31 de julho de 2012

a camila

Ela tem a vida que eu queria. É fotógrafa e amiga de outros fotógrafos. Conhece, trabalha com ou é também amiga de músicos, escritores, poetas, artistas. As fotos dela são incríveis e me fazem pensar em como. Como é possível sempre estar lá quando acontecem os momentos que se transformam em fotografias – que se transformam em arte. Ela é a prova, literalmente viva, de tudo o que eu não sou.
O nome dela – Camila Severino – é citado com frequência, e não sou capaz de dizer que o trabalho não mereça a badalação. São fotos em cafés, bares, livrarias, parques, praças, ruas. Lugares e pessoas sempre bonitos. Viagens, encontros, coisas interessantes, e em tudo aquela aura de diversão, de entretenimento, é, eu sou paga pra isso, é assim que ganho a vida. Camila canta também. É linda e feliz.
Outro dia, não há muito, postou uma foto – tirada pelo Leon, ela disse. Leon era Leon Eifler, escritor bem sucedido que eu tivera a chance de entrevistar uma vez e que, dada a bonita mistura de tons de cinza, a câmera olhando diretamente para a expressão leve no rosto dela, certamente era um dos amigos artistas. A foto mostra um apartamento conjugado, a luz do sol entrando pelas janelas. Estavam sozinhos?

*

Era uma quinta-feira do começo de dezembro. O calor costumeiro de Porto Alegre que não se envergonha em chegar cedo demais, vestidos e bermudas, braços, ombros e pernas à mostra. Camila trabalhava com uma banda e, em São Paulo, passava os dias entre fotografar os shows e tomar uma cerveja, na companhia de Leon e outros caras. Dois escritores, um poeta, dois fotógrafos, cinco músicos, as namoradas dos que tinham namoradas – esse era o grupo da Camila naquela quinta-feira.
Quanto a mim, estava sentada em uma cadeira, em um fim de noite de turma, no apartamento de uma das meninas. A maior parte dos colegas já havia ido embora, e além dela e do namorado restavam só mais três pessoas. Em outra cadeira, do lado oposto da sala, estava o Beto e no sofá entre nós, o Felipe, com quem eu já havia ficado algumas vezes, algumas semanas antes. Era inteligente, não era feio, ótima companhia e alguém com quem até então eu costumava gostar de conversar. Mas ele gostava de mim.
Minutos antes da sala, nós estávamos na cozinha, um de frente para o outro, e quando o assunto acabou eu gastei um pouco mais de tempo olhando diretamente para ele. E tudo o que havia de instigante no Felipe desapareceu naquela hora. Me olhava como se nunca tivesse visto uma mulher ou como se eu fosse alguma espécie de divindade que tivesse de ser admirada enquanto havia tempo, como se eu pudesse sumir no ar a qualquer instante. A feição do rosto dele não poderia ser mais insuportável de olhar. E não importava o assunto novo que eu trouxesse ou quantas vezes eu virasse de costas e olhasse para outros lugares – a expressão na cara dele continuava a mesma, patética, tosca, abobada. No sofá da sala, ela ainda estava lá, e ele não desviou os olhos de mim enquanto tirou os tênis, depois as meias e começou a mexer nos pés. Do outro lado, o Beto me olhou. Meio rindo, meio embasbacado. Tanto quanto eu.
Eu nunca tinha vivido ou assistido a nada tão repugnante. Felipe destruiu a si mesmo em menos de uma hora e, diante da minha estupidez, conseguiu fazer aquela noite a pior da minha vida. Não dormi. Saí assim que o dia clareou, enojada, sentindo toda a sujeira do mundo no meu corpo, e chegando em casa fui direto para o chuveiro. Lavar e esquecer.
Em São Paulo, Camila, Leon e todos os outros estavam em um dos bares da Augusta. Sentados ao redor de três mesas, bebiam e conversavam. Eu podia ouvir, na foto que registrou a noite, as risadas mais graves dos homens entre as mais agudas das mulheres. As maquiagens e sorrisos bonitos delas. O jeito deles de vesti qualquer coisa e vim. A harmonia que parece transbordar quando pessoas bonitas, educadas, inteligentes e interessantes decidem se reunir.

*

Entrevistei Leon meses depois dessa noite, tão desastrosa para mim quanto agradável para Camila.
Ele me recebeu quase como se eu fosse uma amiga. Mesmo sem nunca ter me visto, deu-se o direito de diminuir meu nome, chamando pelo apelido óbvio, uma atitude de quem sabe que, apesar de soar ousado, uma intromissão, trata-se na verdade de um gesto carinhoso. Foi encantador durante todos os minutos da hora que passamos conversando. Trocamos um beijo no rosto na despedida, e do lado de fora, enquanto esperava o motorista do jornal, não pude deixar de pensar no privilégio que ela tinha, possivelmente sem se dar conta.
Durante quase um ano e meio, Camila namorou um dos integrantes da banda de que era fotógrafa. Terminado o namoro, teve início a aproximação com Leon. Quase automaticamente. A amizade, as fotos, os dois no mesmo apartamento. As coisas simplesmente acontecem para ela. Com ela. Na vida dela. A vida que eu queria.

*

Estou na cozinha lavando a louça depois do jantar. Na sala, ele assiste a alguma coisa na tv. No momento em que eu termino de lavar o segundo prato e pego a panela de cima do fogão, ele me puxa pela cintura, empurra o registro da torneira e me leva até a sala. A tv está desligada e o som vem agora do rádio, que toca Burning Love. Ele sabe que eu sou uma garota Burning Love muito mais do que Love Me Tender. Minhas mãos ainda molhadas marcam o moletom que ele usa enquanto me conduz para um lado e para o outro antes de começar a me rodar e depois a rodar comigo pela sala. Se não for o único, Leon é um desses poucos homens abençoados e fica extremamente sexy usando abrigo. E ele dançando comigo essa noite, o fato de ter me tirado para dançar enquanto eu lavava a louça – é simplesmente gracioso. Em cada movimento, o meio sorriso todo para mim, os olhos castanhos nos meus. Muito mais do que eu poderia imaginar ou esperar de um sonho.

*

A ex-namorada de Leon não mora mais na cidade. Quando li o primeiro livro que ele escreveu, há mais de cinco anos, um detalhe me escapou para só ser notado recentemente: um dos contos foi dedicado a ela. pra Marília. As letras pequenas em itálico, simples e bonitas, logo abaixo do título.
Não sei nada dela, da Marília, além do fato de que se mudou. A história dedicada é viva – ardente – carregada de verossimilhança – e eu imagino o que há de verdade para além daquela ficção. Mas também não sei. O que sei é que quando notei a presença das duas palavras – pra Marília – durante vários minutos não consegui olhar para outra coisa na página. Eu estava longe, minha cabeça mergulhada em devaneios.
Tentei imaginar a sensação de ter um livro ou um conto dedicado a mim. Mas, muito mais do que isso, pensei em como seria se eu tivesse alguém para quem pudesse dedicar uma história. Alguém tão especial que merecesse as que poderiam ser, talvez, minhas melhores palavras. E alguma coisa dentro de mim teme a possibilidade de essa pessoa nunca existir. Do amor não existir para mim.

*

Camila é social. De algum modo, atrai as pessoas, acontece, vive. Eu a invejo a cada demonstração que tenho disso. Por mais que eu me debata contra o mundo que me cerca, o meu mundo, todos os meus esforços não surtem qualquer efeito. Eu não consigo me livrar de nada - nem dos lugares, nem das pessoas, nem do trabalho, nem das palavras. É possível que sejamos de tal modo atrelados a um tipo específico de futuro? Alguns de nós vêm ao mundo com a sorte da Camila, outros não e não há nada que se possa fazer a respeito? Eu tendo a acreditar que ainda não fiz o suficiente - que ainda não me debati com a força necessária para romper a bolha ridícula em que estou presa. A Camila é a prova do que eu não sou, mas é também a de que existe a possibilidade. E se eu não acreditar nisso, se um dia eu parar de acreditar nisso, então não haverá mais nada.

*

Estou saindo atrasada do apartamento de Leon. De propósito, ele não ativou o despertador na noite anterior, e eu abro os olhos com um susto, uma hora depois do que deveria. Ele acorda com a minha movimentação pelo quarto, juntando e vestindo as roupas ao mesmo tempo em que tento escovar os dentes e pentear os cabelos. Dou uns tapas nele e ele ri, enrolado no edredom. Vem cá, volta pra cama, pede enquanto jogo o celular e a necessaire na bolsa. Me abaixo para dar um beijo de tchau e quando me viro para sair ele fica me puxando pela mão. Não posso, eu digo, não faz isso. Ele me solta, eu jogo outro beijo e sigo para a sala, em direção à porta. Giro a chave, chamo o elevador, abro a porta da rua no hall e paro. Não posso, eu penso. E faço o caminho de volta para ter o corpo inteiro beijado.

*

Eu preciso acreditar, eu penso. Ou não haverá mais nada.

26 de julho de 2012

a ideia

- Dá pra tomar isso bebendo?
Você pergunta na hora que eu tiro uma das pílulas da cartela e boto na boca enquanto nós bebemos champanhe em taças de vinho. A resposta é um sonoro "pfffff", meus lábios sacudindo com o ar que passa, como se eu dissesse sei lá se posso, mas olha a minha cara de quem vai transar. A vida não é bem o que esperávamos que seria.

A magia da juventude - de sorrisos, festas, bebedeiras, sexo, relacionamentos - não. Não era assim. Eu estava no centro de todas essas coisas, e era exatamente isso: elas aconteciam ao meu redor. Como em uma conversa; as contribuições que parecem sair da minha boca para atingir o ar entre as cabeças e sumir, inteiramente ignoradas, como se eu falasse de outro assunto e com outras pessoas. Como se eu não estivesse ali.

- Vamos sair?
- Sim.

Ouço do quarto o alerta de mensagem do celular que está na sala. No momento em que soa, o barulhinho acorda a expectativa, e um ou outro nome surge automaticamente. São segundos de ilusão até eu dizer a mim mesma que é minha mãe ou a operadora. Eu nunca falho.
Existe algo na minha cabeça que eu não posso deixar para trás. As vidas que me cercam, quando não há nada a perder. O que me mantém viva não no sentido estrito da expressão, fisiologicamente, fisicamente. O que me mantém viva na medida em que me faz sentir. E sentir apesar do resto - todos os momentos de cansaço, raiva, tristeza e frustração que têm o hábito impertinente de ressurgir.

- Isso é inútil.
- Por quê?
- Porque ninguém conquista só com palavras.

Mas tem você.
E não há nada como você.
Essa ideia de alguém que pode me completar. Da pessoa que encontra no apartamento de dois quartos do quinto andar o mesmo que eu. É ali que queremos estar. Uma ideia em ideia. Você nunca me decepciona. Apoiados na sacada, olhando cá de cima a colcha de prédios, ruas e árvores, somos um casal invejável. Eu me apaixonei por uma pessoa real? Ou isso ou você é a fantasia dos meus desejos. Nossas noites e manhãs. Os segundos tiquetaqueando nossos corpos nos lençóis.

- Gosto de lavar louça no inverno.
- Por quê, meu Deus?
- A água quente esquenta as mãos.

Você nunca tirou uma foto comigo. Das reveladas e guardadas e vistas aleatoriamente durante a vida. Elas seriam a prova de que um dia nós existimos juntos não fosse o fato de não existirem. As fotos guardam enquanto duram, e se houvesse uma da briga, outra da raiva e uma terceira das lágrimas eu talvez não pudesse dizer que esses momentos não aconteceram. Sem fotos, é com você que eu rio até o estômago doer. Isso pode ser amor?

- Você sente falta?
- Todos os dias.

22 de julho de 2012

o lugar

- Tu por acaso não tem um isqueiro aí?
- Tenho - respondi, e procurei no bolso lateral da mochila e alcancei para ele meu isqueiro rosinha.
Não entendo as pessoas que carregam caixas de fósforo.

Depois que eu me mudei, rodoviárias passaram a ser um cenário constante - chegando ou indo, esperando, circulando, vendo malas e pessoas em todas as direções e em todos os lugares. Imagens de quando eu era criança e vinha a Porto Alegre com minha mãe surgem na minha cabeça: a rodoviária parecia para mim um labirinto imenso de que só minha mãe conhecia as saídas. Hoje passo tanto tempo lá, na rodoviária, às vezes mais do que gostaria, que quase tudo já perdeu a graça. Ou tudo. Mas de uma certa maneira ela ainda me agrada. É feia, desconfortável, atrasada e estranha, mas me agrada. Seja pelo hábito, seja por qualquer presença misteriosa na atmosfera, seja ainda pela melancolia de ficar sozinha, estar lá é confortante.
Contrariando as expectativas, recentemente descobri, em um dos meus passeios, uma ala nova. Por vezes penso que talvez ela exista desde sempre, e eu que nunca havia percebido, mas prefiro acreditar que não fui tão desatenta e durante tantos anos. É um corredor comprido no segundo andar, com bancos distantes uns dos outros, de frente para o Guaíba. Está sempre vazio, e é gostoso sentar lá para ler com o sol de fim de tarde batendo nas pernas.

- Vai pra onde? Não é pra Lajeado, é?
- Não, não, vou pra Canela.
- Passear?
- Não, minha família é de lá.
- Bah, nunca tinha conhecido ninguém que fosse de lá mesmo. É legal?
- Ah, não sei. Foi bom pra crescer. E é confortável de morar também. O problema é que as possibilidades se esgotam rápido.
- Que é o que acontece em toda cidade pequena, né.
- É, bem por aí.
- Mas como é lá? Todo mundo sabe da vida de todo mundo?
- Não... Quer dizer, depende. Não são cinco mil habitantes, então não. Mas se tu pegar círculos de famílias, e amigos, e conhecidos, e os apêndices relacionados, aí sim. Não sei se tudo, mas dá pra saber um monte de um monte de gente. Ouvir, no caso. Saber é outra história.
- E o que que sabem de ti?
- Ah, não sei. Devem saber que eu me mudei - eu rio.
Ele sorri.
- No meu caso, acho que nem sabiam que eu existia antes, pra poderem notar que eu saí.
- Eu queria conhecer Lajeado. Não sei por que, mas tenho curiosidade.
- É meio melancólico demais, sabe.
- Tu estuda aqui também? Que que tu faz?
- Engenharia civil, grande futuro.

Tinha uns olhos verdes faiscantes, intensos, e eu poderia só ficar olhando, nada mais. Cabelo castanho, curto, do tipo que teria cachos se fosse maior. Ele era bonito, em suma. Mas não sorria muito; quando o fazia, passava a impressão de que não queria, como se sorrir fosse errado. De costas, fumando apoiado na grade, era uma dessas pessoas que renderiam um personagem. Perguntou o que eu estava lendo, e eu mostrei a capa do meu exemplar de Exit Ghost. Sorriu de novo.
Movimentou a cabeça em convite para eu ir com ele, e seguimos andando pela plataforma. Fomos até o fundo, como que explorando o que ainda nos era desconhecido, e voltamos. No fim, o lugar mostrou-se tão comum quanto qualquer outra parte da rodoviária - mas ainda assim diferente.

- Não é um lugar que vale a pena?
- Onde?
- Aqui.
- Aqui Porto Alegre? Ou aqui exatamente aqui?
- Aqui exatamente aqui.

Olhei outra vez nos olhos verdes e sorri.
Ele tirou o celular do bolso para ver as horas e em seguida sentou ao meu lado abrindo a mochila. Tirou de dentro um caderno, rasgou um pedaço de uma folha.
- Tu por acaso não tem uma caneta aí também?
Entreguei a caneta que por acaso eu tinha, ele escreveu umas linhas, dobrou o pedaço de papel e me entregou ambos.
- Meu ônibus deve estar quase saindo.
Jogou a mochila no ombro direito e foi embora. Antes de chegar à curva, olhou para trás e sorriu uma última vez. O conjunto de olhos e sorriso mais intrigante que eu já vi.

Meu ônibus saiu meia hora depois, e sentada na janela, sempre a 35, tirei do bolso o pedaço de papel dobrado.

"Os rostos que a gente vê aqui nunca mais voltam."

18 de julho de 2012

a carona*

Claro, podemos nos encontrar, sim.
A fantasia era doce. Ele entraria, ofereceria cerveja: a gente começaria a conversar, sobre sabe lá, qualquer coisa, e aconteceria. O que acontece quando duas pessoas que se conhecem pouco passam a se conhecer mais. A curiosidade, a vontade, como tem de ser, o gosto bom de todos os começos.
Que dia tu prefere?
Brincar com as palavras sempre me encantou de alguma forma. As múltiplas possibilidades na mesma frase, e eu era a senhora que controlava o tempo e mandava e desmandava nos elementos e na ordem enquanto as ideias que vinham não sei de onde - e até hoje eu não sei - me contavam uma história.
Qualquer coisa me liga.
O apartamento dele era agradável, tinha uma sala espaçosa, e pela janela era possível ver o céu e a copa das árvores da rua. Era uma tarde chuvosa. Fiquei observando os detalhes - a cor das paredes, os livros e os cds, a madeira da mesa, a toalha que, se não fosse igual, lembrava uma que minha mãe costumava usar - enquanto procurava um lugar onde deixar a bolsa. Ele fazia café e da cozinha perguntou qualquer coisa que eu respondi olhando para o tapete e o tecido do sofá.
Pode ficar à vontade.
Ainda que digam que é o acaso que controla o mundo, não pode ser o acaso. Quando duas pessoas que pensam e sentem da mesma forma, mesmo sem saber disso, de repente se encontram. E as palavras de um são do outro. Não pode não significar. Que o que une na verdade não una e seja um capricho, que ter visto nos olhos dele algo que eu também vejo nos meus seja uma coincidência.
Tu escreve?
A conta dos copos já havia sido perdida - se em algum momento foi começada. Olhei para o pequeno grupo que acabara de chegar e o reconheci. Usava jeans, tênis e um blusão azul marinho. Foram mais alguns copos e idas ao banheiro até a hora em que ele parou de conversar para cumprimentar o restante das pessoas e me viu. Ele sorriu e acenou. Eu sorri e abanei.
E aí, como é que tá?
Eu costumo sublinhar trechos dos livros enquanto leio. Uma frase ou um parágrafo que falou mais alto. Não sei exatamente por que faço isso - até hoje, eu só voltei a folhear um ou dois em busca dessas marcações. Talvez a intenção seja lembrar, em trinta, quarenta ou cinquenta anos, os pensamentos que eu considero hoje. E mesmo assim não consigo ver por que seja importante. O fato é que foi um hábito adquirido depois que eu mudei de cidade. Os livros dele na minha estante, todos lidos em um tempo em que eu ainda não sonhava, estão intactos, sem qualquer risco meu.
Tu vai pro mesmo lado?
Via o rosto dele sob a luz dos postes enquanto falávamos sobre música, relacionamentos e internet. Passamos pelos bares, que ainda estavam cheios, e eu secretamente agradecia por ter saído de casa aquela noite. À medida que avançávamos no percurso, enquanto o ouvia falar, inevitavelmente eu pensava em como seria se ele fosse outro, e não alguém que eu já li.
Eu vou junto.
O melhor de quem domina a língua que fala é ouvi-los falar: as concordâncias corretas, os plurais, as conjugações, tudo no lugar, com uma sonoridade tão prazerosa quanto música. Não por acaso os cancionistas dizem que a fala humana é ela própria uma forma de canção. Melodia e letra.
Agora que tu já nos fez vir até aqui.
O prédio ficava na metade da quadra, e àquela altura já estávamos na esquina. Ele parava para que eu passasse na frente nos trechos mais estreitos das calçadas. Gentileza simples, gostosa de sentir. De vez em quando eu virava o rosto para ver as expressões e os gestos que ele fazia. Sorria diferente, ao mesmo tempo cheio e comedido. Como se quisesse sorrir e esconder o sorriso no mesmo movimento, presenteando com incógnitas.
Bem que tu podia ligar uma hora dessas.
Há algo em caminhar à noite que os dias jamais serão capazes de oferecer.

*Baseado em fatos reais, só que não.

11 de julho de 2012

a loucura

Era verde, a Janaína. E bastante complacente também, gostava de me ouvir. Ou pelo menos não demonstrava sinais de incômodo ou impaciência como as outras. A Sandra, por exemplo, era antipática, fazia cara feia quando eu me aproximava ou não me deixava falar, interrompia a toda hora. E a Bruna, geniosa como só ela, não aceitava nem um relato resumido do dia no escritório. Só a Janaína me entendia. O problema da Janaína, contudo, é que ela não falava. Toda a compreensão ela compensava com silêncio.
- E então, Janaína, o que eu devo fazer? Falo a verdade ou enrolo meu chefe outra vez? - eu perguntava esperançoso, esperando um conselho sábio, mas ela era só silêncio.
Chegava do trabalho, sentava perto dela.
- Que dia, Jana, tu não tem ideia. Eu ainda vou enlouquecer naquele escritório. Hoje o estagiário chegou cheirando à maconha. Como um estagiário vai trabalhar cheirando à maconha? Como um chefe acredita no estagiário que foi trabalhar cheirando à maconha quando ele diz que é um incenso novo que acabou de chegar da Índia? Como um chefe pede ao estagiário cheirando à maconha onde comprar o incenso? Como o estagiário cheirando à maconha é capaz de responder "na Redenção, mas às vezes eles te enrolam, tem que cuidar" e ouve do chefe que vai ir lá no domingo ver se encontra, "no brique, né?"? E a secretária encontrou uma maneira de não esquecer mais de passar os recados que nos deixam. Disse ela, orgulhosa: "Agora eu digo: o senhor ou a senhora ligue diretamente para a pessoa com quem deseja falar". São uns primores, essas secretárias. Não acha, Jana?
Tudo isso eu dizia. Isso e uma miríade de outras coisas. Mas a Janaína nada. Era uma musa calada.

- Você acha que sou louco?

A pergunta se deixava ficar, pendente e escancarada, e ele não percebia. Ele era o Rogério, o que quase ninguém sabia, porque todos diziam Roger. Roger não se incomodava com isso. Roger era funcionário em um escritoriozinho de advogados. Escritório pequeno, de causas pequenas, de salas pequenas e advogados pequenos também. Roger também não se incomodava com isso. Os outros – o chefe abobado, o estagiário maconheiro, a secretária burra e os colegas fofoqueiros que também eram tudo isso – achavam que Roger era esquisito: às vezes ele sentava em uma das cadeiras da sala de espera para tomar café e conversava com a samambaia.

- Ele chama ela de Adri.
- Quem é Adri? Temos uma estagiária nova?
- Ele não tem mulher.
- Quem não tem mulher?
- Ele fica olhando fixo, parece um psicopata.
- Tem um psicopata aqui?
- Será que ele é gay?
- Quem?
- Parece que dorme de olho aberto.
- Eu durmo de olho aberto às vezes.
- Disseram que a mãe dele era louca, doida de pedra, vai ver é por isso.
- É... Como é que se chama, mesmo? Genérico? Genésico, isso.

Você percebe agora, Roger? É isso que pensam de você. Você não vai fazer nada?

- Meus colegas do escritório são estranhos. Ficam me olhando. Uns como quem diz “ah, coitado...”. Outros parecem que têm medo, vê se pode. E ficam cochichando, principalmente quando eu vou conversar com a Adri. A pobrezinha fica lá sozinha o dia inteiro, ninguém é capaz de parar pra falar com ela. Eu tenho coração mole. E sou educado também. É crime isso, Jana?
Jana nunca me respondia.
Se eu tentava a Sandra: “Nem vem, o dia hoje foi um inferno, esse calor. E esses teus vizinhos não calam a boca. Eu tô um caco. Me vê um pouco de água aí. Por favor, né, é o mínimo, porque depois de passar o dia todo...”. E a Bruna: “Sai daqui, não quero ouvir chororô. Isso, vai pra lá”.
Deprimente.

Roger. Você precisa de um analista.
O quê?
Sua mãe era louca. Doida de pedra.
Eu não preciso de um analista.
É genético.
Eu preciso?

- Doutor, o senhor acha que sou louco?
- Você acha isso, Roger?
- Eu não acho, mas
- Por que você acha isso, Roger?
- Eu falo com plantas, doutor.
- Você fala?
- Eu falo.
- Pois não me diga: eu também.

Você acredita nisso, Roger?

E o Roger, que não se incomodava muito com as coisas relacionadas a ele próprio, não se incomodou com isso também. Voltou para casa acreditando na sanidade.

- Eu não sou louco, Jana. O doutor também conversa com as plantinhas dele.

Se todas as pessoas são loucas, todas as pessoas são sãs.
Você acredita nisso, Roger?

3 de julho de 2012

o cara

Falta de inspiração, tenho certeza de que ele diria. Toda aquela petulância de quem se sente capaz de tudo. De quem sabe tudo. Um bosta, eu diria. Debaixo da asa da mãe, sem se assumir, e vem dizer que é livre. E enche a boca pra falar. "Eu faço o que eu queeeeero", pra todo ouvido desocupado poder escutar. Andando como se fosse dono; "Isso aqui é minha primeira casa", quase canta, cheio de si, circulando entre os bares com aquele arzinho de boêmio. Dentro da jaqueta de couro, atrás dos óculos escuros, e vai cumprimentando tantas pessoas quanto eu levaria uma vida inteira para conhecer. "Bah, nem sei quem é esse cara, meu. Só sei que conheço." E aí eu perco um tempo imaginando qual desses comentários ele usaria para me descrever quando passasse por mim na rua. 'Conheço o cara lá da faculdade. É meio que meu vizinho também, às vezes a gente faz um som juntos e coisa.' Poderia ser. Não sei, é provável que eu nunca saiba. E íamos assim, falando de alguém da faculdade, de alguma coisa do trabalho, de uma música, quem sabe, em direção a qualquer bar, quando a encontramos. Se pendurou na hora no pescoço dele, os cabelos caramelo compridos roçando na barba malfeita que ele trazia quase invariavelmente. “E aíiii”, um beijo na bochecha, “qual vai ser a noite hoje?”. “Não sei. Que que tu tá afim de fazer?”, ele disse botando o braço ao redor da cintura dela. E continuamos; os dois entrelaçados, eu com as mãos nos bolsos vazios do jeans velho. Ele tinha esse jeito meio descolado, meio indiferente que todo mundo costumava adorar. Conquistava as pessoas sorrindo de canto, fazendo uns comentários às vezes infames outras irresistíveis. No final da noite, depois dos beijos e amassos cor de caramelo, cabelos afastados a toda hora, estávamos os dois no meu apartamento outra vez. Do chão, usando o assento da poltrona como apoio pra cabeça, ele fumava um cigarro e me olhava. Eu, jogado no sofá, olhava pro teto, olhava pra frente, olhava pra ele. Aqueles momentos de uma tentativa frustrada de pensar e não pensar ao mesmo tempo. “Pensando em quê?” “Nada.” “Tu sabe que isso não tem a ver contigo, né?” “Isso o quê?” “Ah, para, meu.” “Então tá. Boa noite.” Um bosta, fui pensando, e deitei, na expectativa de dormir e na certeza de que ele viria atrás de mim. “Para com isso”, ouvi a voz dele no escuro, vindo na minha direção. E mesmo que eu fosse responder - muito antes ele estava também na cama, me envolvendo com o braço direito, beijando meu pescoço. Assim eram nossas noites, ou a maioria delas. O sexo depois da discórdia, o amor depois da farsa. Nada que já não estivesse morto no dia seguinte, antes que um de nós atingisse a calçada. Chegávamos à faculdade, encontrávamos turmas diferentes. Ouviam-se dele as exclamações de “Cara, que noite, meu!” ou qualquer coisa parecida igualmente sem significado. “E aí?” era o que meus colegas ouviam de mim. Minha cabeça baixa, meu andar esguio e esse jeito de encarar sem olhar diretamente nos olhos por mais de alguns segundos. Em contraste, ele era uma daquelas pessoas que não precisa de esforço para ser notada ou ouvida, que anda confiante e tem, quase sempre, um grupo de amigos ao redor. Eu sentia raiva. Dele e de mim, idiota e submisso. Diálogos curtos de ‘somos vizinhos’ em troca de noites escondidas. Uns dias depois, ele tocou a campainha lá em casa. “Olha, passei num restaurante e trouxe uma janta pra gente. E vinho!”, disse enquanto deixava as sacolas na bancada da cozinha e vinha me abraçar. O sorriso mais bonito, os olhos verdes faiscando de alegria e inocência. Quem não conhece compra fácil; eu conhecia e comprava todas as vezes. Me fiz de difícil, virei o rosto, não sorri, saí do abraço dele. Inútil. E premeditado também, porque eu sabia que ele não desistiria. Me abraçou enquanto eu estava de costas, me beijou de um lado, depois do outro, enquanto ia dizendo "para, não fica bravo comigo, eu sei que tu não tá bravo" entre outro e outro beijo. Até que eu cedia, me virava de frente sorrindo, escorado na bancada da pia, e nos beijávamos outra vez. Naquela noite, depois do jantar, do vinho, dos beijos, depois de ele tirar minha camiseta enquanto eu abria o cinto e o jeans que ele usava, depois de nos abraçarmos com força, suspirando de prazer, ele suado, respiração audível, depois de deitarmos lado a lado e ele dormir, depois disso eu abri os olhos no escuro. Olhei pra ele do meu lado sem enxergar não mais que um contorno na escuridão do quarto. Não sei se era medo, vergonha ou se era só comodidade. Porque não devia ser ruim, pra ele, aproveitar o melhor de cada um, sugar o melhor de cada pessoa e viver. Ele se divertia, todo mundo gostava dele, não tinha nada do que reclamar. Não tinha nada com que ele precisasse se preocupar; era só contornar a situação comigo, dar o que eu queria, me convencer, e tudo ficaria bem outra vez. Mas naquela hora, deitado no escuro, olhando pro teto, mesmo com ele do meu lado eu tinha perdido as certezas que talvez tivesse. Não acreditava mais, com toda a minha boa vontade, no que ele dizia sentir e que por vezes até demonstrava de formas que eu não esperava. Um dia foi me encontrar em um café perto do prédio. Chegou com um presente e, enquanto eu me concentrava em tentar adivinhar o que seria, veio pra perto de mim na cadeira e me deu um beijo. Com toda aquela gente em volta, até uma guria da faculdade que depois reconhecemos, o que para ele era algo inesperadamente - dificilmente - inédito, e significava alguma coisa. Mas no escuro eu não fui capaz de me lembrar desses momentos. De alguma forma, escondidos pelo preto, que era quase só o que eu enxergava, eles não faziam mais parte de mim, da minha memória. E antes que eu pudesse perceber a dimensão do que fazia minhas mãos estavam sobre o pescoço dele, e não muito tempo se passou até que ele continuasse deitado do meu lado, mas agora sem vida. São assim, as coisas. Todo mundo nasce pra morrer, mas uns sabem matar.