21 de julho de 2019

tudo o que é dito de outra maneira


Como a gente fazia pra viver quando ainda existia realidade?

Acordo e o vejo dormindo ao meu lado. Fazia uma semana que não nos falávamos. Na véspera ele me mandou uma mensagem: abre pra mim? Sabia que eu estava em casa. Puxei o portão e ele ficou um tempo ali parado, me olhando. Nós dois em silêncio sob a luz laranja de um poste, os galhos de um ipê, as estrelas de um céu que tanto amávamos observar em silêncio. Exatamente como naquele instante.

Olhar nos olhos de alguém é o mesmo que olhar para o céu.

Dei um passo atrás pra ele passar. Girei a chave de volta. Entramos. Sentou apoiando a cabeça nas mãos. Os cabelos escorrendo pelos lados. Puxei uma das mãos dele na minha direção. Não foi culpa de ninguém. Basta seguir vivendo.

Desenvolvemos essa linguagem, toda baseada em olhares e mãos que se buscavam ou se evitavam. Conversas inteiras acontecem assim. E eu amo isso em nós. Tudo o que é dito de outra maneira.

Ele abre os olhos devagar e sorri esticando os braços. Ainda no meio do sono. Cara de travesseiro. Quer um café? A gente pode ficar lendo na cama? A gente deve. Manhã preguiçosa. Uma vez me disseram que não pode haver intimidade maior do que ler. Duas pessoas em silêncio, cada uma em um mundo à parte e ao mesmo tempo juntas.

Lemos. Não precisamos de mais.

Eu me canso primeiro. Fecho o livro e largo na mesinha ao lado da cama. Fico sentada por um momento, incapaz de decidir se quero levantar ou deitar de novo. Ele levanta o braço. Como se abrisse um portal. Um convite a si próprio. Deito no colo dele e durmo de novo, entre um beijo e a mão que acaricia meus cabelos.

Ele continua lendo.

Quero acreditar que existe uma realidade pra nós.

12 de julho de 2019

o que escrevi sobre nós


Enquanto a água escorre pelo café em pó e atravessa o tecido do filtro para preencher a caneca. Todas as manhãs. O céu mais próximo ou mais distante. De todas as coisas que fazemos sempre, o café é das que não perdem o sentido.

Há três meses eu escrevia sobre nós, patinando nas palavras. Gosto de perceber as mudanças. Da maneira como construo as frases aos pontos que o sol já não alcança aos novos ramos que brotam dos vasos. De qualquer maneira, a vida segue. A qualquer custo, a vida segue. Lenta e inelutavelmente. Sempre segue.

Na vida, quando estamos frente a frente, vem de dentro algo que nos prende. Um qualquer medo de alguma coisa, uma vergonha não se sabe bem que de quê. Na vida, quando estamos frente a frente, as perguntas não são feitas. A vida sozinha não liberta as interrogações que nos acompanham.

Mas aqui é diferente.

Olho para a caneca vazia. É mais relógio do que esse que trago em volta do pulso.

***

- Não sei se a melhor pergunta é o que tu tá olhando ou o que tu tá pensando.
- Pode perguntar as duas, ué.
- E as respostas são diferentes?
- Não sei. Tu acha que quando a gente olha pra uma coisa e pensa em outra na verdade vemos aquilo que pensamos?
- Pode ser. Pode ser o contrário também: às vezes a gente tá pensando em algo e de repente vê alguma coisa e aí começa a pensar nessa outra coisa.
- Ou a gente pensa exatamente naquilo que tá vendo.
- Também. O que a gente pensa determina o que a gente vê, então?
- Talvez. Mas não literalmente.
- Literalmente eu não vejo nada direito, vejo um monte de borrões e imagens não definidas. E aí?
- Talvez tu pense desse jeito também.
- Vou considerar um elogio.

***

Teu rosto não é só um rosto. Muitas pessoas são só um rosto. A maioria delas. Mas o teu é mais do que isso. O tempo todo sei que tu pensa em algo além daquilo que consigo ver quando olho pra ti. Teu rosto é vista.

***

São desvios quase invisíveis, mas o rio corre, e o que escrevi sobre nós há três meses já são palavras mortas. Se as lemos, não somos nós. Quando as lemos, já somos outros. Não é só a passagem do tempo, mas os sedimentos que ele carrega. O que segue e o que vai ficando pelo caminho. O que chega a nós a partir do alheio.

- Venho aqui todos os dias e parece sempre igual, mas sou outra a cada vez que tu me olha.

Não mudo à revelia desses olhos, porque eles me mudam também.

- Cada vez que tu me olha, esse olhar se torna parte da pessoa que me torno.

Quantos olhares já trocamos? Quanto de mim foi contigo e quanto de ti veio comigo?

- Sou feita também dos teus olhares.

***

Se depender do tempo, o que escrevo sobre nós nunca será verdadeiro. Ou será para sempre, congelado em instantes que não voltarão a existir. O tempo leva as palavras. Amanhã mesmo, o que diremos?

Nossos olhos guardam e transmitem as palavras que não ousamos pronunciar.

Quero te dizer tudo com os olhos. Quero ler nos teus olhos o que tu escreve sobre nós.