5 de junho de 2014

o reverso

O problema não foi a minha casa, de que ele tomou conta, nem a escova de dente e as roupas que ficaram, nem o fato de eu nunca ter conhecido o apartamento dele. Não foi ele mal ter conhecido meus amigos, nem nenhum de nós ter visto a família do outro, nem mesmo essa vida à parte que nós levamos. O problema não foi a instabilidade de ambos, os conflitos internos ou o medo que eu tinha de chorar na frente dele. O problema não foi o sexo, nem os orgasmos falsos, nem a vergonha que às vezes eu tinha de gritar, porra, faz isso direito. O problema não foi o frio, nem as manhãs que eu passava esperando que ele acordasse, nem as noites que ele demorava a chegar. Não foi eu ter deixado de sair com meus amigos para sair com os amigos dele, nem o fato de o ar em toda a casa estar carregado com a nossa presença, nem o fato de a ausência dele me sufocar. O problema não foram as discussões que nunca tivemos, nem a melancolia, nem a vontade de dizer e calar. O problema não foi a saudade, o vazio ou o espaço que começou a crescer entre nós. Não foi a chuva, não foi o fato de ele morar em outra cidade, nem a mãe dele me ligando. O problema não foi a inexistência de datas, de nomes ou de respostas. Não foram os vinhos, não foi o dia que eu precisei vomitar, não foi o dia que ele não veio. O problema não foi insegurança, infantilidade ou inexperiência. O problema não foi ele, não fui eu, não fomos nós.

Cansei de pensar nas coisas, de descrever o fim de semana ou o cinema ou a chuva que caiu na primeira segunda. As panquecas, o champagne, a sacada. A mensagem inesperada de estou indo, caminhar de noite, comer pizza. A alegria infantil dele com um presente de natal, minha surpresa com uma caixa de madeira cheia de cadernos e um pedacinho de papel em que se lia 'amor'. A primeira vez que nos vimos pessoalmente, a primeira noite, o primeiro dormir juntos. Dividir o banheiro de manhã, jantar junto, andar de mãos dadas. My girlfriend, quando vai apresentar, e a gente se escondendo e fugindo o tempo todo. 

Não lembro, mas quando lembro ele está sorrindo, empolgado, feliz. 

Tem coisas que acontecem e nós só percebemos que aconteceram depois de já terem acontecido. Um olhar diferente, um silêncio qualquer. A gente se conheceu e isso deve bastar. Dois imbecis, provincianos, loucos, que eram perfeitos juntos mas não sabiam ficar juntos. 

Num outro tempo, numa outra dimensão da vida, nos vejo como um daqueles casais: felizes, musicais, literários, sendo um para o outro o próprio reflexo. Como se todo o verso fosse reverso. Como se de repente o tempo pudesse virar e perder nossa história no caminho para começar uma nova, que dessa vez fosse mais longe do que nós conseguimos ir. Como ouvir de novo a voz dele pela primeira vez.

3 de junho de 2014

a bolha

Não escrevo aforismos porque não tenho certezas. Nem uma delas sequer. Pobre leitor ingênuo, que lê em busca de um sentido. O sentido não existe, como não existe a própria coisa para a qual se busca sentido: é tudo imaginação.

O jardim de inverno viu tudo o que ninguém mais viu. Visto dali, o céu era mais próximo. Entre janelas acesas, copas de árvores, faróis e os sons da noite da cidade, distante e ao redor. A bolha que resguardava a dimensão paralela do tempo em que podíamos ser.

O cheiro de erva e a fumaça ganhavam o vento frio e nos inundavam de infinito. Nenhum outro lugar é capaz de nos manter em segredo.

- Tu não tem ideia, noção do quanto eu queria ter te conhecido antes.

Antes, quando nós poderíamos existir.

- Tu não te sente mal?
- Eu me sinto muito mal.
- Eu também.
- E ao mesmo tempo não tem outro lugar no mundo que eu gostaria de estar.
- Só aqui.
- Só aqui.

Se alguém voltasse - em busca, talvez, de uma chave esquecida -, estaríamos fadados à inexistência. A mais uma inexistência, entre as tantas em que já vivíamos.

- E se a gente ficasse aqui, e fingisse que o tempo não existe?

A fantasia de parar o tempo que tanto nos ronda. Nós - aqueles para quem o tempo em que vivemos não dá conta da nossa própria realidade. É preciso mais. Um espaço temporal em que seja possível viver o que a realidade não permite, uma fenda no próprio tempo que permita a vida não vivida. Essa dimensão comportaria todas as histórias sem final, todas as histórias que sequer aconteceram, toda a imaginação que nasceu morta, engolida por um mundo sedento de realidade e sentido, sangue nos olhos em busca da verdade dos fatos.

- O que tu vai dizer?
- A verdade.
- ...
- O que é a verdade se não o outro lado da mentira?

O outro lado. Como ouvir de novo uma voz pela primeira vez. Ninguém pode ver como eu vejo. Ou sentir o amor que foi mentira em tempos de verdade. Existe o ontem e já não existimos. Como ouvir sem reconhecer a voz que falava tão perto: sinta agora. Pobre leitor ingênuo, que acredita no tempo absoluto.