17 de outubro de 2012

a lanchonete

Entraram na lanchonete e escolheram uma mesa no fundo. Lanchonete e restaurante. O buffet pequeno na entrada, dezenas de mesas lado a lado, paredes sem cor – e por certo havia uma cor nas paredes, mas daquelas impossíveis, se bege ou se um dia já foi branco, e qualquer que fosse o caso agora era suja, sem nome, e até certa altura as paredes eram azulejadas, e havia ainda, no mesmo nível dos rostos das pessoas sentadas, uma faixa de espelho de ponta a ponta, ninguém olhava realmente para a cor das paredes. Era uma lanchonete barata, grande, e por ser barata e grande estava sempre movimentada, sempre cheia, os garçons na dança incessante entre as mesas, as bandejas eram extensões de seus braços. O melhor do cardápio, que os clientes quase não requisitavam mais, porque clientela fiel sabe como as coisas funcionam, era o xis. Não importava muito o sabor. E foi pelo xis que foram até lá àquela hora, já passava da uma da manhã, outra graciosidade do lugar. Era começo de inverno, fim de outono, se é que existe diferença, e poucas coisas na vida poderiam ter o sabor daquela combinação, caminhar na noite agradavelmente fria e comer um xis de madrugada.
“Tá com fome de quê? De xis, meio xis? Eu tô com fome de xis bacon.” Ela bem sabia que não existia essa de meio xis, meio xis é frescura. Se a fome não é suficiente, pede outra coisa. A dinâmica da alimentação. Três refeições por dia ou refeições de três em três horas. O café da manhã é a mais importante, não, o almoço, nem pensar, a janta. Comida pesada à noite dá pesadelo. Mentira. Feijoada. Lasanha. Churrasco. Carne vermelha e mal passada. O boi pendurado na árvore pelas patas traseiras, a cabeça para baixo, balançando bem de leve. Ele não sabe o que está acontecendo e pode estar olhando para a grama ou para o céu ou para as pernas dos homens ao seu redor quando vem a primeira paulada. E de dentro da casa, "tapa os ouvidos", só se ouvem os guinchos, urros, não são mais mugidos. A cabeça decepada no chão, o corpo sem cabeça ainda pendurado, sangue gotejando sobre a grama, vermelho no verde.
“Um xis bacon e um xis galinha.” A ruína no meio de duas fatias de pão. A vida era boa.
Outro casal, outro casal igualmente jovem, outro casal igualmente sem dinheiro, ocupava uma mesa mais à frente. Como eles, dois numa mesa para quatro. As contas nunca fecham na vida real. Sobra ou falta, os dois que são um, o um que ocupa o espaço de dois, os dez que não valem um, matemática imprecisa, e talvez se não tentassem ajustá-la com toda essa veemência burra a vida poderia funcionar. O casal, o casal da outra mesa, não conversava alto. Pareciam falar amigavelmente, e embora a menina chorasse, os olhos levemente vermelhos, uma lágrima mansa escorrendo, ela tinha talvez o semblante mais tranquilo que alguém naquela situação poderia ter.
“Eles tão terminando”, ele disse.
“Como tu sabe?”
“É só olhar. E ele tá botando o cabelo dela pra trás, tirando a lágrima.”
“Mas ela pode estar chorando por outro motivo.”
“Mas não tá.”
“Como tu sabe?”
“Eu sei.”
E ele sabia. Homens sempre sabem. Não porque sejam mais espertos ou mais sensíveis, eles simplesmente sabem. Nem toda consciência tem ou pede explicação. Tirar os cabelos da frente do rosto de uma menina que chora. Secar as lágrimas dela. Beijá-la na testa. Pouca coisa pode ser pior do que um beijo na testa.
“Ela é bonita.”
Comemoravam involuntariamente um mês de namoro. Um xis bacon, um xis galinha e suco de laranja. O começo e o fim na mesma madrugada, na mesma lanchonete, a duas mesas de distância. Havia certa medida de poesia naquilo tudo. Bobagem isso de poesia, bobagem isso de namoro. Eles não se sentiam à vontade com a palavra. Não houve um pedido, porque pedidos de namoro são bestas. Ninguém quer ou não quer namorar; namora-se. Mas ela era a namorada, ele era o namorado. Já passava da hora de se pensar em algo melhor. Tampouco contavam os dias. Pior do que namoro, talvez só mesmo aniversário de namoro. O que eles têm na cabeça, afinal?
O outro casal levantou. Saíram de mãos dadas. Ele percebeu enquanto ela acompanhava os dois com o olhar. Sabia o que ela pensava porque pensava a mesma coisa.
Ela ajusta a coluna à cadeira.
“Qual o sentido de pensar nisso agora?”
“Ué, tu não pensou?”
“Pensei, claro, mas justamente por isso. Qual o sentido de pensar em como vai terminar quando recém se começou?”
“Não sei. Qual tu acha que é?”
“Nenhum. Boa coisa é que não pode ser.”
“Não é nada, né? Quer dizer, quando acontecer vai acontecer, mas por enquanto não é nada.”
“É.”
“Como tu acha que vai ser?”
“Acho que tu vai ser um boçal e sumir.”
“Eu acho que tu vai ser uma neurótica que vai me fazer ser um boçal e sumir.”
“Tu vai me dar motivos pra ser neurótica.”
“Porque tu vai me cobrar.”
“Cobrar o quê?”
“Atenção, que eu seja mais presente.”
“Tu não vai ser presente?”
“Não.”
“E se a gente terminar agora?”
“Agora?”

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