13 de novembro de 2019

uma dessas feministas


- Tu não é uma daquelas feministas, é?
- Sou, sou uma daquelas.

Nada de particular sobre aquela manhã em Porto Alegre. O filtro de caridade branca que envolvia o dia. Nos primeiros dias de março, o verão ainda queimava.

Minha regata vermelha, a camiseta cinza dele do New Order, nossos all stars - meu all star azul combina com o seu preto de cano alto. Não era de cano alto. Éramos jovens até demais.

Mas a lembrança não é do calor. A pele retém sensações, mas não consciências. O calor, a dor, um toque, a chuva. Para lembrar, sempre é preciso sentir tudo de novo.

O que teria mudado se eu tivesse dado essa resposta?

Sim, sou uma dessas feministas.

***

A Venâncio como sempre, feita céu e carros que a gente não vê.

Às vezes me perco. Começo e quando vejo não sei como cheguei até ali. Nunca tinha reparado nessa fachada. Como as pessoas conseguem andar mexendo no celular? Por que não é possível esperar? Com que atenção se responde qualquer coisa desse jeito? Atenção. Será que a gente ainda é capaz de algum tipo de atenção? A qualquer coisa.

Colégio Militar, João Pessoa, Lima e Silva. Dobramos.

- Uma vez a mãe da minha ex ligou. Disse que tava no hospital, que a Luísa tinha tentado se matar. Tava puta comigo.
- Quê?
- É.
- Sério isso?
- Sim. Mas né, ela tinha uns problemas.
- Ah tá.
- Oh, é aqui.

Ela devia ter algum problema.

É o que nos fazem acreditar. E contam assim, como quem fala das piadas ruins no almoço de família.

Louca. Exagerada. Emotiva. Sentimental. Não entendeu direito. Sensível demais.

Entende?

***

Azul e cinza se intercalam, dia um dia outro. Tem os carros que passam no fundo, a sirene de uma ambulância, pássaros, uma obra no prédio vizinho. Vozes sem rosto e rostos sem voz.

Nunca mais te vi e nem quero.

Todo esse futuro pela frente e não saber o que fazer com ele. A gente sempre encontra jeitos de matar o tempo. E desculpas para não encará-lo. Até o dia em que ficam apenas os arrependimentos - tu vê, o tempo passou.

O medo é essa sombra sem forma.

Enquanto tudo parece ter uma sequência e todos parecem ter um plano. O que eu sou? Quem eu devo ser no mundo, agora que não sou mais quem era?

Outro dia percebi: eu não entendia direito, na época. Ainda não era uma dessas, feministas.

29 de setembro de 2019

as roupas secaram


Penduro as roupas recém lavadas no varal. Mais roupas do que o espaço permite. Minha mãe diz que assim vou acabar estragando a máquina de lavar. Porque boto coisas demais ali dentro. Mas a máquina tá ali há dez anos e continua funcionando.

E o varal não arrebentou.

Dentro de mim cresce um grito. Que escapa às vezes em sonho: a janela ficou aberta, entraram em casa, um cachorro parado à porta do quarto, quando levanto e me aproximo ele foge, tem mais medo de mim do que eu dele, mas porque grito, e o assusto, ele reage, e me ataca.

Seria uma metáfora?

- Não sinto mais tua falta – tenho vontade de dizer – tudo o que podia acontecer entre nós já aconteceu. Não sobrou nada, e o resto é só complicação. Respostas que não quero mais dar porque me obrigam a lembrar que não sou quem gostaria de ser.

O amor é só demência e confusão.

Se é.

O silêncio agora tem horários. Não terminei a mala. Não apertei o parafuso solto da porta do banheiro. Comprei bananas.

Lembrei do Samuel, que tá na Nova Zelândia. Disseram que ele vem agora. Em algum momento desse mês. Ou no começo do próximo? Foi só uma noite. Beijos numa pista lotada. Escorados na parede suja. O chão grudando de cerveja derramada. Nossos corpos colados, pernas e braços que se moviam como se quiséssemos subir um no outro. O volume entre as pernas dele querendo escapar das calças. Depois nos perdemos no meio das pessoas. Ele chegou a pegar meu celular. Trocamos umas mensagens. E poucos dias depois ele viajou. Agora vem de novo, não sei por quanto tempo. Também não sei quase nada sobre ele. Mas sairia de novo nem que fosse só por mais um beijo daqueles. Desses que a gente ainda sente nos lábios no dia seguinte.

Dormentes.

Extasiados.

Por que pensar nisso agora?

Tudo o que me chega à cabeça em uma noite de insônia. Com o mesmo objetivo: adiar a realidade. Mas já são quatro da manhã, acordei cinco vezes, virei na cama a noite inteira, pesadelo atrás de pesadelo.

Penso na gente nas escadas da Borges. Escorados ali, tomando uma cerveja.

- Tu vai voltar comigo dessa vez?
- Vou. Nunca entendi por que não fui da última, pra ser sincera.
- Nem eu.
- Acho que eu não faço muito sentido.
- Melhor assim.

Olhamos para um céu sem estrelas. É uma noite de nuvens, como o será o dia de amanhã. Subimos as escadas e pegamos à direita. Juntos, rumo ao desconhecido.

Acordo e não tenho vontade de levantar. Eu nunca tenho vontade de levantar. Como se escondida do dia na penumbra do quarto pudesse manter ali também minhas angústias. Bobagem. Preciso tomar banho e varrer o chão.

Abro meu caderno, anoto pensamentos aleatórios. Os sonhos estranhos que tenho. Levanto as cortinas da cozinha, coloco música, corto alho e cebola. Gosto do cheiro de alho que fica nos dedos. Depois passo um café e olho pela janela.

Parece que as roupas secaram.

18 de setembro de 2019

ninguém vê nada


Meia hora se passou sem que eu dissesse uma palavra. Ela estava esperando, contudo. Por algo. Um sinal. Um começo. Um ruído qualquer. Um fio de história que ela pudesse puxar.

Nada.

- Não tenho mais o que dizer.

Meus olhos encaram o vazio.

Tenho vontade de rasgar o fluxo do tempo e desfazer todas essas distorções. Calar todas as bocas. Interromper todos os pensamentos e o curso de uma vida que não é a vida certa. Que mundo é esse em que todas as distopias parecem plausíveis?

Elenco desgraças desejáveis e assisto aos absurdos que desfilam ao meu redor. Não tenho ânimo de me insurgir contra nenhum deles. Ela esperava mais de mim. Ela sabe que eu poderia mudar tudo por nós duas e por isso a mágoa.

- Por que você não faz nada? – me pergunta.

Eu não sei.

As ondas do tempo explodem, os dias se repetem, um segundo substitui o outro. Estamos em um carrossel ou em uma roda-gigante – qualquer coisa que gira sem sair do lugar. O mundo passa diante de nós e do alto podemos ver o horizonte. A borda de um buraco negro é chamada de horizonte de eventos.

Desço e caminho, mas por mais que eu ande há sempre um limite, uma barreira que não consigo ultrapassar.

- Sozinha eu não vou conseguir – digo a ela.
- Você sabe que não pode contar com mais ninguém – ela retruca – somos só nós.
- Eu sei.
- Não é exatamente estar sozinha.

Quando no fim da tarde o céu muda de cor, as primeiras estrelas despontam para nos lembrar: o que vemos não existe mais. Olhar para o céu à noite é enxergar o passado. De frente, nos olhos. São as estrelas os olhos do passado. Outros mundos foram possíveis, outros mundos ainda serão.

Já não falo com mais ninguém. Desapareço todos os dias: em meio a uma vida que não é minha, em meio a palavras que não são minhas. Meu é o silêncio, minha é a solidão.

- Até onde vamos com isso? – pergunto.

Ela sabe, mas não responde.

Qualquer que seja o final, o carregamos conosco desde o começo. Trazemos a morte no peito no momento em que viemos à vida. Eu só queria mais tempo para conversar. Para descobrir os mundos que se perdem em reuniões, séries, mensagens virtuais e vídeos efêmeros. Um dia para exibir um fragmento inútil de vida. Somos feitos de fragmentos e assim nos apresentamos ao mundo. Ninguém vê nada.

Sete bilhões de pessoas. Todas paridas por uma mulher. Na rua, a vida segue – à margem de tudo.

- Vai ser assim até o fim.

9 de agosto de 2019

bilhetes


Me pergunto se ele soube fazer ela feliz. Se deixou de ser o disco arranhado que eu ouvi por tanto tempo. Minha vida é uma bosta, odeio minha cidade, odeio meu trabalho, odeio a faculdade, odeio meus colegas, odeio meus professores. Nada tem sentido, todos são medíocres, ninguém entende como o que eu faço e penso é excepcional.

Uma vez a mãe dele me ligou. Nunca soube que cara ela tem. Mas me ligou uma noite. Ele tá aí contigo? Não.

***

O tempo nunca se esconde.

***

Nunca esteve, de fato. Adotou minha casa como dele, mas nunca esteve comigo. Tinha uma escova de dente no meu banheiro e roupas no meu armário, mas nunca foi sério. O amor existia, mas o abismo que nos separava na maneira de viver e sentir, a discrepância de expectativas – foi demais para duas pessoas que mal sabiam cuidar de si próprias.

Quando levei ele até o portão no domingo de tarde e me despedi, meu corpo soube. Não vamos nos ver outra vez. Atravessei o corredor de volta até minha porta, os passos levando para dentro a certeza: não caminharíamos juntos de novo. E aquilo tudo ficaria comigo – roupas, escova de dente, gilete, os bilhetes que ele escondia pela casa para que um dia eu encontrasse.

***

A vida está onde a gente menos espera.

***

Seis anos passam. Tu ainda mora no mesmo prédio? Tá em casa? A mensagem que eu vejo e respondo umas duas ou três horas depois. Tava naquele bar mais pra baixo na rua e pensei em passar pra dar um oi.

Era pra ser natural. Foi uma vontade que eu tive na hora. Só isso. Se não acontece naturalmente, melhor que nem aconteça.

Claro. Eu entendo. Pode pensar em passar pra dar um oi sempre que estiver naturalmente bêbado nos bares da minha rua. Naturalmente estarei aqui pra te receber.

***

O silêncio às vezes deve ser compartilhado.

***

Nossas histórias podem não contar a verdade, mas nunca serão falsas. Carregam frações do tempo. Sensações que ficaram do que já passou. 

Réstias de memória que insistem em não se perder: um cigarro roubado, panquecas em um restaurante temático, o jeito dele de abraçar segurando as mangas do blusão na ponta dos dedos, o sorriso que sempre dizia esse é o melhor lugar do mundo.

Todos os livros do mundo. Um brinde a não saber há quanto tempo estamos juntos.

***

A imaginação não é um presente.

21 de julho de 2019

tudo o que é dito de outra maneira


Como a gente fazia pra viver quando ainda existia realidade?

Acordo e o vejo dormindo ao meu lado. Fazia uma semana que não nos falávamos. Na véspera ele me mandou uma mensagem: abre pra mim? Sabia que eu estava em casa. Puxei o portão e ele ficou um tempo ali parado, me olhando. Nós dois em silêncio sob a luz laranja de um poste, os galhos de um ipê, as estrelas de um céu que tanto amávamos observar em silêncio. Exatamente como naquele instante.

Olhar nos olhos de alguém é o mesmo que olhar para o céu.

Dei um passo atrás pra ele passar. Girei a chave de volta. Entramos. Sentou apoiando a cabeça nas mãos. Os cabelos escorrendo pelos lados. Puxei uma das mãos dele na minha direção. Não foi culpa de ninguém. Basta seguir vivendo.

Desenvolvemos essa linguagem, toda baseada em olhares e mãos que se buscavam ou se evitavam. Conversas inteiras acontecem assim. E eu amo isso em nós. Tudo o que é dito de outra maneira.

Ele abre os olhos devagar e sorri esticando os braços. Ainda no meio do sono. Cara de travesseiro. Quer um café? A gente pode ficar lendo na cama? A gente deve. Manhã preguiçosa. Uma vez me disseram que não pode haver intimidade maior do que ler. Duas pessoas em silêncio, cada uma em um mundo à parte e ao mesmo tempo juntas.

Lemos. Não precisamos de mais.

Eu me canso primeiro. Fecho o livro e largo na mesinha ao lado da cama. Fico sentada por um momento, incapaz de decidir se quero levantar ou deitar de novo. Ele levanta o braço. Como se abrisse um portal. Um convite a si próprio. Deito no colo dele e durmo de novo, entre um beijo e a mão que acaricia meus cabelos.

Ele continua lendo.

Quero acreditar que existe uma realidade pra nós.

12 de julho de 2019

o que escrevi sobre nós


Enquanto a água escorre pelo café em pó e atravessa o tecido do filtro para preencher a caneca. Todas as manhãs. O céu mais próximo ou mais distante. De todas as coisas que fazemos sempre, o café é das que não perdem o sentido.

Há três meses eu escrevia sobre nós, patinando nas palavras. Gosto de perceber as mudanças. Da maneira como construo as frases aos pontos que o sol já não alcança aos novos ramos que brotam dos vasos. De qualquer maneira, a vida segue. A qualquer custo, a vida segue. Lenta e inelutavelmente. Sempre segue.

Na vida, quando estamos frente a frente, vem de dentro algo que nos prende. Um qualquer medo de alguma coisa, uma vergonha não se sabe bem que de quê. Na vida, quando estamos frente a frente, as perguntas não são feitas. A vida sozinha não liberta as interrogações que nos acompanham.

Mas aqui é diferente.

Olho para a caneca vazia. É mais relógio do que esse que trago em volta do pulso.

***

- Não sei se a melhor pergunta é o que tu tá olhando ou o que tu tá pensando.
- Pode perguntar as duas, ué.
- E as respostas são diferentes?
- Não sei. Tu acha que quando a gente olha pra uma coisa e pensa em outra na verdade vemos aquilo que pensamos?
- Pode ser. Pode ser o contrário também: às vezes a gente tá pensando em algo e de repente vê alguma coisa e aí começa a pensar nessa outra coisa.
- Ou a gente pensa exatamente naquilo que tá vendo.
- Também. O que a gente pensa determina o que a gente vê, então?
- Talvez. Mas não literalmente.
- Literalmente eu não vejo nada direito, vejo um monte de borrões e imagens não definidas. E aí?
- Talvez tu pense desse jeito também.
- Vou considerar um elogio.

***

Teu rosto não é só um rosto. Muitas pessoas são só um rosto. A maioria delas. Mas o teu é mais do que isso. O tempo todo sei que tu pensa em algo além daquilo que consigo ver quando olho pra ti. Teu rosto é vista.

***

São desvios quase invisíveis, mas o rio corre, e o que escrevi sobre nós há três meses já são palavras mortas. Se as lemos, não somos nós. Quando as lemos, já somos outros. Não é só a passagem do tempo, mas os sedimentos que ele carrega. O que segue e o que vai ficando pelo caminho. O que chega a nós a partir do alheio.

- Venho aqui todos os dias e parece sempre igual, mas sou outra a cada vez que tu me olha.

Não mudo à revelia desses olhos, porque eles me mudam também.

- Cada vez que tu me olha, esse olhar se torna parte da pessoa que me torno.

Quantos olhares já trocamos? Quanto de mim foi contigo e quanto de ti veio comigo?

- Sou feita também dos teus olhares.

***

Se depender do tempo, o que escrevo sobre nós nunca será verdadeiro. Ou será para sempre, congelado em instantes que não voltarão a existir. O tempo leva as palavras. Amanhã mesmo, o que diremos?

Nossos olhos guardam e transmitem as palavras que não ousamos pronunciar.

Quero te dizer tudo com os olhos. Quero ler nos teus olhos o que tu escreve sobre nós.

29 de junho de 2019

uma história feita para ser reescrita


- Não. Eu acredito que almas ou mentes ou energias semelhantes, como tu quiser chamar, que vibram numa frequência parecida e funcionam no mundo de um jeito parecido, se encontram e se reconhecem. E aí pode ser qualquer coisa. Uma amizade, uma parceria profissional, alguém que te inspira, uma pessoa que tu conhece numa viagem e nunca mais vê de novo. Qualquer coisa. A gente que tem essa necessidade de dar nome.

***

Estávamos sentados no banco do lado de fora. Difícil saber pelo que esperávamos. Pássaros trocavam de galho acima de nossas cabeças e as folhas das árvores sob o sol desenhavam padrões que gostávamos de assistir na calçada.

- Eles mudam sempre.
- Tudo sempre muda.

Conto pra ele do último cara do Tinder com quem saí. Formado em Arquitetura, fazendo mestrado. Gostava de ler também. Fomos num bar da Cidade Baixa. Era ok pra conversar. Foi uma noite boa. Era o segundo com quem eu tentava, mas sei lá, acho que não vai pra frente também. Por que não?, ele perguntou. Qual o problema.

- O problema – eu digo – é que nenhum deles é tu.

As sombras continuam mudando. O vento varre a calçada e as folhas que já caíram dançam com ele. Ele levanta e estende a mão pra mim. O tempo passou.

- Vem, vamos entrar.

***

Te fiz dizer as palavras que eu mais gostaria de pronunciar. Ou talvez quisesse ouvi-las ainda mais do que falar.

Achei que teríamos tempo. Aquele era o único domingo em que as coisas poderiam acontecer e eu achei que teríamos tempo. De sentir a presença um do outro. Entender a pessoa enquanto ela fala e gesticula à nossa frente. Olhar nos olhos que se buscam e ao mesmo tempo se desviam.

- Gosto de sentir o tempo passar.

Não olhando para o relógio ou esperando por alguma coisa. Percebendo as sombras e as cores do dia mudarem. Pouco a pouco. Enquanto nós permanecemos estáticos.

- Estáticos, mas vivos?
- Não sei se precisam ser coisas opostas. Acho que existem certos momentos especiais na vida em que podemos ser estáticos e vivos.

E nesses momentos nos enchemos de universo.

- Me diz, então: qual de nós encontrou o outro primeiro?

***

Houve um tempo antes de nascermos. E houve o tempo em que estávamos vivos sem saber da existência do outro.

- Será que algum dia estivemos no mesmo lugar sem saber? Será que te vi em um dos bares? Ou passei por ti na rua?
- Teria sido diferente?
- Não sei. Teria?
- E isso importa, agora?
- Importa. Porque pra mim não interessa uma versão de existência em que estamos juntos sem poder estar.

Quis saber o que eu faria, nesse caso. Eu reescreveria toda essa história.

- Inventamos o que não existe. Vem comigo.

20 de junho de 2019

o que não existe a gente inventa


Passo as mãos pelo rosto depois de chorar e sinto a pele tão lisa e macia quanto jamais esteve. As lágrimas lavam, literalmente. E é como se levassem com elas as imperfeições e marcas do tempo. Depois de chorar, recomeçamos.

***

Da ordem do previsível: a maior parte do tempo. O caminho até o trabalho, o horário do almoço, a ida ao supermercado, a sessão de terapia, a aula de francês, academia, regar as plantas, almoço de família no domingo, passear com o cachorro, leitura no fim da noite. Conhecemos tanto do futuro antes de vivê-lo.

Da ordem do imprevisível: os detalhes. Janelas em formato de arco, o desenho no verso da placa, o lambe colado no poste, galhos que invadiram a calçada, as luzes que agora iluminam a sacada do terceiro prédio à esquerda. Um ou outro acontecimento que nos derruba. A ausência inesperada. As palavras que eu não poderia ter previsto.

O futuro também pode ser implacável.

***

Vivemos tudo?

Habita na superfície do que acaba certa espera vã pela continuidade. A interrupção abrupta deixa o mundo em suspenso. Foi apenas um imprevisto, um desvio breve.

Amanhã abrirei essas mesmas portas e tudo estará como sempre foi. Como era quando nos despedimos ontem. Chega mais cedo amanhã, pra gente retomar. Beleza, vou chegar. Vê se descansa, bons sonhos.

Um banco sob uma árvore no verde a perder de vista. O sol. O céu. Nuvens rabiscando o azul.

- Que lugar é esse?
- Ué, achei que tu quisesse vir pra cá.
- Eu queria, mas não sei que lugar é.
- Tu é maluca.
- Gostei daqui.
- Gostei também.
- A gente pode ficar, então?
- Mas foi tu que nos trouxe pra cá.
- Quando?
- Ontem.
- Mas tu tem hora pra voltar?
- Eu não. Tu tem?
- Agora não mais.

***

E quando chega sem aviso a gente congela. “Não”. Foi tudo o que eu consegui dizer. Não, não, não. Não é verdade. Para de dizer isso. Não é verdade.

Minha reação exatamente igual à da última vez que ouvira aquelas palavras, sete anos antes. Andando de um lado para o outro sem saber que direção tomar e sentindo crescer por dentro a dor da realidade que em palavras eu ainda queria negar. Não. Não. Não.

Até sentar e chorar. Por todo o tempo que deveríamos ter passado juntos naquela noite. Em todas as outras. Foi um problema em casa, só isso. Amanhã vai estar tudo bem.

***

Talvez essa ausência seja o mais próximo que conseguimos experimentar em vida do conceito de eternidade. Uma ausência eterna, vazio que permanece. O espaço vago que dói e dura – para sempre, enquanto estivermos aqui.

A mesma eternidade que cabe dentro de cada segundo. Nos olhos que agora só vejo quando fecho os meus. Nas palavras que compartilhamos na vigília e nos sonhos de cada um.

Era pra ter sido muito mais. Ou foi exatamente tudo o que poderia ter sido?

***

- E agora?
- A vida segue.
- Queria que seguisse contigo aqui.
- Finge que eu tô aí. Tu sabe o que eu diria.
- Sei. Sei de um monte de coisas que tu diria. Mas não é a mesma coisa.
- Diz pra ti mesma. Prometo que vou estar falando nesses momentos.
- Isso não existe.
- O que não existe a gente inventa.

9 de junho de 2019

às vezes


Às vezes é preciso buscar. Às vezes no caminho de volta para casa. Às vezes durante o expediente ou olhando pela janela do ônibus. Antes de dormir.

***

Dificilmente envolve sexo. Nem mesmo beijos. É mais uma cumplicidade. Almas que se reconhecem.

Caminhamos juntos, olhando para a copa das árvores acima de nós. Conversamos. Rimos um com o outro. Discutimos livros e escritos. Sentamos lado a lado, nossas mãos em um carinho leve. Ou de costas um para o outro, escoro mútuo. Lemos. Andamos na beira da praia, os pés na água. Olhamos o mar. Sentimos o vento. Somos o vento. Céu e sal. Pegamos um ônibus. Acordo primeiro e vejo ele dormir. Volto a dormir em seguida. Ou o contrário. Ele levanta e passa o café. Sentamos na varanda para beber. O dia nos enche. Gostamos do cinza.

***

Às vezes quando ele vira o rosto ao me ver e finge que não estou ali. Às vezes quando sorri sem jeito. Às vezes quando me conta uma história qualquer.

***

É o mundo dele. E é o meu. E os dois se encontram e dão origem a esse algo indefinido que não sabemos bem onde colocar.

- O que a gente é? – ele me pergunta, olhando para frente.

Eu não sei.

- E o que a gente faz com isso? – eu pergunto, olhando para ele.

Ele também não sabe.

E continua olhando em outra direção. Quando ele busca meus olhos, sou eu quem desvio. Nossos mundos implodiriam nesse encontro.

***

Às vezes quando entro no chuveiro e fecho os olhos e inclino a cabeça para a frente e sinto a água caindo sobre os meus ombros. Às vezes ao acordar de um sonho. Às vezes esperando as plantas absorverem a água.

***

O prazer de se sentir insignificante diante do mar. A vida é aqui, embora não haja tempo.

Somos infinitos – e existimos sempre como potencialidade de tudo o que não fomos e não seremos. Eu sinto, ou quero imaginar que sinto.

O universo em nós. Viagem com a alma. A água que nos cerca, nos envolve, nos preenche. A essência da existência em três parágrafos.

- Me deixa chegar mais perto.

***

Às vezes folheando as páginas de um livro. Às vezes passando os olhos pelas palavras que já escrevi. Às vezes quando sou obrigada aceitar que nada disso é real.

***

Todas as vezes.

2 de junho de 2019

me acorda da realidade


Um cenário épico e um guarda-chuva bem grande. Era o que dizia no rótulo da cerveja. De tão alto, o mundo é um lugar que vale a pena.

- Um brinde às almas que vagam sozinhas.

Do alto de uma montanha. Onde mais eu poderia estar?

***

Foi uma dessas cenas improváveis. Não era para a conversa ter acontecido – e de repente ela se desenrolou, bem diante de nós. Não dava pra enxergar o céu. Poderiam ser oito da manhã ou oito da noite. Lembro de tentar abrir uma janela e não conseguir. Quando voltei, ele sorria.

- Gosto das coisas que não são evidentes, que exigem mais do olhar.
- É preciso haver esforço.
- Olha, reconheço essa referência.
- Prestou atenção na leitura, então.
- Sempre presto.
- Eu sei, eu sei.
- É por isso que contigo é tão difícil?
- O quê?
- Porque precisa ter esforço.
- Não tô te entendendo. O que que é difícil comigo?
- Tu entendeu, sim.
- Tá, entendi. Mas tu sabe que não é por isso.
- Eu não sei de nada.
- Já te expliquei.
- Não sei se acredito em ti.
- Por que tu não acreditaria em mim?
- Porque tu nunca me diz as coisas de verdade.
- E tu por acaso perguntou de novo?

***

Eu não tinha perguntado de novo, pensei enquanto sentia o primeiro gole da cerveja. Comprada no mercado do peixe. Na banca de um meio português, meio brasileiro. Era bom falar a minha língua.

- Queres mais alguma coisa? Talvez um peixe para o almoço?
- Não, obrigada. Mas eu volto amanhã, com certeza.
- Serás muito bem-vinda!

Não é preciso sorrir para ter um rosto sorridente. Como o do Pedro, que me vendeu a cerveja. Um rosto que sorri por si e por isso faz a gente lembrar. Me fez lembrar. Dos dias de abrir aquela porta e encontrar o rosto que também era sorriso.

Nem sempre olhava pra mim. Nem sempre podíamos ou conseguíamos falar. Às vezes sentia os olhos às minhas costas. Ou imaginava sentir. E de um jeito ou de outro permanecia o rosto. A despeito de qualquer circunstância.

Eu nunca tinha perguntado de novo. Por quê?

***

O tempo vai curar tudo. Mas e se o tempo for a doença? Não sei, Wim. Não sei. Vendo tudo de tão longe a vida tem ainda menos sentido. Gaivotas sobrevoam o mar acima dos barcos atracados. Uma nuvem baixa se aproxima da cidade ao pé da montanha.

- Eu queria estar contigo.

Digo em voz alta, como se ele pudesse me ouvir. Onde estaria? Com quem? Será que eventualmente ainda pensava em mim? Eu poderia perguntar. Mas há tempo não dissemos nada. Foi preciso atravessar o mundo para tentar apagar o que descobri fazer parte de mim: a lembrança daquele sorriso.

Carregamos memórias e palavras no bolso, como uma chave ou moedas recebidas de troco.

***

Meus óculos embaçam. Ele ri.

- Pelo amor de deus, vamos pra rua.
- Vamos.

Sentamos no banquinho do lado de fora.

- Vou sentir tua falta.
- Eu volto.
- E se não voltar?
- A gente se acha de novo em outro lugar.

***

Pedro estava lá no dia seguinte também. Voltei para almoçar, como disse que voltaria. Repeti a cerveja. A gente tem isso de repetir sensações. Principalmente as que nos fazem voltar.

Comi na beira do mar e fiquei por ali. Duas imensidões cinzas que quase eram uma só. Não é o lugar, é a ausência.

- Queres mais uma? – ouço os passos do Pedro às minhas costas.
- Se tu dividir comigo.
- Não tens de pedir outra vez.

***

Me acorda, eu digo. Estás sonhando? Sonho. É muita realidade lá fora pra gente não sonhar de vez em quando. Como posso te acordar, então? Me acorda da realidade.

24 de maio de 2019

gestos invisíveis


O horror de saber que a vida é verdadeira.

Escreveu Fernando. Seria essa uma forma de vida após a morte? – quando já não somos nem estamos mas nossas palavras permanecem?

Sento em um café para ler o jornal e sou um, à tarde escrevendo na varanda já sou outro e à noite, na solidão de uma taça de vinho, um terceiro. O rio que corre. Nem nós permanecemos nem a água.  É a mesma água, e nunca é a mesma. Somos a mesma pessoa, e nunca somos os mesmos.

***

Depois de abraços e despedidas, as portas do ônibus fecharam no fim da tarde. O horário de verão já tinha acabado, logo escureceu. Ele perguntou se podia ocupar o lugar do meu lado. Claro, senta aí. Puxei a mochila para o meu colo.

Seu espaço, meu espaço. Naquele dia, por instinto ou desatenção, tinha esquecido de baixar o apoio de braço que divide as poltronas. Ele sentou, largou a mochila no chão entre as pernas e reclinou a poltrona, à altura da minha. Falamos sobre as conversas do dia, amenidades em geral, o que seria do resto da semana.

Esperávamos alguma coisa da vida ou só o fim daquela viagem?

A dada altura silenciamos, vencidos pelo cansaço e pelo embalar do ônibus. De olhos fechados, querendo dormir, sinto o toque na mão.

Abro os olhos e num reflexo encolho o braço. Foi sem querer? Vou relaxando de novo aos poucos. Ou eu imaginei? Devagar, retorno a mão à posição inicial, estendida sobre a poltrona. Eu já não estava totalmente acordada, pode ter sido um toque acidental. Quando decido que não foi nada – de novo.

Meu coração vem à boca, e eu congelo na poltrona. Ele não recolhe a mão, eu não recolho a minha.

Nenhuma palavra, nenhum movimento. Por quanto tempo? Não sei dizer. E então o impulso a que decidi ceder, colocando minha mão sobre a dele, buscando com os meus dedos os espaços entre os dedos dele. Ele aceita, nossas mãos se encaixam, e entre uma dança de dedos e outra viro o rosto na direção dele. Ele olha para mim. Não nos enxergamos, mas sabemos que nossos olhos se encontram no escuro.

O alívio de saber que a vida é verdadeira.

***

Foi um jeito de dizer: eu sinto também.

Tanta facilidade a nossa de imaginar o que existe e o que não existe. E, no entanto, o que agora sabíamos que existia continuou não existindo de fato. Somos reais quando existimos em silêncio?

Olhos que se olharam sem se ver. Aqueles dois de mãos dadas no escuro não vieram conosco rumo à luz de outro dia. Existimos no tato, mas não sobrevivemos no mundo. O que sentimos é verdade quando sentimos cegos e mudos?

O horror e o alívio de saber que a vida é temporária.

***

No dia seguinte não houve dia anterior.

- Tudo bem, é temporário.
- Como assim é temporário?
- Sentir é temporário.

A vida é temporária e nós somos feitos de gestos invisíveis.

15 de maio de 2019

o instante em que perdemos as palavras


Entrei na sala e dei de cara com ele. Era alto demais para a mesa que ocupava, as pernas espremidas na parte de baixo. Não sabia se era visita, funcionário novo, entrevistado. Ficou me olhando, quiçá com a mesma dúvida. Soltei um oi tímido e passei por ele para chegar ao armário no fundo da sala. Nenhum dos dois cogitou se apresentar.

- O pessoal tá precisando de uma caixa dessas lá embaixo.

Essa pessoa é legal, lembro de ter pensado ao fechar a porta atrás de mim e chamar o elevador. Se ficar, a gente vai se dar bem.

Não é sempre, claro. Mas há casos. Pessoas que despertam esse instinto que no resto do tempo a gente nem sabe que tem. No segundo em que as vemos – antes de ouvir a voz, antes de saber o nome. Só uma sensação. De que estamos diante de alguém que divide algo conosco. Talvez a maneira de funcionar no mundo, de absorver a vida, de sentir tudo isso.

***

- Tu é muito parecido com o Jesse Eisenberg. Alguém já te disse isso?
- Sim! Minha irmã!

Saímos do elevador e, na rua, descobrimos que fazíamos o mesmo caminho de volta. Éramos vizinhos de bairro, poucas quadras separavam nossos prédios. Quantas vezes já não teria encontrado com ele no Zaffari sem saber quem era? Parados no mesmo lugar: olhando o preço das cervejas.

Começamos a dividir aquele caminho.

Quase todos os dias: quinze ou vinte minutos em que vivíamos as mesmas pequenas doses de vida. Caronas de guarda-chuva. Paradas na praça para fumar. Difícil dizer em que momento aquelas amenidades e papos de elevador se tornaram confidências. Risadas mais frequentes que antes de percebermos acabavam em um bar. Conversas que, de repente, só éramos capazes de ter um com o outro.

Normalmente a vida acontece quando não esperamos. Olha aqui, ela diz: alguém parecido contigo. Alguém com quem se identificar. Um encontro de almas perdidas cuja essência divide a mesma raiz.

***

- Eu queria muito outro cigarro. Tu não tem aí, por acaso?
- Pior que não. Mas aquela mulher talvez tenha – indico a outra mesa com o rosto.

Olhamos pra ela. O maço ao lado do copo e da garrafa, largado tão displicente sobre o logo descascado da Skol. Vários cigarros ali.

- Eu não tenho coragem de pedir.
- Nem eu.

Rimos os dois.

- A gente é igual, meu deus – ele diz, ainda rindo.
- Mas tenho em casa, pelo menos.
- Bah, a gente podia passar ali na volta, então, né? Tu não te importa?
- Capaz, vamos lá!

Fechamos a conta e saímos a pé. Tinha isso também. Nossos caminhos, que gostávamos de percorrer a pé. Nenhum dos dois tinha carro. Nenhum dos dois fazia questão de ter um carro. Nenhum dos dois era do tipo que chama um Uber quando pode caminhar. Mesmo à noite. Mesmo em uma cidade como Porto Alegre.

Mesmo sozinhos.

***

Para o coração a vida é simples: ele bate o quanto puder. E então para. Ele fecha o livro e coloca de volta sobre a mesa, admirado com a abertura.

- Não sei se a morte é algo que me faz sofrer, sabe? Pra mim é algo que acontece.
- É, acho que eu encaro um pouco assim também. Uma parte da vida que a gente sabe que um dia vai chegar.
- Claro, tu nunca quer nem espera que aconteça, muito menos com as pessoas que tu ama.
- Mas é parte do processo.
- Exato. Inclusive, ou principalmente, pra quem fica.

Acendemos o segundo cigarro, abrimos a segunda cerveja. Cada um jogado para trás em uma ponta do mesmo sofá de onde agora escrevo. Falamos sobre morte, sobre amar, sobre incertezas e o que fazer da vida, sobre nossa necessidade de isolamento, tempo e distância mesmo das pessoas de quem mais gostávamos. Sobre os caminhos que haviam nos levado até aquele momento, que hoje pode ser só uma projeção da memória.

O ápice da cumplicidade a que uma amizade poderia chegar: não era mais preciso falar.

***

Até que aconteceu: a vida.

***

O tempo jorra, se espalha ao mesmo tempo em que desvanece. Somos tragados, sempre. Começa com uma semana atribulada, mais compromissos que o normal, às vezes coincide de tudo se concentrar no mesmo período. A semana passa e surge uma viagem. Férias. Reuniões fora do estado. Um congresso em outro país.

Estamos parados e o mundo gira. Damos um passo e giramos com ele. Abrimos os olhos, e aquela semana foi há dois anos. Colocamos em duas horas as conversas de um ano inteiro. Tu soube que vou me mudar? E a entrevista, como foi? Mais uma semana, mais um ano.

***

Ele passa por mim, levanta as sobrancelhas e sorri sem graça. Sem saber o que dizer. Sem saber me cumprimentar. O tempo. Correndo indiferente entre tentativas vãs de um desespero estúpido e unilateral. Quando não há mais nem perguntas nem respostas. Nos perdemos no instante em que perdemos as palavras.

Uma definição de dor: não é preciso dizer nada porque perdemos ao mesmo tempo a capacidade de dizer e a de não dizer.

Eram os desencontros da vida que, embora não caibam no coração, o alimentam imprescindivelmente.

Já há algum tempo, nada mais cabe aqui.

10 de maio de 2019

não é óbvio


O óbvio não é evidente.

O que procuramos determina o que é óbvio – o que queremos ver, muito menos do que o que está à nossa frente. E o que vemos e queremos ver depende de algo tão impreciso quanto um desejo. O abismo do caos. Nada é o que parece ser. Nada é o que é de verdade.

***

A gente tem essas conversas como se fosse algo palpável, mensurável. Como se fosse possível determinar sentimentos a partir de uma escolha de palavras ou de um conjunto de ações banais.

Não é assim, eu digo pra ela. Porque a pessoa disse A então ela quer B. Isso não existe. Talvez às vezes até seja o caso, mas a menos que a criatura te diga com todas as letras não tem como inferir desse jeito.

Mas não adianta. Na prática, a gente vê o que quer.

Quando ele foi embora, guardei algumas coisas no fundo dos armários e das gavetas, onde meus olhos não alcançassem. O que os olhos não veem o coração não sente. Nunca um ditado brega fez tanto sentido. É a mesma lógica. A gente escolhe não ver pra não sentir, mas quando queremos sentir vemos qualquer coisa. Inclusive o que não está ali.

- Porque nós não deixamos as coisas claras uns para os outros eu nunca vou entender.
- Ah, por medo. Medo de falar, medo de ser rejeitado.
- Mas não faz sentido. Quer dizer, antes de falar tu já vive na rejeição – ela só não foi verbalizada.
- Pois é.
- As pessoas têm medo de palavras, então. De ouvir. Isso é uma estupidez.
- Não necessariamente das palavras, mas do que elas vão te fazer sentir.
- Mas aí que tá – tu já sente isso. Tu já tá nessa situação. Antes de ouvir uma rejeição, tu já não é nada.

As coisas precisam ser ditas.

***

Tenho isso, às vezes, de pensar na vida como um mapa. Uma cartografia de existências. Cada um deixa atrás de si uma linha pontilhada de idas e vindas, encontros, paradas, saltos e quedas. 

Tantas linhas passam perto uma da outra, sem chegar a se cruzar.

As pessoas com quem não esbarramos na calçada. A colega para quem você pensou em dizer “não sei, tem alguma coisa em ti que eu gosto, acho que a gente se daria bem”. O idoso que sentou ao seu lado no ônibus e que teria gostado de te contar uma história se você não estivesse de fones de ouvido. A mensagem que não mandamos. A pessoa para quem não dissemos oi. 

As linhas passam perto – bastava olhar para o lado – mas não se cruzam.

E outras tantas se encontram sem seguir juntas. Podem andar lado a lado por um tempo e ali adiante voltam a se separar. Existe pelas pessoas que não chegamos a conhecer certa nostalgia do não vivido, mas as que conhecemos e perdemos – talvez entre elas vivam nossas tristezas mais profundas. Tudo o que poderia ter sido e não foi.

Linhas que se separam. Jardins que se bifurcam.

***

- O que tu vê, afinal?
- Eu vejo o medo.

O medo de falar demais e o medo de não dizer nada. O medo de deixar o tempo passar. O medo de não perceber que estava ali o tempo todo – só você não viu. O medo de que a sincronia deixe de existir e em breve estejamos de novo em tempos diferentes. O medo de olhar nos olhos e dizer: é isso que eu quero.

Não é óbvio?

4 de maio de 2019

amar em poucas palavras


- Ele fica melhor em ti do que em mim.

Um blusão velho, desses que a gente já bateu e agora só usa em casa. Marrom com listras brancas, as mangas já um pouco arregaçadas. Fez mais frio do que o previsto, e o casaco que eu tinha pensado levar ficou jogado sobre o sofá da sala.

- Até gosto mais dele agora.

Nos abraçamos no pátio na frente da casa e ficamos ali, olhando para o céu, deitados sobre o tapete velho que estendemos na grama. É preciso fugir da claridade para ver – para realmente ver.

- Por que a gente nunca fez isso antes?
- Boa pergunta.

Talvez o mais impressionante fosse o silêncio. A dimensão que era capaz de alcançar. Não entre nós, porque nunca precisamos dizer muito um para o outro, mas ao nosso redor. Sempre existe algum ruído – passos e vozes dos outros apartamentos, os carros que passam na rua, um helicóptero sobrevoando a cidade, o telefone, portas e janelas sendo abertas e fechadas, o elevador, as notificações no celular que mesmo silenciosas trazem o mundo a nós.

Mas não o mundo que naquele momento tínhamos diante dos olhos, em volta de nossos corpos – dentro de nós. Um mundo de escuridão e silêncio que nos envolvia em estrelas.

***

- Escolhe uma música.

Estávamos ouvindo Echo and The Bunnymen no meu quarto. Adiando o almoço, vivendo a preguiça dos domingos nublados.

- Nothing lasts forever.
- BAH.
- Que foi?
- Escolha estranha pra um casal que acabou de começar.

Dou uma risada.

- Tu é supersticioso assim? As coisas duram o que têm que durar.

Anos depois ele escreve uma música: no love should last until it ends. Nenhum amor deveria durar até o fim.

***

- Tava na parada e o cara perguntou pra onde eu tava indo, a pinta era muito estranha. I’m going to my girlfriend’s, eu disse pra ele.
- Girlfriend?
- É, ué. Não é?

***

Cada mísero diálogo da nossa vida juntos. Construídos a partir de uma simplicidade hoje quase impossível de alcançar. Fiquei com o pote dos sabonetes, onde agora guardo colares.

Amar em poucas palavras talvez seja o melhor jeito de amar. Amar sem precisar dizer.

Poderíamos ter mudado a vida um do outro. Mas não mudamos. Porque o mundo é grande demais e a vida é um piscar de olhos.

27 de abril de 2019

lá, não sinto tua falta


Sempre me imagino ainda mais longe. A distância elimina os vínculos.

Sobre mim uma arvorezinha que cresceu em um cômoro, mais ou menos a meio caminho entre a rua e a praia. O vento traz o mar até mim. Aqui, um não existe sem o outro. Meu coração vai com eles: sai do peito e segue, suave.

***

Quando não encontramos respostas, construímos falsas certezas.

***

- Desculpa, eu não sei o que fazer.

Qualquer um de nós poderia dizer isso. Ficamos sozinhos na mesa, os últimos colegas nos abanam do caixa. Decidimos tomar mais uma. Os dois querendo a mesma coisa, sabendo que não vai acontecer. Fabricando minutos para estender a noite na tentativa de que o desfecho seja diferente. Mas já sabemos como termina. O garçom deixa a garrafa a se afasta. Sirvo os nossos copos. Brindamos.

- Me diz o que tu pensa. Sobre tudo. Sobre qualquer coisa. Sobre como é o mundo em que nós somos capazes de dialogar.

Sei que é possível construir esse mundo juntando todas as coisas que não dizemos, todos os pedaços de frases pelo caminho. Talvez não fosse muito diferente deste, afinal. 

***

Se fosse para escolher um momento para compartilhar contigo, seria esse – o prazer de se sentir insignificante diante do mar. Tu não percebeu que foi o que eu tentei o tempo todo?

***

Escrevo no computador. Uso a caneta para os sonhos, devaneios, desabafos. Meus cadernos levam o fundo da minha alma. A essência de tudo que sou, sem qualquer tipo de filtro. Nenhuma ficção. Uma gota de ficção mancha tudo de ficção. Sempre penso que quero escrever sobre os livros que leio, mas nunca escrevo. Vou lendo um depois do outro. Chegava em casa e tentava escrever e depois ler um pouco. Depois de um tempo decidi intercalar, porque não consigo fazer as duas coisas na mesma noite, escrever e ler. Claro que consigo, mas sempre com a sensação de não ter feito bem ou o suficiente nem uma coisa nem outra. Queria encarar a escrita como algo natural, sem supervalorizar. Ao longo dos anos, acabei dando pra coisa uma dimensão muito maior do que de fato tem. Em tudo na vida, isso nunca funciona: ou a gente trava, ou cria expectativas impossíveis, ou idealiza o que não existe, ou tudo isso junto. Sublinho trechos enquanto leio. Uma vez, comecei a anotar todos esses trechos em um caderno. Tinha certeza de que iria até o fim (supondo que existiria um fim, o que não é verdade), mas só precisei de três ou quatro livros do Borges pra perceber que demoraria uma vida. No fundo, ainda tenho vontade de continuar. Não sei o que faria com o caderno depois. Muita coisa é assim na minha vida: tenho vontade de fazer, sem saber muito bem por ou para quê. Uso marcadores de página – a ideia era ter um de cada viagem que já fiz, mas não aconteceu. Posso ler a qualquer hora, em qualquer lugar, com uma guerra ao meu redor, mas só escrevo sozinha. De preferência à noite. Preciso do silêncio e da solidão. Da sensação de vazio que só é possível nesses momentos. Há uns anos, cheguei a testar acordar cedo, escrever antes de começar o dia. Durou três meses, e até que foi muito. Minha escrita, enfim, é solitária e noturna. Na praia até que varia, porque lá é possível conseguir silêncio e distância durante o dia também. A distância elimina os vínculos. Lá, não sinto tua falta.

20 de abril de 2019

me diz


- nenhuma certeza das coisas que não são palpáveis
- ao mesmo tempo, que certezas me dão as coisas que posso tocar?
- não posso dizer que existem
- es más mio lo que sueño que lo que toco
- perdi a conta dos dias, das chegadas, de tudo
- o tempo já não me importa
- nunca adiantou se importar com o tempo
- mas é tempo demais
- represando palavras
- até quando?
- a vida inteira eu falei sozinha
- uma língua que ninguém entende
- tu quer me ouvir?
- eu quero muito te ouvir
- qual o teu medo?
- porque eu hoje em dia só tenho medos inúteis
- e raiva também
- raiva de absolutamente tudo
- quantas vozes habitam em nós?
- desde quando habitar se tornou um verbo?
- a gente bem sabe
- e é inútil saber
- eu não sei de nada
- bem gostaria de saber
- me diz
- o que tu sente?
- eu deveria sentir?
- tu sente alguma coisa?
- gostaria de ter vivido em outro tempo
- porque esse que me cabe – não vale nenhum segundo

11 de abril de 2019

até que só reste pele


O corte do vestido também ajuda. Esses em que a cintura não é alta nem baixa demais. Prendo o cabelo. Desço os braços devagar, passando as mãos pelo corpo. Elas se detêm sempre no mesmo ponto.

Escuto o café fervendo no bule. O gosto das coisas que passaram do ponto. Não por descuido: às vezes é preciso.

***

- Invejo demais essa tua vista.

Os carros pequenos lá embaixo. As texturas dos prédios, janelas acesas. E todo aquele céu. Como uma janela pequena daquelas era capaz de emoldurar tanto céu?

Falar da vista da janela era escancarar qualquer porta. Só não vê quem não quer.

- Quer conhecer?

***

- Ei-la!
- Gente. É muito céu!

Posso sentir meus olhos brilhando. Como se quisessem ser maiores do que a janela, mais do que o próprio mundo, abarcar tudo. Fico olhando para o céu por uns instantes, sentindo a presença dele alguns passos atrás de mim. O que será que ele pensa, me vendo de costas? E não se aproxima por não saber como ou por ainda querer manter alguma distância?

Ainda.

Me viro e vou até a frente da estante. Os livros bagunçados, uns sobre os outros. Porque são tirados e devolvidos com frequência. Folheados. Vividos. Meus olhos param sobre um Proust.

- Posso pegar?
- Claro! Pode mexer à vontade.

É aquele momento. Exatamente aquele momento. O limiar de tudo que está prestes a acontecer. Os últimos instantes em que ainda é possível desistir: podemos olhar nos olhos um do outro, entender que foi uma escolha errada e sem dizer nada acabar o que não começou. Ou podemos falar um pouco sobre o livro que tirei da prateleira, às vezes olho para as páginas, às vezes para o rosto dele, ele pega o livro das minhas mãos, folheia em busca de uma passagem específica e me devolve com o indicador no início de um parágrafo, “aqui, lê a partir daqui”, eu começo a ler, nós dois em silêncio, de frente um para o outro, dessa vez mais perto, ele me observando ler, chego ao fim do trecho que ele apontou, engulo, “nossa”, não consigo dizer mais do que isso, “foda, né? O cara é muito bom”, eu deixo o livro sobre o batente da janela, olho mais uma vez para o céu e quando volto a olhar pra ele é porque sinto as duas mãos na minha cintura, uma de cada lado.

***

Sinto a mão dele subir pelas minhas costas e se encaixar na nuca, por baixo dos cabelos. Levo a mão que apoiava o rosto dele para o mesmo lugar. Deslizo para cima e para baixo, fazendo um pouco de força, puxando de leve os cabelos. Arranho as costas dele, a mão dele desce pelo meu vestido. Desvio meus lábios dos dele e começo a beijar o pescoço. Respirando com mais força. Coloco a língua na orelha dele, mordo de leve. Ele chupa meu pescoço. Respirações sonoras e mãos que querem abrir calças, subir por baixo de vestidos, atravessar todos os tecidos.

Até que só reste pele.

***

Tomamos o café que ele acabou de passar sentados na beira daquela janela. Nossos joelhos se tocam no centro da cena. O dia é cinza e sopra um vento mais frio. Prenúncio de outono.

- Planos? – eu pergunto.
- Nada. Só ficar lendo aí, acho.
- Coisa boa.

Bebemos mais um pouco do café em silêncio. Percebo ele olhando para mim, mas quando viro o rosto para olhar de volta ele baixa os olhos num susto. Dou um sorriso, mais pra mim mesma do que pra ele. Ele se escora de costas para a janela e diz, olhando para as próprias mãos, mais para si mesmo do que para mim:

- Posso te emprestar algum livro, se tu tiver a fim de ficar.

***

Que arranjo é esse?, tenho vontade de perguntar. Onde no mundo esse amor vai se encaixar? Pode mentir, desde que seja verdade.

4 de abril de 2019

uma história feita para fazer sentido


A dinâmica das coisas.

Nunca mais tinha visto um chiado na tv. E ali estava. Não fazia qualquer ruído, na verdade, mas a profusão de pixels hipnotizante e incômoda dançava na tela. Eu não entendo por que ligo a tv.

Lá fora, escuridão. Há horas a noite venceu o que restara do dia. Me deito na grama para olhar o céu. Poderíamos fazer isso juntos, não? É uma coisa que poderíamos fazer juntos. E senti tua falta, mesmo que tu nunca tenha estado aqui de verdade.

É assim, então? Sentir falta do que nunca existiu?

***

A dinâmica das coisas é essa oscilação de ritmo. Às vezes quero tudo, às vezes não quero nada. Dias de ser do mundo, dias de desaparecer.

As coisas acontecem sem que eu faça parte delas. Mesmo quando estou lá. Porque aquela não sou eu. É uma versão feita para eles, a partir deles.

Quem somos só existe para nós. E quem somos nós só somos quando estamos sós.

***

Eu canso fácil das coisas. Das pessoas. Na maioria das vezes não dá tempo de criar um laço. De de repente ser importante pra alguém. Porque eu nunca tenho interesse o suficiente pra ficar. Ou pra tentar. Não que eu não goste das pessoas – eu gosto. Mas eu nunca sou alguém que vai fazer parte da vida delas. É só enquanto as circunstâncias forem essas de proximidade. Senão acaba. Porque eu não consigo fazer essa função da manutenção. A não ser quando é uma daquelas pessoas que sabe-se lá por que eu entendo que, meu deus, preciso manter essa pessoa na minha vida. E em 100% dos casos essa não parece uma vontade recíproca. É ridículo, em suma. Por isso que no fim o melhor é ficar sozinha. Não dá trabalho.

***

Só que ninguém entende direito. E eu dificilmente encontro pessoas que compartilhem isso comigo, com quem eu possa falar a respeito. Sobre um monte de coisas. Querer viver numa cabana no meio do mato ou numa casinha de madeira na beira de uma praia vazia. Acho bem difícil estimar quantas pessoas já conheci na vida. Mas conto nos dedos as que dividem ou dividiram comigo pelo menos um desses interesses mais profundos. A sensação é de que todo mundo vive “do outro lado”. Às vezes eu entro nesse outro lado, passo um tempo por lá, bons momentos, mas em algum momento inevitavelmente preciso voltar. O absoluto não pertencimento a um espaço onde a maioria se sente tão bem, o eterno não se encaixar. E a gente passa a vida tentando. Mesmo. Mas ninguém entende a menos que sinta também.

***

Qual é a tua, afinal?, eu quero perguntar. Me ajuda porque se tu não disser fica difícil entender. De saber o que fazer. Fico aqui tentando descobrir se vale a pena ou não dizer as coisas que tenho vontade. Se ainda dá pra tentar ou se é melhor desapegar. Sempre tateando. No escuro. Pisando em ovos. Tentando não escorregar. E pra quê? Nem eu sei exatamente. Porque ficou essa coisa, assim. Não quero conversa, mas ei, como vão as coisas. 

***

Penso nas constelações que poderíamos mostrar um ao outro. E nas que poderíamos criar. Uma cadente que teria nos levado ao espaço: eu sei, tu sabe. Nosso jogo é de palavras. O mundo é tudo o que temos, mas nunca foi nosso de verdade.

28 de março de 2019

ônibus


Eu queria acreditar que sim, as palavras mudariam tudo.

Parou aí, daquela vez. E lá se foram dois meses. E aconteceu exatamente assim – as palavras mudaram tudo. Foram ditas, ganharam vida, ganharam o mundo. Mudaram tudo.

Só esqueci que não necessariamente elas mudariam tudo da maneira como eu gostaria. E aconteceu exatamente assim.

***

Tem aquelas coisas todas de viajar de ônibus – não ter muita escolha quanto ao horário da viagem ou quem vai sentar do lado. De repente a rodoviária nem vende mais passagens e é preciso ir até a cidade vizinha. Com outro ônibus. Nenhum poder de escolha, mas sempre a mesma expectativa: três horas para ler, dormir ou pensar. Três horas inteiras.

Não sei se era uma montanha. Não domino os critérios de classificação geográfica. Mas fiquei pensando que a menina que eu fui não caberia em si de felicidade com tanto mato no pátio dos fundos. Porque era o que eu mais gostava. Brincar no mato. Nem me ofendo quando as pessoas dizem, “bicho do mato”. Sempre fui.

E do outro lado a lagoa. Imagina aquela lagoa nos fundos de casa. Algumas das casinhas tinham um pequeno píer. Os barcos atracados. Crianças ali nadando. Imagina. “Mãe, terminei o tema, vou pra lagoa”. Que sonho.

É sempre assim que começa. Quando começo a sonhar acordada.

Se um dia eu tomar uma decisão, dessas pra mudar tudo, vai ser a de morar perto do mar. Sentar na varanda de frente pra água. Dar uns passos e estar ali.

***

As palavras.

Me disse tudo aquilo. Alguém realmente me disse aquelas palavras.

Tenho a tendência de achar que não é nada demais. Não é tão bom assim. Ninguém prestaria atenção. E quando alguém elogia deve ser por educação.

Será que posso ter esse tipo de impacto nas pessoas?

Bom, eu tive. E as palavras ganharam vida. Escrever – conceder o sopro da vida. Tudo mudou.

***

E Marte? Qual vai ser a primeira geração a ver alguém em Marte? Imagina o Bowie. Mas, pensando bem, que bom ele não estar aqui pra ver isso. A fantasia da vida em Marte se baseava justamente no fato de que não seria a nossa. Porque essa existência e essa raça merecem o fracasso ao qual estão fadadas. E num futuro já vislumbrável estaremos destruindo outros planetas além do nosso. Que sucesso.

Acabar com um planeta. Pensa na magnitude disso. Inviabilizar a vida não em uma cidade, no entorno de um rio, em uma região específica de conflitos, mas em um planeta inteiro. A espécie que vai causar a própria extinção. Quem mais seria capaz disso?

E enquanto não chegamos lá ficamos aqui, literalmente se matando. Por dinheiro. Porque uns acreditam em Deus e outros não. Por quem transa com quem. Por crenças e visões. Esquerda, direita. É de uma mediocridade, de uma estupidez.

Tem o que valha a pena, mas no fim das contas é isso: a gente merece acabar. E bom seria se isso acontecesse antes de estragarmos todo o resto.

***

Tudo mudou porque me disse o que disse e sumiu. Não que antes fosse uma presença constante ou alguém que de fato fizesse parte da minha vida. Não era. Mas na minha cabeça o efeito seria justamente o oposto – nos aproximaríamos. Que outro traço em comum poderia unir mais duas pessoas?

É específico demais. É raro demais.

E ainda assim foi o que aconteceu: o pouco contato de repente era nenhum contato, as respostas mais ou menos evasivas se tornaram respostas de uma palavra só, sem mais como foi o fim de semana ou como estão as coisas.

Depois da enxurrada que fez meu coração disparar – nada.

***

Esses dias passaram e deixaram uma atmosfera estranha. Uma energia diferente no ar. Quando foi que eu comecei a prestar atenção nessas coisas? A de fato ser capaz de sentir uma “energia diferente no ar”? Essa sensação que às vezes surge, sem motivo, sem explicação. Out of the blue, mesmo. Adoro essa expressão. Teria a ver com o céu?

De repente no meio da leitura estou lendo frases soltas. Sem unir o conjunto em uma narrativa com sentido. Porque me lembrei do vazio que ficou lá, à minha espera.

Voltar é sempre estranho. Nenhuma outra palavra.

18 de março de 2019

não nesses dias


Como, à revelia do que sabemos, prevalece essa sensação de que a vida só existe no lugar onde estamos. O sol nasce e se põe para nós. É dia ou noite. Inverno, verão. Chove ou faz sol. Mas sempre onde estamos. O resto do mundo – a cidade vizinha  existe numa espécie de imaginário paralelo. É, mas não é. Não nos toca. Não nos pertence o que não nos alcança.

Não cabe a nós, o mundo. É demais.

As folhas dessa árvore têm uma cor e uma textura impossíveis. É um tom de verde como tantos outros que reluzem ao sol e no entanto de todas as árvores que me cercam é dela que não consigo tirar os olhos. É a árvore da minha imaginação quando penso em desenhar uma árvore. Que bom não fazer tanto tempo desde a última vez em que desenhei uma árvore.

A gente cresce e fica assim: imbecis. Todos nós. Não merecemos o mundo, como espécie. 

Tem um canário amarelo que aparece de vez em quando. Um canário amarelo na árvore da minha imaginação. Como funcionam as pessoas que têm coragem de manter pássaros em gaiolas?

Ele está ali, cantando. Vento. Tanto que a rede chega a balançar de leve. Estou prestes a virar a página e me dou conta de que não lembro uma linha sequer. É literal, mas bem poderia ser uma metáfora. Sempre acontece. No sentido literal e no metafórico. Pensamentos que começam a jorrar de todos os lados, pensamentos que eu nem sabia que era capaz de pensar. E não param. Mas também nunca se completam. Um pedaço de uma ideia. Duas ou três frases soltas. A lembrança do ralo do tanque que preciso arrumar. A entrevista que acabei de confirmar. A pessoa com quem gostaria de falar sobre tudo isso. A pessoa que eu gostaria de ouvir. Todos os dias.

Os vizinhos dos fundos e a batalha pelo som mais alto. As mesmas músicas em ordem diferente. O dia inteiro. Não sei se leem ou não. Se dormem. E só consigo pensar nisso como sintoma da incapacidade de toda uma geração de ficar em silêncio. De ouvir os próprios pensamentos. É medo?

Porque dá uma ansiedade. De repente pensar em tudo. Inclusive tudo em que não se gostaria de pensar. 

O canário voou. Outros dois passarinhos se molham na pequena poça que a mangueira formou na grama. Devo aceitar? Tudo parece tão distante. Irreal. É o que acontece. Com as coisas e com as pessoas. Quando estamos distantes. Será que também pensa no que estou fazendo agora? Enquanto eu penso. Uma presença leve que ilumina tudo. Soou como uma despedida. Vamos nos ver de novo?

O que vou dizer na entrevista? Não existe botão de voltar. Arquivar. Deletar. É a vida, acontecendo de novo. Mas não nesses dias. Não era para acontecer nada nesses dias.

Um mar tão inquieto que só o próprio mar poderia acalmar.