, olhou para trás e sorriu uma última vez. O conjunto de olhos e sorriso mais intrigante que eu já vi.

Meu ônibus saiu meia hora depois, e sentada na janela, sempre a 35, tirei do bolso o pedaço de papel dobrado.

"Os rostos que a gente vê aqui nunca mais voltam."

18 de julho de 2012

a carona*

Claro, podemos nos encontrar, sim.
A fantasia era doce. Ele entraria, ofereceria cerveja: a gente começaria a conversar, sobre sabe lá, qualquer coisa, e aconteceria. O que acontece quando duas pessoas que se conhecem pouco passam a se conhecer mais. A curiosidade, a vontade, como tem de ser, o gosto bom de todos os começos.
Que dia tu prefere?
Brincar com as palavras sempre me encantou de alguma forma. As múltiplas possibilidades na mesma frase, e eu era a senhora que controlava o tempo e mandava e desmandava nos elementos e na ordem enquanto as ideias que vinham não sei de onde - e até hoje eu não sei - me contavam uma história.
Qualquer coisa me liga.
O apartamento dele era agradável, tinha uma sala espaçosa, e pela janela era possível ver o céu e a copa das árvores da rua. Era uma tarde chuvosa. Fiquei observando os detalhes - a cor das paredes, os livros e os cds, a madeira da mesa, a toalha que, se não fosse igual, lembrava uma que minha mãe costumava usar - enquanto procurava um lugar onde deixar a bolsa. Ele fazia café e da cozinha perguntou qualquer coisa que eu respondi olhando para o tapete e o tecido do sofá.
Pode ficar à vontade.
Ainda que digam que é o acaso que controla o mundo, não pode ser o acaso. Quando duas pessoas que pensam e sentem da mesma forma, mesmo sem saber disso, de repente se encontram. E as palavras de um são do outro. Não pode não significar. Que o que une na verdade não una e seja um capricho, que ter visto nos olhos dele algo que eu também vejo nos meus seja uma coincidência.
Tu escreve?
A conta dos copos já havia sido perdida - se em algum momento foi começada. Olhei para o pequeno grupo que acabara de chegar e o reconheci. Usava jeans, tênis e um blusão azul marinho. Foram mais alguns copos e idas ao banheiro até a hora em que ele parou de conversar para cumprimentar o restante das pessoas e me viu. Ele sorriu e acenou. Eu sorri e abanei.
E aí, como é que tá?
Eu costumo sublinhar trechos dos livros enquanto leio. Uma frase ou um parágrafo que falou mais alto. Não sei exatamente por que faço isso - até hoje, eu só voltei a folhear um ou dois em busca dessas marcações. Talvez a intenção seja lembrar, em trinta, quarenta ou cinquenta anos, os pensamentos que eu considero hoje. E mesmo assim não consigo ver por que seja importante. O fato é que foi um hábito adquirido depois que eu mudei de cidade. Os livros dele na minha estante, todos lidos em um tempo em que eu ainda não sonhava, estão intactos, sem qualquer risco meu.
Tu vai pro mesmo lado?
Via o rosto dele sob a luz dos postes enquanto falávamos sobre música, relacionamentos e internet. Passamos pelos bares, que ainda estavam cheios, e eu secretamente agradecia por ter saído de casa aquela noite. À medida que avançávamos no percurso, enquanto o ouvia falar, inevitavelmente eu pensava em como seria se ele fosse outro, e não alguém que eu já li.
Eu vou junto.
O melhor de quem domina a língua que fala é ouvi-los falar: as concordâncias corretas, os plurais, as conjugações, tudo no lugar, com uma sonoridade tão prazerosa quanto música. Não por acaso os cancionistas dizem que a fala humana é ela própria uma forma de canção. Melodia e letra.
Agora que tu já nos fez vir até aqui.
O prédio ficava na metade da quadra, e àquela altura já estávamos na esquina. Ele parava para que eu passasse na frente nos trechos mais estreitos das calçadas. Gentileza simples, gostosa de sentir. De vez em quando eu virava o rosto para ver as expressões e os gestos que ele fazia. Sorria diferente, ao mesmo tempo cheio e comedido. Como se quisesse sorrir e esconder o sorriso no mesmo movimento, presenteando com incógnitas.
Bem que tu podia ligar uma hora dessas.
Há algo em caminhar à noite que os dias jamais serão capazes de oferecer.

*Baseado em fatos reais, só que não.

11 de julho de 2012

a loucura

Era verde, a Janaína. E bastante complacente também, gostava de me ouvir. Ou pelo menos não demonstrava sinais de incômodo ou impaciência como as outras. A Sandra, por exemplo, era antipática, fazia cara feia quando eu me aproximava ou não me deixava falar, interrompia a toda hora. E a Bruna, geniosa como só ela, não aceitava nem um relato resumido do dia no escritório. Só a Janaína me entendia. O problema da Janaína, contudo, é que ela não falava. Toda a compreensão ela compensava com silêncio.
- E então, Janaína, o que eu devo fazer? Falo a verdade ou enrolo meu chefe outra vez? - eu perguntava esperançoso, esperando um conselho sábio, mas ela era só silêncio.
Chegava do trabalho, sentava perto dela.
- Que dia, Jana, tu não tem ideia. Eu ainda vou enlouquecer naquele escritório. Hoje o estagiário chegou cheirando à maconha. Como um estagiário vai trabalhar cheirando à maconha? Como um chefe acredita no estagiário que foi trabalhar cheirando à maconha quando ele diz que é um incenso novo que acabou de chegar da Índia? Como um chefe pede ao estagiário cheirando à maconha onde comprar o incenso? Como o estagiário cheirando à maconha é capaz de responder "na Redenção, mas às vezes eles te enrolam, tem que cuidar" e ouve do chefe que vai ir lá no domingo ver se encontra, "no brique, né?"? E a secretária encontrou uma maneira de não esquecer mais de passar os recados que nos deixam. Disse ela, orgulhosa: "Agora eu digo: o senhor ou a senhora ligue diretamente para a pessoa com quem deseja falar". São uns primores, essas secretárias. Não acha, Jana?
Tudo isso eu dizia. Isso e uma miríade de outras coisas. Mas a Janaína nada. Era uma musa calada.

- Você acha que sou louco?

A pergunta se deixava ficar, pendente e escancarada, e ele não percebia. Ele era o Rogério, o que quase ninguém sabia, porque todos diziam Roger. Roger não se incomodava com isso. Roger era funcionário em um escritoriozinho de advogados. Escritório pequeno, de causas pequenas, de salas pequenas e advogados pequenos também. Roger também não se incomodava com isso. Os outros – o chefe abobado, o estagiário maconheiro, a secretária burra e os colegas fofoqueiros que também eram tudo isso – achavam que Roger era esquisito: às vezes ele sentava em uma das cadeiras da sala de espera para tomar café e conversava com a samambaia.

- Ele chama ela de Adri.
- Quem é Adri? Temos uma estagiária nova?
- Ele não tem mulher.
- Quem não tem mulher?
- Ele fica olhando fixo, parece um psicopata.
- Tem um psicopata aqui?
- Será que ele é gay?
- Quem?
- Parece que dorme de olho aberto.
- Eu durmo de olho aberto às vezes.
- Disseram que a mãe dele era louca, doida de pedra, vai ver é por isso.
- É... Como é que se chama, mesmo? Genérico? Genésico, isso.

Você percebe agora, Roger? É isso que pensam de você. Você não vai fazer nada?

- Meus colegas do escritório são estranhos. Ficam me olhando. Uns como quem diz “ah, coitado...”. Outros parecem que têm medo, vê se pode. E ficam cochichando, principalmente quando eu vou conversar com a Adri. A pobrezinha fica lá sozinha o dia inteiro, ninguém é capaz de parar pra falar com ela. Eu tenho coração mole. E sou educado também. É crime isso, Jana?
Jana nunca me respondia.
Se eu tentava a Sandra: “Nem vem, o dia hoje foi um inferno, esse calor. E esses teus vizinhos não calam a boca. Eu tô um caco. Me vê um pouco de água aí. Por favor, né, é o mínimo, porque depois de passar o dia todo...”. E a Bruna: “Sai daqui, não quero ouvir chororô. Isso, vai pra lá”.
Deprimente.

Roger. Você precisa de um analista.
O quê?
Sua mãe era louca. Doida de pedra.
Eu não preciso de um analista.
É genético.
Eu preciso?

- Doutor, o senhor acha que sou louco?
- Você acha isso, Roger?
- Eu não acho, mas
- Por que você acha isso, Roger?
- Eu falo com plantas, doutor.
- Você fala?
- Eu falo.
- Pois não me diga: eu também.

Você acredita nisso, Roger?

E o Roger, que não se incomodava muito com as coisas relacionadas a ele próprio, não se incomodou com isso também. Voltou para casa acreditando na sanidade.

- Eu não sou louco, Jana. O doutor também conversa com as plantinhas dele.

Se todas as pessoas são loucas, todas as pessoas são sãs.
Você acredita nisso, Roger?

3 de julho de 2012

o cara

Falta de inspiração, tenho certeza de que ele diria. Toda aquela petulância de quem se sente capaz de tudo. De quem sabe tudo. Um bosta, eu diria. Debaixo da asa da mãe, sem se assumir, e vem dizer que é livre. E enche a boca pra falar. "Eu faço o que eu queeeeero", pra todo ouvido desocupado poder escutar. Andando como se fosse dono; "Isso aqui é minha primeira casa", quase canta, cheio de si, circulando entre os bares com aquele arzinho de boêmio. Dentro da jaqueta de couro, atrás dos óculos escuros, e vai cumprimentando tantas pessoas quanto eu levaria uma vida inteira para conhecer. "Bah, nem sei quem é esse cara, meu. Só sei que conheço." E aí eu perco um tempo imaginando qual desses comentários ele usaria para me descrever quando passasse por mim na rua. 'Conheço o cara lá da faculdade. É meio que meu vizinho também, às vezes a gente faz um som juntos e coisa.' Poderia ser. Não sei, é provável que eu nunca saiba. E íamos assim, falando de alguém da faculdade, de alguma coisa do trabalho, de uma música, quem sabe, em direção a qualquer bar, quando a encontramos. Se pendurou na hora no pescoço dele, os cabelos caramelo compridos roçando na barba malfeita que ele trazia quase invariavelmente. “E aíiii”, um beijo na bochecha, “qual vai ser a noite hoje?”. “Não sei. Que que tu tá afim de fazer?”, ele disse botando o braço ao redor da cintura dela. E continuamos; os dois entrelaçados, eu com as mãos nos bolsos vazios do jeans velho. Ele tinha esse jeito meio descolado, meio indiferente que todo mundo costumava adorar. Conquistava as pessoas sorrindo de canto, fazendo uns comentários às vezes infames outras irresistíveis. No final da noite, depois dos beijos e amassos cor de caramelo, cabelos afastados a toda hora, estávamos os dois no meu apartamento outra vez. Do chão, usando o assento da poltrona como apoio pra cabeça, ele fumava um cigarro e me olhava. Eu, jogado no sofá, olhava pro teto, olhava pra frente, olhava pra ele. Aqueles momentos de uma tentativa frustrada de pensar e não pensar ao mesmo tempo. “Pensando em quê?” “Nada.” “Tu sabe que isso não tem a ver contigo, né?” “Isso o quê?” “Ah, para, meu.” “Então tá. Boa noite.” Um bosta, fui pensando, e deitei, na expectativa de dormir e na certeza de que ele viria atrás de mim. “Para com isso”, ouvi a voz dele no escuro, vindo na minha direção. E mesmo que eu fosse responder - muito antes ele estava também na cama, me envolvendo com o braço direito, beijando meu pescoço. Assim eram nossas noites, ou a maioria delas. O sexo depois da discórdia, o amor depois da farsa. Nada que já não estivesse morto no dia seguinte, antes que um de nós atingisse a calçada. Chegávamos à faculdade, encontrávamos turmas diferentes. Ouviam-se dele as exclamações de “Cara, que noite, meu!” ou qualquer coisa parecida igualmente sem significado. “E aí?” era o que meus colegas ouviam de mim. Minha cabeça baixa, meu andar esguio e esse jeito de encarar sem olhar diretamente nos olhos por mais de alguns segundos. Em contraste, ele era uma daquelas pessoas que não precisa de esforço para ser notada ou ouvida, que anda confiante e tem, quase sempre, um grupo de amigos ao redor. Eu sentia raiva. Dele e de mim, idiota e submisso. Diálogos curtos de ‘somos vizinhos’ em troca de noites escondidas. Uns dias depois, ele tocou a campainha lá em casa. “Olha, passei num restaurante e trouxe uma janta pra gente. E vinho!”, disse enquanto deixava as sacolas na bancada da cozinha e vinha me abraçar. O sorriso mais bonito, os olhos verdes faiscando de alegria e inocência. Quem não conhece compra fácil; eu conhecia e comprava todas as vezes. Me fiz de difícil, virei o rosto, não sorri, saí do abraço dele. Inútil. E premeditado também, porque eu sabia que ele não desistiria. Me abraçou enquanto eu estava de costas, me beijou de um lado, depois do outro, enquanto ia dizendo "para, não fica bravo comigo, eu sei que tu não tá bravo" entre outro e outro beijo. Até que eu cedia, me virava de frente sorrindo, escorado na bancada da pia, e nos beijávamos outra vez. Naquela noite, depois do jantar, do vinho, dos beijos, depois de ele tirar minha camiseta enquanto eu abria o cinto e o jeans que ele usava, depois de nos abraçarmos com força, suspirando de prazer, ele suado, respiração audível, depois de deitarmos lado a lado e ele dormir, depois disso eu abri os olhos no escuro. Olhei pra ele do meu lado sem enxergar não mais que um contorno na escuridão do quarto. Não sei se era medo, vergonha ou se era só comodidade. Porque não devia ser ruim, pra ele, aproveitar o melhor de cada um, sugar o melhor de cada pessoa e viver. Ele se divertia, todo mundo gostava dele, não tinha nada do que reclamar. Não tinha nada com que ele precisasse se preocupar; era só contornar a situação comigo, dar o que eu queria, me convencer, e tudo ficaria bem outra vez. Mas naquela hora, deitado no escuro, olhando pro teto, mesmo com ele do meu lado eu tinha perdido as certezas que talvez tivesse. Não acreditava mais, com toda a minha boa vontade, no que ele dizia sentir e que por vezes até demonstrava de formas que eu não esperava. Um dia foi me encontrar em um café perto do prédio. Chegou com um presente e, enquanto eu me concentrava em tentar adivinhar o que seria, veio pra perto de mim na cadeira e me deu um beijo. Com toda aquela gente em volta, até uma guria da faculdade que depois reconhecemos, o que para ele era algo inesperadamente - dificilmente - inédito, e significava alguma coisa. Mas no escuro eu não fui capaz de me lembrar desses momentos. De alguma forma, escondidos pelo preto, que era quase só o que eu enxergava, eles não faziam mais parte de mim, da minha memória. E antes que eu pudesse perceber a dimensão do que fazia minhas mãos estavam sobre o pescoço dele, e não muito tempo se passou até que ele continuasse deitado do meu lado, mas agora sem vida. São assim, as coisas. Todo mundo nasce pra morrer, mas uns sabem matar.

21 de junho de 2012

o engano

Meu problema é que raras vezes sou capaz de trocar a música pela escrita. Não que não estejam ligadas, com palavras, ritmos e sonoridades, mas deixar de ouvir uma para escrever a outra acontece de me exigir certo esforço. Não posso, simplesmente, fazer as duas ao mesmo tempo, sob pena de desperdiçar ambas. Tanto a música quanto as letras exigem uma entrega de que só quem de fato sabe apreciá-las pode despender.

Mas eu me entrego menos com essa finalidade bonita do que com o desejo egoísta de dar um objeto, outro e qualquer, para o que eu penso. Esquecer está fora de alcance. Não é como num filme, em que eu poderia escolher apagar - ou em que, diante dessa impossibilidade, surgiria na minha vida algo melhor - ou em que, ainda, seria fácil morrer. E não obstante seria arte.

Eu, mulher de letras. Daquelas ainda, que parecem empregar todos os esforços para preencher cada requisito do estereótipo. Solitária melancólica que deposita num maço de cigarros a qualidade de um aliviador de tensão. Ah, quem nos dera. Em uma sequência de anos em que frustrações igualmente se seguiram, infalíveis, eu deixei pelo caminho a noção do que fazer, como fazer - como acontecer.

E ele um homem de números, como não poderia deixar de ser. Mas não como eu: ele era leve. Falava, projetava - calculava como quem sabe o que quer. Um coração e uma mente habitados pela certeza das decisões tomadas que dá força e credibilidade ao mais ignóbil dos homens. Da frieza dos cálculos, o calor das palavras.

No café, nossa conversa girou em torno das cidades, das pessoas, de suas dinâmicas de funcionamento e convivência. Sorria bonito, abraçava macio. Leva menos de um minuto - apaixonar-se por palavras ou perceber o engano dos sentidos - que deve ser a mais bela forma de se dizer ilusão. Deixar-se levar por uma fantasia qualquer de amor fácil e belo. No colo do prazer, que talvez eu merecesse, e da alegria, que talvez eu conhecesse.

Esvaziava aos poucos a xicarazinha do expresso e encarava os olhos azuis à minha frente. Cheios, a mim diziam que sim e ao mesmo tempo chamavam a imaginar o que diziam. Eu, inábil e amedrontada diante de quaisquer outros olhos, ali só podia olhar - e não sentia vontade de fazer outra coisa. As curiosidades e os convites que se fazem ver nos olhos nenhum conjunto de palavras pode formular.

O que é insanidade hoje? Ainda repetir as mesmas coisas na espera de um resultado diferente? Nunca achei insana a repetição, nunca achei precisa a ligação dos dois conceitos. Não tivesse repetido tantas vezes, não teria aprendido a fazer o bolo de aveia, receita da minha mãe. De qualquer modo, louca e insana, na mesa do café eu podia antever todos os desdobramentos do nosso encontro. Fosse como fosse a despedida, depois dela viriam as quimeras e as ficções.

Entre as camisetas estampadas, as pessoas esquecem que camisetas não geram, ainda, gentileza alguma. E, sem uma camiseta estampada, ele era gentil como quase ninguém. Desculpou-se por falar demais, devolveu perguntas sobre o que eu fazia, e o tchau recíproco veio com o gosto amargo do provavelmente nunca mais. Assim, o vão deixado pelo que em verdade não chegou a existir. Assim, os nadas que determinam minha existência.

Jogo minha atenção e minha vontade, e acaso não a falta de vontade ou atenção?, em um plano qualquer diferente desse. Do infortúnio que é querer virar as costas para o mundo e não poder - escrever. Ou ouvir música; qualquer ritmo e quaisquer letras que esvaziem pensamentos, colocando no lugar sonhos e fantasias melhores que a realidade. Se são mentirosos, sabem enganar.

29 de maio de 2012

o homem

Disseram-me, certa feita, que lá eu seria bem-vindo. Acontece, porém, que eu não acredito nos homens. Senão quando gritam gol, que talvez não haja outro momento em que sejam por completo sinceros e honestos. Aquela sociedade, disseram-me, é aberta e liberal, tu serás acolhido e te sentirás parte do lugar. Aconteceu, entretanto, que não me receberam bem e eu não me senti parte de lugar algum. Vi os homens andando, encontrando meios de contornar e também contornando as formas de encontrar. Eram como parasitas uns dos outros e acreditavam em sua indubitável certeza. Punham os erros sobre seus iguais, mas jamais sobre si mesmos. Havia ali casos e coisas de que eu mesmo duvidaria. E há dentro de mim algo que para sempre gostará de duvidar, sem, no entanto, poder fazê-lo. Falavam de muitas coisas, esses homens que vi. Falavam muito uns com os outros, constantemente se interrompendo, mas se lhes perguntasse o que o outro acabara de falar por vezes não eram capazes de me dizer. Não me ouviam muito, também. Para alguns, olhavam com desinteresse, faziam caretas de tédio. Outros ainda rezavam. E mesmo os que não rezavam diziam coisas sobre Deus. Que Deus é esse de que falavam, que condena mais do que abençoa? E essa fé estranha, que eles sustentam subjugando as diferenças? Havia muita pressa em tudo que faziam. Pressa de chegar e de sair. Pareceu-me que nunca se contentavam em ficar. Tinham uma sede de controlar o tempo que se fez incontrolável. Logo o tempo, que é fugidio e passageiro. Rápido demais para umas coisas, lento e miserável para tantas outras. Comentavam muito sobre fazer coisas valerem a pena. Para mim, trata-se de um conceito um tanto bizarro, a vida como uma dádiva. Eles não parecem ter ciência de que a vida é só a vida. Usam pouco os ouvidos e usam demais as pernas. Sempre correm. Também falam de amor, correria de amor. Dizem que amam o tempo todo e, no entanto, não parecem saber amar. Que amores são esses que eles sentem? Vi-los deixar de amar com a mesma rapidez com que diziam amar. É um verbo difícil para eles. Como também respeitar. São todos diferentes uns dos outros. E eis seu maior paradoxo: orgulham-se disso, mas não conseguem respeitar o mesmo fato. Dividem as diferenças entre aceitáveis e não aceitáveis, como se a eles coubessem todas as decisões da sociedade em que vivem. Alguns ainda, ante as diferenças que consideram inaceitáveis, desenvolveram a habilidade de atacar seu semelhante em ato pensado. E me disseram, antes de eu ir, que aquele seria um ótimo lugar para viver. Eu tentei de tudo uma vez, porque só lembrarei uma vez. E muitos me julgaram por isso. Disseram que fiz coisas erradas. Alguns dos homens que vi não compreendem a necessidade de conhecer. Alguns sequer tinham histórias para contar.