26 de fevereiro de 2010

fim

Costumavam gravar coisas um para o outro. Às vezes um cd, às vezes pequenos vídeos ou partes de filmes, às vezes trechos de livros ou poemas lidos em voz alta. A voz dela era suave e baixa, mansa. A dele, grave, mas macia, acalentadora. Era tão mais fácil somente ouvir. E era tão mais fácil ouvir as palavras que eram de outros e não deles. A realidade não é complacente com casais que se pensam apaixonados. A ficção é até demais. A mistura das duas era gostosa. Um dia, então, as gravações e toda a tecnologia foram quebrados por um pedaço de papel passado por debaixo da porta. Uma folha de caderno velha contendo toda a sutileza de que só aquela mulher seria capaz com palavras. "Eu ainda não ouvi todas - ainda não! -, mas parece que você sempre sabe do que eu vou gostar. Parece que sabe que vou gostar de me apaixonar por uma banda qualquer, passar um mês sem ouvir outra coisa e, depois, deixá-la ali, ocupando espaço, e ouvir de quando em quando."

19 de fevereiro de 2010

do impensável

"A música não vem daqui."
E era verdade.

13 de fevereiro de 2010

a janela nova

Os vizinhos da frente trocaram uma das janelas da casa. Notava-se a madeira nova, crua - sem tinta e sequer verniz -, apenas lixada, em contraste com as demais, todas velhas, pintadas de forma tosca por um marrom descascado nas partes mais manuseadas e batidas. A nova janela, dotada de uma beleza singular que apenas a simplicidade - a rusticidade - pode conhecer, suscitava nele, deitado na rede na varanda de sua própria casa, uma curiosidade quase infantil. Por que havia sido colocada ali? O que acontecera com a anterior, a velha? Seriam cupins? Alguém a quebrara? Não havia como saber. E, no entanto, ali estava ela, a nova janela, encarando-o do outro lado da rua, com seus vidros e abas abertos, sua cortina branca fechada em balanço com o vento, seus donos sumidos em algum lugar no interior da casa. Quem eram seus donos? Não havia como saber. Ele não conhecia seus vizinhos. E, no entanto, ali estavam eles, em algum lugar no interior da casa. Era possível ouvir suas vozes, mas não era possível distinguir o que diziam. Na varandinha, muito pequena, descansava silenciosa e vazia uma cadeira de diretor, vermelha. O que fazia ali? Não havia como saber. E antes que ele pudesse continuar a divagar, a cortina branca da janela se abriu. Foi aberta por alguém que não mostrou o rosto e que logo desapareceu novamente no interior da casa. Na parede ao fundo, branca, lisa e suja, próximo à porta, velha como as outras janelas, um espelho. Do outro lado da rua, então, ele pôde enxergar sua rede refletida. Mas não seu rosto.

7 de fevereiro de 2010

o fogão

O sono, atrasado, agora fazia pesarem suas pálpebras de menina. Um rosto tão macio e inocente não merecia aquelas olheiras. Os olhos azuis e doces não mereciam aquelas lágrimas amargas. Deixou de lado, então, sobre a mesa de centro, o bauzinho de cartas e fotos e atirou-se sobre o sofá como o faria a menina de dez anos que trazia dentro de si. Deitou a cabeça sobre a almofada, cobriu-se com a capa do próprio sofá e deixou-se vencer pelo sono, atrasado. Entregou-se à agradável sensação de apagar, de se livrar do mundo e da vida, mesmo que por um período de que ela sequer poderia sentir o tamanho. Ainda antes de dormir, pôde aspirar o gás, vindo do apartamento da vizinha. A velhinha, beirando os oitenta anos, sempre acordava cedo para cozinhar e assim ia até tarde da noite, mas o fogão já era tão velho, e todos os vizinhos próximos sentiam o cheiro de gás vindo da cozinha dela o dia todo. Ih, esse não tem mais conserto, ela lamentava, mas minha aposentadoria não chega pra um novo, e esses remédios todos cada vez mais caros também, não dá, não. Naquela noite, no entanto, a velhinha não estava mais cozinhando. O filho, de férias, a levara mais cedo para duas semanas em Fortaleza, sabendo do antigo desejo da mãe de conhecer a Dragão do Mar. E os vizinhos acharam graça do fogão da velha, que, mesmo já desligado, ainda espalhava seu cheiro pelo prédio.