Helena teve uma infância praiana. Com casa em uma prainha próxima de Capão Novo, não era difícil que a família circulasse entre
as praias vizinhas, subindo ou descendo no mapa ao longo do verão. Ela cresceu odiando o litoral,
sendo arrastada até a areia pelos pais todos os dias enquanto durassem as
férias, e hoje não havia lugar em que gostasse mais de estar. "O
pedaço de chão que separa a gente do horizonte", disse uma vez. E
diante daquelas palavras o resto da humanidade de repente era pobre e medíocre.
Uma semana antes, alugamos o carro que naquela hora eu dirigia pela
Paraguassu e que nos levaria a Cidreira. De férias por tempo indeterminado - ela
porque mandava no próprio trabalho, eu porque tecnicamente não tinha nenhum -,
decidimos, em detrimento de conhecer algum paraíso tropical, viajar de carro pelas
praias do estado. Até Cassino, que ela queria conhecer desde a adolescência,
quando leu os livros do André Takeda.
- Dan, a gente não trouxe o outro porta-cds? - perguntou meio decepcionada depois de mexer no porta-luvas e não pegar nada.
Me chamava de Dan.
E falava "a gente".
Nós éramos eu e ela, mas também éramos nós. Éramos "a
gente".
- Sim, eu peguei! Mas acho que ficou na mochila. A do notebook.
E ela salta para o banco de trás e levanta a aba protetora do
porta-malas para procurar. Linda.
*
No ano retrasado foi o aniversário
de 90 anos da avó dela. A família - os irmãos da mãe, mais primos, mulheres e maridos - combinou um churrasco num sábado à noite. Quando é
que tu vai trazer teu namorado pra gente conhecer? Hein, Heleninha? Eu quero
saber quem é esse cara, ela ficava dizendo, debochada, imitando a avó e os
tios.
- É sério, é horrível quando eles tão todos juntos.
- Não tem problema, com toda família é assim.
- Com a tua não.
E eu me lembro de como ela gostava dos finais de
semana que passávamos na casa dos meus pais. Ajudava minha mãe antes e depois
do almoço, conversava com todo mundo, e não importava se meus irmãos, primos ou
tios eventualmente estivessem também - ela ria gostoso, com vontade.
Gostava de estar lá, de ser parte daqueles momentos.
- Não importa, eu vou junto - reformulo minha frase.
Ela sorri e me beija.
Ela sorri e me beija.
- Depois não diz que eu não avisei.
Dona Evani não parecia ter mais de 70 anos. Querida,
extremamente ativa, me tratou quase como um novo neto. "Não quer mais, ô
Daniel?", perguntou sobre cada um dos pratos - só a carne rendeu dois ou
três questionamentos - e mais a sobremesa. O problema eram mesmo os tios. Que pareciam ser pessoas altamente bem educadas, mas juntos, bebendo,
falando alto - dava para entender a falta de boa vontade da Helena. Ela nos
encontrou refúgio com o marido de uma tia, um alemão que falava com
quem quisesse ou entendesse só em inglês. Era um sujeito sisudo, calado e que, de tão mal-humorado, acabou sendo a pessoa mais acolhedora da garagem.
Como Helena, ele não gostava das reuniões familiares, e nossa conversa regada a salsichões deu vida a algumas risadas dignas.
- Viu, acabou. Não foi tão insuportável assim, vai.
- Não?
- Só um pouquinho?
E nós rimos, comentando sobre o comportamento das
pessoas enquanto caminhávamos em direção ao pub próximo à casa dela.
- Chega deles, quero beber e falar de coisas legais.
- Assim seja.
*
Essa era a Helena. Tão simples e fácil que era difícil entender.
Às vezes descobria uma música na internet e deixava repetir por horas para depois nunca voltar a ouvir. O mesmo valia para os livros. Salvo algumas exceções, ela costumava se entusiasmar com o que lia, e enquanto não terminasse a leitura não falava de outra coisa, e por vezes ficava só folheando, olhando as páginas, os trechos sublinhados, vidrada, e quando finalmente terminava de ler - o livro ia para a prateleira, provavelmente para não sair outra vez. Era um jogo de contrastes que me intrigava; o prazer e a felicidade que ela sentia com os livros de que gostava e o desprendimento quase total que vinha em seguida. "Faço assim com os homens também", dizia para me provocar, rindo na minha cara de um jeito carinhosamente maldoso.
Ela me conhecia - sabia sempre onde eu gostaria de estar e sabia o que eu gostava de ouvir.
*
Nossas discussões eram diminutas, por bobagens eventuais, e não passavam de briguinhas passageiras que nós esquecíamos em questão de minutos. Tudo bem, talvez horas. Ela tinha uma raiva contida que impedia qualquer um de nós de sair quebrando coisas pela casa, gritando disparates de que nos arrependeríamos depois. Mas um dia aconteceu.
Eu estava lendo, esperando ela chegar para jantarmos juntos.
Parou perto da mesa e ficou me olhando, estática.
- Que foi?
- Acho que eu tô grávida.
- Oi?
Ela não fala nada.
- É sério?
- Não sei, já passou quase uma semana e nada.
- Tá, mas e o teu anticoncepcional?
Pergunta estúpida.
- Eu esqueci um dia. Mas foi só uma vez - ela se justifica, provavelmente notando a alteração no meu rosto - A gente nem transou aquele dia.
- Ah, Helena, por favor. Até eu sei que não quer dizer nada. Por que tu não me avisou? Tu tinha que ter me avisado. Tem camisinha no quarto, porra!
Ela já não me olhava. Tinha virado de costas, apoiada na mesa.
- Tá, Daniel. Tá bom.
Daniel.
- O que a gente faz agora?
- Não sei.
- E como assim tu acha que tá grávida? Tu tá ou não tá?
- Não sei, porra! Não fiz o teste ainda.
Foi a primeira vez que ela gritou comigo. E hoje, pensando melhor, acho que foi também a primeira vez que a ouvi gritar de fato.
- Ah, que ótimo!
- É. É ótimo mesmo.
Passou reto por mim e se trancou no quarto para sair uma hora depois com uma mochila.
- Onde é que tu vai? Helena!
Corro atrás dela nas escadas, gritando para ela esperar, até conseguir segurar a alça da mochila entre o segundo andar e o térreo.
- Espera, porra!
- Me solta! Idiota - ela grita outra vez, me empurrando contra a parede.
- Onde é que tu vai?
- Eu vou pra casa! Me deixa em paz - e bate a porta.
"Aqui é a tua casa", eu quero dizer. Mas não digo. E deixo ela ir.
Voltou pouco menos de uma semana depois. Foi um susto, e o atraso na menstruação pode ter sido de fundo emocional ou por algum desequilíbrio dos hormônios, ela já fez uns exames. Eu me desculpo por ter sido tão imbecil, digo que a amo, que aqueles dias foram horríveis, que se eu fosse ter um filho só poderia ser com ela. Ela me olha por um momento, séria, a franja cobrindo a metade direita da testa. "É, deu pra ver." Mas mostra um sorrisinho quase escondido na expressão doce de ironia, e então eu sei que está tudo bem.
*
Quando eu a traí, em uma viagem, com uma amiga que trabalhava em uma rádio, não tive a menor chance. Ela soube no momento em que me viu entrar, eu sei. Ficou me olhando, como se esperasse eu confessar. Eu não disse nada e tentei agir normalmente pelo resto do dia, até que à noite, quando terminamos de comer, ela foi direta o suficiente para eu não conseguir evitar.
- E aí, quando é que tu vai me contar o que aconteceu na viagem?
Ela saiu de casa. E o nosso apartamento voltou a ser meu de novo. E eu sabia que dessa vez não seriam só alguns dias, que dessa vez eu tinha passado dos limites. De qualquer um que pudesse haver e mesmo dos que a gente pudesse criar. Durante semanas ela não me atendeu, não quis falar comigo. Eu consegui que o síndico do prédio dela me deixasse entrar e não saí mais de lá. Durante dias ela passou por mim como se eu não estivesse ali. Eu estava quase sem esperanças na madrugada em que a porta abriu, e ela saiu, sentou no chão do meu lado e chorou. Era a primeira vez que eu a via chorar. Chorar de verdade, não por um filme. Não dizia nada, só chorava. E eu queria abraçá-la e apertá-la bem forte contra o meu peito e pedir que me perdoasse, mas não sabia se devia, se ela deixaria. Aos poucos foi parando e, quando as lágrimas cessaram por completo, os olhos vermelhos ainda úmidos, "tu tem que fazer essa barba, né". E aí foi a minha vez. E aos soluços eu enterrei o rosto no ombro dela.
*
Quando ela me traiu é que foi um choque. Em momento nenhum eu imaginei que pudesse acontecer, que a possibilidade sempre existiu, estava ali o tempo todo. Foi com um cara que ela conheceu no trabalho, me contou. Almoçaram e passaram algumas tardes juntos discutindo detalhes do projeto - Helena era arquiteta -, e em uma dessas tardes aconteceu, "não foi planejado, eu não queria".
Foi quando eu percebi que, afinal, ela podia errar tanto quanto eu. Era uma de nós. Humana como eu. Toda como eu.
Mas foi um sofrimento seco, silencioso. Doeu mais trair e ver a dor nos olhos dela do que o contrário. E acho que para ela também, o que pela lógica anularia nossa dor, mas sabemos que não é assim. Helena não conseguia me encarar e saiu de casa outra vez.
- Tu não vai me querer aqui por enquanto, né?
Eu não queria.
*
Recomeçamos dois, talvez três meses depois. Eu nunca acreditei nos
"tempos", e é possível que continue não acreditando, mas funcionou com a
gente. Nós sofremos, e respiramos, e pensamos, e sentimos a saudade e a
distância, e voltamos a ser a gente.
- Eu te amo - ela
disse.
Daquela única vez,
a cabeça escorada para trás no sofá, virada na minha direção, e eu vou guardar
a imagem para sempre ou enquanto tiver memória.
Eu já não a via
como namorada. Helena era minha mulher. Morávamos juntos e, tanto quanto ou
mais do que a cama, dividíamos a vida um com o outro.
*
Estamos jantando, e
entre uma garfada e outra da minha tentativa de risoto, entre um gole e outro do vinho, ela me conta sobre o novo projeto em que está trabalhando, para uma
livraria que vai abrir no bairro.
A campainha toca, mas eu não quero atender.
- Daniel?
O irmão dela. Eu abro a porta.
- Oi.
- Ainda?
Ele vê os dois pratos na mesa.
- Tu precisa acordar.
Mas eu não quero acordar. Em todas as nossas mentiras houve verdade.
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