24 de maio de 2019

gestos invisíveis


O horror de saber que a vida é verdadeira.

Escreveu Fernando. Seria essa uma forma de vida após a morte? – quando já não somos nem estamos mas nossas palavras permanecem?

Sento em um café para ler o jornal e sou um, à tarde escrevendo na varanda já sou outro e à noite, na solidão de uma taça de vinho, um terceiro. O rio que corre. Nem nós permanecemos nem a água.  É a mesma água, e nunca é a mesma. Somos a mesma pessoa, e nunca somos os mesmos.

***

Depois de abraços e despedidas, as portas do ônibus fecharam no fim da tarde. O horário de verão já tinha acabado, logo escureceu. Ele perguntou se podia ocupar o lugar do meu lado. Claro, senta aí. Puxei a mochila para o meu colo.

Seu espaço, meu espaço. Naquele dia, por instinto ou desatenção, tinha esquecido de baixar o apoio de braço que divide as poltronas. Ele sentou, largou a mochila no chão entre as pernas e reclinou a poltrona, à altura da minha. Falamos sobre as conversas do dia, amenidades em geral, o que seria do resto da semana.

Esperávamos alguma coisa da vida ou só o fim daquela viagem?

A dada altura silenciamos, vencidos pelo cansaço e pelo embalar do ônibus. De olhos fechados, querendo dormir, sinto o toque na mão.

Abro os olhos e num reflexo encolho o braço. Foi sem querer? Vou relaxando de novo aos poucos. Ou eu imaginei? Devagar, retorno a mão à posição inicial, estendida sobre a poltrona. Eu já não estava totalmente acordada, pode ter sido um toque acidental. Quando decido que não foi nada – de novo.

Meu coração vem à boca, e eu congelo na poltrona. Ele não recolhe a mão, eu não recolho a minha.

Nenhuma palavra, nenhum movimento. Por quanto tempo? Não sei dizer. E então o impulso a que decidi ceder, colocando minha mão sobre a dele, buscando com os meus dedos os espaços entre os dedos dele. Ele aceita, nossas mãos se encaixam, e entre uma dança de dedos e outra viro o rosto na direção dele. Ele olha para mim. Não nos enxergamos, mas sabemos que nossos olhos se encontram no escuro.

O alívio de saber que a vida é verdadeira.

***

Foi um jeito de dizer: eu sinto também.

Tanta facilidade a nossa de imaginar o que existe e o que não existe. E, no entanto, o que agora sabíamos que existia continuou não existindo de fato. Somos reais quando existimos em silêncio?

Olhos que se olharam sem se ver. Aqueles dois de mãos dadas no escuro não vieram conosco rumo à luz de outro dia. Existimos no tato, mas não sobrevivemos no mundo. O que sentimos é verdade quando sentimos cegos e mudos?

O horror e o alívio de saber que a vida é temporária.

***

No dia seguinte não houve dia anterior.

- Tudo bem, é temporário.
- Como assim é temporário?
- Sentir é temporário.

A vida é temporária e nós somos feitos de gestos invisíveis.

15 de maio de 2019

o instante em que perdemos as palavras


Entrei na sala e dei de cara com ele. Era alto demais para a mesa que ocupava, as pernas espremidas na parte de baixo. Não sabia se era visita, funcionário novo, entrevistado. Ficou me olhando, quiçá com a mesma dúvida. Soltei um oi tímido e passei por ele para chegar ao armário no fundo da sala. Nenhum dos dois cogitou se apresentar.

- O pessoal tá precisando de uma caixa dessas lá embaixo.

Essa pessoa é legal, lembro de ter pensado ao fechar a porta atrás de mim e chamar o elevador. Se ficar, a gente vai se dar bem.

Não é sempre, claro. Mas há casos. Pessoas que despertam esse instinto que no resto do tempo a gente nem sabe que tem. No segundo em que as vemos – antes de ouvir a voz, antes de saber o nome. Só uma sensação. De que estamos diante de alguém que divide algo conosco. Talvez a maneira de funcionar no mundo, de absorver a vida, de sentir tudo isso.

***

- Tu é muito parecido com o Jesse Eisenberg. Alguém já te disse isso?
- Sim! Minha irmã!

Saímos do elevador e, na rua, descobrimos que fazíamos o mesmo caminho de volta. Éramos vizinhos de bairro, poucas quadras separavam nossos prédios. Quantas vezes já não teria encontrado com ele no Zaffari sem saber quem era? Parados no mesmo lugar: olhando o preço das cervejas.

Começamos a dividir aquele caminho.

Quase todos os dias: quinze ou vinte minutos em que vivíamos as mesmas pequenas doses de vida. Caronas de guarda-chuva. Paradas na praça para fumar. Difícil dizer em que momento aquelas amenidades e papos de elevador se tornaram confidências. Risadas mais frequentes que antes de percebermos acabavam em um bar. Conversas que, de repente, só éramos capazes de ter um com o outro.

Normalmente a vida acontece quando não esperamos. Olha aqui, ela diz: alguém parecido contigo. Alguém com quem se identificar. Um encontro de almas perdidas cuja essência divide a mesma raiz.

***

- Eu queria muito outro cigarro. Tu não tem aí, por acaso?
- Pior que não. Mas aquela mulher talvez tenha – indico a outra mesa com o rosto.

Olhamos pra ela. O maço ao lado do copo e da garrafa, largado tão displicente sobre o logo descascado da Skol. Vários cigarros ali.

- Eu não tenho coragem de pedir.
- Nem eu.

Rimos os dois.

- A gente é igual, meu deus – ele diz, ainda rindo.
- Mas tenho em casa, pelo menos.
- Bah, a gente podia passar ali na volta, então, né? Tu não te importa?
- Capaz, vamos lá!

Fechamos a conta e saímos a pé. Tinha isso também. Nossos caminhos, que gostávamos de percorrer a pé. Nenhum dos dois tinha carro. Nenhum dos dois fazia questão de ter um carro. Nenhum dos dois era do tipo que chama um Uber quando pode caminhar. Mesmo à noite. Mesmo em uma cidade como Porto Alegre.

Mesmo sozinhos.

***

Para o coração a vida é simples: ele bate o quanto puder. E então para. Ele fecha o livro e coloca de volta sobre a mesa, admirado com a abertura.

- Não sei se a morte é algo que me faz sofrer, sabe? Pra mim é algo que acontece.
- É, acho que eu encaro um pouco assim também. Uma parte da vida que a gente sabe que um dia vai chegar.
- Claro, tu nunca quer nem espera que aconteça, muito menos com as pessoas que tu ama.
- Mas é parte do processo.
- Exato. Inclusive, ou principalmente, pra quem fica.

Acendemos o segundo cigarro, abrimos a segunda cerveja. Cada um jogado para trás em uma ponta do mesmo sofá de onde agora escrevo. Falamos sobre morte, sobre amar, sobre incertezas e o que fazer da vida, sobre nossa necessidade de isolamento, tempo e distância mesmo das pessoas de quem mais gostávamos. Sobre os caminhos que haviam nos levado até aquele momento, que hoje pode ser só uma projeção da memória.

O ápice da cumplicidade a que uma amizade poderia chegar: não era mais preciso falar.

***

Até que aconteceu: a vida.

***

O tempo jorra, se espalha ao mesmo tempo em que desvanece. Somos tragados, sempre. Começa com uma semana atribulada, mais compromissos que o normal, às vezes coincide de tudo se concentrar no mesmo período. A semana passa e surge uma viagem. Férias. Reuniões fora do estado. Um congresso em outro país.

Estamos parados e o mundo gira. Damos um passo e giramos com ele. Abrimos os olhos, e aquela semana foi há dois anos. Colocamos em duas horas as conversas de um ano inteiro. Tu soube que vou me mudar? E a entrevista, como foi? Mais uma semana, mais um ano.

***

Ele passa por mim, levanta as sobrancelhas e sorri sem graça. Sem saber o que dizer. Sem saber me cumprimentar. O tempo. Correndo indiferente entre tentativas vãs de um desespero estúpido e unilateral. Quando não há mais nem perguntas nem respostas. Nos perdemos no instante em que perdemos as palavras.

Uma definição de dor: não é preciso dizer nada porque perdemos ao mesmo tempo a capacidade de dizer e a de não dizer.

Eram os desencontros da vida que, embora não caibam no coração, o alimentam imprescindivelmente.

Já há algum tempo, nada mais cabe aqui.

10 de maio de 2019

não é óbvio


O óbvio não é evidente.

O que procuramos determina o que é óbvio – o que queremos ver, muito menos do que o que está à nossa frente. E o que vemos e queremos ver depende de algo tão impreciso quanto um desejo. O abismo do caos. Nada é o que parece ser. Nada é o que é de verdade.

***

A gente tem essas conversas como se fosse algo palpável, mensurável. Como se fosse possível determinar sentimentos a partir de uma escolha de palavras ou de um conjunto de ações banais.

Não é assim, eu digo pra ela. Porque a pessoa disse A então ela quer B. Isso não existe. Talvez às vezes até seja o caso, mas a menos que a criatura te diga com todas as letras não tem como inferir desse jeito.

Mas não adianta. Na prática, a gente vê o que quer.

Quando ele foi embora, guardei algumas coisas no fundo dos armários e das gavetas, onde meus olhos não alcançassem. O que os olhos não veem o coração não sente. Nunca um ditado brega fez tanto sentido. É a mesma lógica. A gente escolhe não ver pra não sentir, mas quando queremos sentir vemos qualquer coisa. Inclusive o que não está ali.

- Porque nós não deixamos as coisas claras uns para os outros eu nunca vou entender.
- Ah, por medo. Medo de falar, medo de ser rejeitado.
- Mas não faz sentido. Quer dizer, antes de falar tu já vive na rejeição – ela só não foi verbalizada.
- Pois é.
- As pessoas têm medo de palavras, então. De ouvir. Isso é uma estupidez.
- Não necessariamente das palavras, mas do que elas vão te fazer sentir.
- Mas aí que tá – tu já sente isso. Tu já tá nessa situação. Antes de ouvir uma rejeição, tu já não é nada.

As coisas precisam ser ditas.

***

Tenho isso, às vezes, de pensar na vida como um mapa. Uma cartografia de existências. Cada um deixa atrás de si uma linha pontilhada de idas e vindas, encontros, paradas, saltos e quedas. 

Tantas linhas passam perto uma da outra, sem chegar a se cruzar.

As pessoas com quem não esbarramos na calçada. A colega para quem você pensou em dizer “não sei, tem alguma coisa em ti que eu gosto, acho que a gente se daria bem”. O idoso que sentou ao seu lado no ônibus e que teria gostado de te contar uma história se você não estivesse de fones de ouvido. A mensagem que não mandamos. A pessoa para quem não dissemos oi. 

As linhas passam perto – bastava olhar para o lado – mas não se cruzam.

E outras tantas se encontram sem seguir juntas. Podem andar lado a lado por um tempo e ali adiante voltam a se separar. Existe pelas pessoas que não chegamos a conhecer certa nostalgia do não vivido, mas as que conhecemos e perdemos – talvez entre elas vivam nossas tristezas mais profundas. Tudo o que poderia ter sido e não foi.

Linhas que se separam. Jardins que se bifurcam.

***

- O que tu vê, afinal?
- Eu vejo o medo.

O medo de falar demais e o medo de não dizer nada. O medo de deixar o tempo passar. O medo de não perceber que estava ali o tempo todo – só você não viu. O medo de que a sincronia deixe de existir e em breve estejamos de novo em tempos diferentes. O medo de olhar nos olhos e dizer: é isso que eu quero.

Não é óbvio?

4 de maio de 2019

amar em poucas palavras


- Ele fica melhor em ti do que em mim.

Um blusão velho, desses que a gente já bateu e agora só usa em casa. Marrom com listras brancas, as mangas já um pouco arregaçadas. Fez mais frio do que o previsto, e o casaco que eu tinha pensado levar ficou jogado sobre o sofá da sala.

- Até gosto mais dele agora.

Nos abraçamos no pátio na frente da casa e ficamos ali, olhando para o céu, deitados sobre o tapete velho que estendemos na grama. É preciso fugir da claridade para ver – para realmente ver.

- Por que a gente nunca fez isso antes?
- Boa pergunta.

Talvez o mais impressionante fosse o silêncio. A dimensão que era capaz de alcançar. Não entre nós, porque nunca precisamos dizer muito um para o outro, mas ao nosso redor. Sempre existe algum ruído – passos e vozes dos outros apartamentos, os carros que passam na rua, um helicóptero sobrevoando a cidade, o telefone, portas e janelas sendo abertas e fechadas, o elevador, as notificações no celular que mesmo silenciosas trazem o mundo a nós.

Mas não o mundo que naquele momento tínhamos diante dos olhos, em volta de nossos corpos – dentro de nós. Um mundo de escuridão e silêncio que nos envolvia em estrelas.

***

- Escolhe uma música.

Estávamos ouvindo Echo and The Bunnymen no meu quarto. Adiando o almoço, vivendo a preguiça dos domingos nublados.

- Nothing lasts forever.
- BAH.
- Que foi?
- Escolha estranha pra um casal que acabou de começar.

Dou uma risada.

- Tu é supersticioso assim? As coisas duram o que têm que durar.

Anos depois ele escreve uma música: no love should last until it ends. Nenhum amor deveria durar até o fim.

***

- Tava na parada e o cara perguntou pra onde eu tava indo, a pinta era muito estranha. I’m going to my girlfriend’s, eu disse pra ele.
- Girlfriend?
- É, ué. Não é?

***

Cada mísero diálogo da nossa vida juntos. Construídos a partir de uma simplicidade hoje quase impossível de alcançar. Fiquei com o pote dos sabonetes, onde agora guardo colares.

Amar em poucas palavras talvez seja o melhor jeito de amar. Amar sem precisar dizer.

Poderíamos ter mudado a vida um do outro. Mas não mudamos. Porque o mundo é grande demais e a vida é um piscar de olhos.