13 de novembro de 2014

o vão

Você se pergunta como diabos pode pensar tantas coisas em um espaço de tempo tão curto. E se a gente se encontrasse no caminho, e se ficássemos sozinhos no fim do dia, e se quando ele olha olha pelo mesmo motivo que eu, e se fosse pra ser com quem seria. E cada se se desenrola em uma história que nunca chega a ter fim porque umas se misturam com as outras e a vida pausa a imaginação até que no próximo momento de distração tudo comece outra vez.

Desiste. Pensa em outra coisa. Inventa outra história, outra pessoa, não é como se nada disso fosse viável. Ah, mas é justamente esse quê podre de realidade que dá sabor à fantasia. No fim das contas, só o que você quer é acreditar em possibilidades. Inocente. Sabe de nada.

É vão e existe um vão entre nós. De palavras, de espaço, tempo, silêncio, desejo. De repente um nada que surge, percorrendo cada centímetro de músculos, ossos, veias, órgãos. Como um buraco negro, sugando tudo ao redor sem aviso. Batimentos acelerados porque de longe ele sorri.

Chove. Chove muito. E quando para e o céu volta a ficar calmo e o sol de novo nos olha lá de cima as coisas em verdade não mudam.

Todos os dias, as horas. À espera de um sinal, de um olhar, de um gesto que diga: vem. Uma rota que pudesse distorcer todos os demais caminhos. Uma brecha que alterasse o curso de nossas vidas, desde o fim do último século até o que hoje é presente. Se o tempo é relativo, uma fenda qualquer a nos guiar.

Mas nossos dados e linhas não se cruzaram a tempo. Todas as horas imaginando o que poderia ser estão fadadas a ser tempo perdido. Se você olha pela janela não há nada além de uma réstia de céu, mas se olha para o lado lá estão: todos os seus sonhos, todo o seu amor, toda a vida devir.

Se você pudesse ter um desejo realizado agora, qualquer coisa, o que seria?

Feitos para nunca ser. E as palavras ali, incansáveis a te encarar. Ou é você que, incansável, as encara incansavelmente? Obrigada por dividir comigo. Obrigada por dividir comigo a vida. Um soco no estômago. Que vida miserável.

17 de outubro de 2014

o covil

Nem desfazer a trança, nem tirar a maquiagem. Nem trocar de roupa. De meia calça e vestido mesmo. Que importância? De que vale todo o cuidado - ah, a pele, o cabelo - depois de uma noite assim? Vinho barato e cerveja, cigarros demais, música ruim e pouca gente. Parados, como nas festinhas de garagem da sexta série.

E dormir e acordar menos de quatro horas depois ainda na mesma posição, a claridade agredindo os olhos, olheiras borradas de lápis e rímel, cílios grudados. Como tinha chegado? De táxi. Mas e o dinheiro? Não lembro onde deixei a bolsa, não lembro de ter entrado com a bolsa, mas só pode ter sido porque senão como teria aberto a porta. Talvez esteja aqui no chão, ou na sala, no sofá. Foda-se. Depois eu vejo. Que horas são. Merda.

Limpar o rosto do jeito que dá, palmadas de água na cara. Não dava pra usar o casaco de novo, cheirando a noite ruim. O olfato é o menos considerado dos sentidos, quem escolheria perder qualquer um dos outros?, e ainda assim os odores norteiam todas essas coisas que a gente mal percebe. O cheiro das roupas depois de uma noite boa é o mesmo e não incomoda.

Virar a bolsa em cima da cama. Catar as moedas, notas amassadas, identidade. Cadê o meu celular? Não tá aqui. Ai, meu deus, eu não acredito. Só me faltava essa. Merda.

Atende. Vamo, atende, porra.

Oi. Eu esqueci meu celular. É. Pois é. Como posso fazer pra pegar? Vai estar em casa ao meio-dia? Tá. Beleza. Não, tenho que trabalhar. Tá bom. Aham. Tchau.

Tu vai embora no meio da madrugada pra não ter que ver mais a pinta e agora essa.

Que merda, que merda, que merda. Como é que pode pensar ter gosto? Como é que pode pensar espalhar esse asco pelo corpo inteiro? Como é que pode que eu seja tão imbecil? E chegando na esquina os motores e as buzinas e as pessoas silenciam quando o toque no ombro te puxa e te faz virar e te faz ver. Como é que pode alguém ter esse efeito?

E literalmente basta um piscar de olhos. E num repente nada mais importa. Olhar olhar olhar e olhar, e arrastar os passos para que demore a chegar, e então voltar a olhar. Como se de olhar algo pudesse mudar. Que nem idiota, sonhando acordada no expediente. Atrás de uma desculpa qualquer, de uma mínima oportunidade pra dizer qualquer coisa, uma mão que esbarre na outra sem querer. Uma hora ou quase dos mais absolutos devaneios.

Por que não podia ser com ele? Ele, que é o homem da minha vida sem saber que é. Tocar, e sentir pele com pele, deixar só pra ele tudo o que já foi dos outros. Misturar cabelos, cheiros, carinhos. Não há outro alguém que me faça sentir e querer ser essa metade de casal perfeito. E fico a sonhar e fico a olhar. Como se de longe os olhos pudessem dizer o que às palavras não é dado. Só pra te falar. Largo tudo. Mas é o telefone que toca e o meio-dia que chega e de novo o covil da noite que era pra ser esquecida.

Porra, não quero papo, para de falar, só me devolve essa droga e me deixa ir. Viu, quem sabe agora tu aprende, pelo menos a não esquecer o celular. E se for pra esquecer que seja alguma coisa dispensável. Pode ser até a dignidade, não tem problema. É só não precisar voltar. Não pra um naipe desses. Tá, meu, chega. Tchau. Até nunca mais.

17 de setembro de 2014

a fogueira

As chamas que subiam e a fumaça, levando ao céu nossas memórias em uma noite gelada de verão.

Crianças, nós atirávamos com a espingarda de um velho avô. Nunca chegamos a acertar o centro. Andávamos no balanço da árvore. Juntávamos pinhão. Andávamos a cavalo, e a Sucata, nossa égua preta, talvez já estivesse cansada de nos carregar. Nos dias de chuva, jogávamos carta ou sujávamos as mangas das camisetas colorindo folhas em branco. Quando nenhum dos avós olhava, pulávamos a cerca da lavoura e corríamos livres no potreiro. Porque tudo nos chegava maior do que era de fato, o verde gasto daquela grama parecia não ter fim. Os problemas do mundo não nos atingiam, e nossas pipas sacolejando ao vento satisfaziam nosso desejo de voar e voavam nossas fantasias infantis.

Década e meia depois, já não há balanço, pipa ou avós que nos implorem para pegar o casaco ou sair do sereno. Há só a grande fogueira e nós, sentados em seu redor, nossos laços de sangue vencendo o tempo.

Os cabelos brancos agora são dos nossos pais. E nós, nós agora somos mais altos e o mundo parece menor.

Meus primos atiram mais grinfas na fogueira, e as chamas já passam de nossas cabeças. As faíscas soltam-se e se espalham ao sabor do vento. Faz frio demais para uma noite de dezembro. Ao sul de todos os trópicos, sangue latino esquenta nossas almas. Estouramos o primeiro champanhe antes da hora e nos pomos a olhar o fogo, deixando o álcool subir e falar por nós.

Faltam dez minutos.
Dez minutos pode ser muito tempo.
Se vocês soubessem agora que só têm dez minutos de vida, o que vocês fariam? Tipo, o que vocês nunca fizeram que seria possível fazer em dez minutos?
Gritaria até a garganta doer.
Contaria um segredo.
Eu diria que amo vocês e que esse lugar, que é mágico, é o único lugar possível para essa noite.

Vizinhos ao redor antecipam foguetes. A véspera de Ano-Novo vai se acabando, respira os últimos minutos. Vaga-lumes piscam à nossa volta. O céu estrelado nos deixa ver constelações. De voz embargada e nostálgica, trazemos ao fogo o que mais lembramos de nossos pais e avós. Os pais, irmãos, eram iguais. O tio gostava de caipirinha. A tia também. Teu pai assava os melhores churrascos. A mãe de vocês era muito brava. O vô ficava tamborilando os dedos na poltrona durante os comerciais da novela. Na hora de bamo já se fumo. E a vó, que fazia a melhor massa com galinha de todos os tempos.

Sete minutos.
Ainda temos duas garrafas.
Estoura mais uma aí logo, sem chance de deixar o serviço incompleto.

Mais foguetes nos vizinhos, gritos ansiosos por outro novo ano de promessas velhas. É vida que se renova. O mundo ainda não vai acabar.

Começo a gritar. Toda a força que consigo reunir na voz, todo o ar que sou capaz de puxar dos pulmões. Os primos me acompanham. E gritamos e imaginamos até onde nossos gritos poderiam ser ouvidos. Gritos de sul, carregados de uma mistura de sotaques de quem viveu em tantas partes que já se perde nas contas.

E o teu segredo?
Eu nunca quis sair daqui.

Um silêncio de poucos segundos diz mais do que qualquer um de nós poderia.

Tudo bem. Agora estamos de volta.

Mais cinco minutos, abrimos a última garrafa. Mesmo na noite fria a letargia do verão nos atinge. Como nas tardes intermináveis na varanda, de beber chimarrão e assistir às cores do céu.

São poucos momentos na vida os capazes de definir uma pessoa; noites como aquela fazem de nós o que somos. Nossas três vidas jovens, unidas por laços familiares que se formaram e geraram descendência ao longo de séculos, estavam enraizadas naquele chão e ali ficariam para sempre. Escutamos as contagens regressivas que começavam nas casas vizinhas. Dez! Nove! Oito! Olho nos olhos dos meus primos: estão sorrindo. Sete! Seis! Cinco! Damos as mãos e nos aproximamos do fogo. Quatro! Três! Dois

Gritos, brindes e foguetes preenchem o mundo enquanto nossos corpos ardem. Nossa dívida está paga.

12 de setembro de 2014

os mapas

Trinta e sete minutos de atraso, casaco na cadeira, fones, porta-canetas, papeis espalhados e a planta baixa de uma história. Você precisa enxergar, como se estivesse diante de tudo. Imagino um mapa de todos os mapas. De que tamanho seria? Que escala seria capaz de abranger ao mesmo tempo a Rua Castro Alves e todas as galáxias conhecidas?

Pode me emprestar a régua? Claro, pega aí. O que fica subentendido num mover de dedos, mão e braço. Quantos músculos eu mexi pra pegar essa régua? Não faço a menor ideia. Se soubesse teria estudado anatomia. Eu não gosto de anatomia, eu gosto de números. Perguntei quantos e não quais. Achei que tu gostasse das letras e das línguas. Das letras, das línguas e dos números.

Me manda um e-mail no meio da tarde: um gif tosco de coração, quero tomar um vinho contigo depois. O e-mail é a nova carta. Com a diferença de que chega mais rápido, mas ninguém mais usa. Sorrio pro coração tosco que pula na minha tela. Passa lá em casa depois. Vamos ouvir música brega até amanhecer o amanhã.

O apartamento que eu vejo tem uma planta específica: abrindo a porta de entrada e seguindo uma linha reta, ao fundo estão sala de estar e sacada; à direita da porta, a mesa de madeira redonda e quatro cadeiras ao redor; entre mesa e sofá, a circulação que leva até a cozinha; indo em frente, área de serviço. De volta à porta de entrada, agora à esquerda, o corredor - primeira à direita, banheiro; segunda, quarto de hóspedes/escritório; porta do fundo, nosso quarto. As paredes da sala e do corredor são de tijolo à vista.

Na rua, as árvores verdemente enormes tentam invadir nossas janelas, mas pouco importa. A sombra e o vento nos refrescam no verão e a beleza ainda nos acompanha no inverno. É ali onde tudo acontece, o número 217 de qualquer rua, em qualquer cidade. As mangas arregaçadas do suéter deixam os pulsos finos à mostra, convite às mãos, dedos longos e unhas impecáveis. E não há como o toque das mãos, todo significados e sensações, impressões invisíveis sobre a pele.

Todas as ideias que me ocupam - as citações e as referências recorrentes, o labirinto de espelhos, a biblioteca infinita, o título mais belo da literatura e o livro escrito por todos os homens caberiam nos mapas? Uma cartografia capaz de comportar minha vida e a tua? Do nascimento à morte, todas as experiências inúteis, idas e voltas e de novo idas, erros mais que acertos, estranhos que se perderam, encontros que se desencontraram, desencontros que perduraram, peso morto, vida sendo vivida, o sabor e o verbo, o riacho escondido no terreno da rua dos fundos, os lugares secretos da infância, a coleção de tudo.

Você aceitaria uma viagem só de ida para onde só houvesse a verdade? Prefiro, antes, os lugares que exploram a mentira e a invenção. Mais uma linha no tempo. Mais um traço no mapa. Coordenada em paralelo e meridiano. Você só precisa ver, como se estivesse à sua frente. Um longo caminho de volta ao começo e um abismo de mudanças onde a insônia impera.

Eu não sirvo pra conversar, mas por favor me chama pra beber aquele vinho.

4 de setembro de 2014

o sabor e o verbo

Só a vida sendo vivida. Sem poesia, sem beleza, sem trilha sonora. Gosto de vida sendo vivida. O sabor e o verbo. O mais do mesmo. Felizes aqueles que sabem que o gosto não é amargo, aqueles que sabem morrer.

Todas as manhãs o cheiro de café. Água quente sobre pó escuro, e o aroma preenche a cozinha. Vem de longe, de um lugar que talvez sejamos capazes de imaginar ou que sequer sonhamos. O universo inteiro e as mãos de tantas pessoas no interior do bule comprado no supermercado da esquina.

E quando a xícara se esvazia e deixa o vazio de todo o resto e vem a vontade de conversar. Acusar a manchete sensacionalista, comentar o telejornal matinal, reclamar da segunda-feira ou da terça ou da quarta. Falar; mas agora há menos para dizer.

Se você projeta determinado universo de modo a enxergá-lo à sua frente, as palavras fluem, diz o eco. E às vezes é melhor falar sem ser ouvido, mas é sempre menos. Menos uma presença, e a ausência que cala. Sem as suas, que palavras poderiam completar as minhas?

É mais uma estagnação: nem voltar nem ir adiante. Já não importa onde estamos, ou se tudo o que fomos deixou de existir, porque mesmo que eu viva até os cem anos talvez não supere a nossa existência.

Você não usa óculos, mas os óculos que eu uso embaçam com o vapor enquanto cumprimento o tempo em um aperto de mão. Sem mais brigar, vamos juntos. E nesse momento eu sei, em cumplicidade com ele, pano de fundo de toda a vida e causa das mais desgraçadas frustrações, que tempo nenhum é capaz de nos transformar em passado.

Ainda te ouço rir, embora não ouça tua voz. Em sonhos teu rosto me alegra e me assombra. Fico feliz e me sinto menos louca por não ser a única que bebe água da torneira. Uma expressão inocente, e o corpo se entrega. De que cor são seus olhos? Tente se lembrar de que não é possível esquecer.

Se me convidam para sair, digo que sim dizendo que não. Talvez em qualquer dessas noites acabe noutra cama, noutros braços, noutros cheiros de estranhos. Essa ideia de estar e de sentir a própria presença. Existo, ainda que não percebam. Manter-se vivo entre amores todos e nenhum. Um suspiro mudo por nós. E pouco importa o gosto da solidão. O sabor, o verbo e meus olhos que sempre te veem.

5 de junho de 2014

o reverso

O problema não foi a minha casa, de que ele tomou conta, nem a escova de dente e as roupas que ficaram, nem o fato de eu nunca ter conhecido o apartamento dele. Não foi ele mal ter conhecido meus amigos, nem nenhum de nós ter visto a família do outro, nem mesmo essa vida à parte que nós levamos. O problema não foi a instabilidade de ambos, os conflitos internos ou o medo que eu tinha de chorar na frente dele. O problema não foi o sexo, nem os orgasmos falsos, nem a vergonha que às vezes eu tinha de gritar, porra, faz isso direito. O problema não foi o frio, nem as manhãs que eu passava esperando que ele acordasse, nem as noites que ele demorava a chegar. Não foi eu ter deixado de sair com meus amigos para sair com os amigos dele, nem o fato de o ar em toda a casa estar carregado com a nossa presença, nem o fato de a ausência dele me sufocar. O problema não foram as discussões que nunca tivemos, nem a melancolia, nem a vontade de dizer e calar. O problema não foi a saudade, o vazio ou o espaço que começou a crescer entre nós. Não foi a chuva, não foi o fato de ele morar em outra cidade, nem a mãe dele me ligando. O problema não foi a inexistência de datas, de nomes ou de respostas. Não foram os vinhos, não foi o dia que eu precisei vomitar, não foi o dia que ele não veio. O problema não foi insegurança, infantilidade ou inexperiência. O problema não foi ele, não fui eu, não fomos nós.

Cansei de pensar nas coisas, de descrever o fim de semana ou o cinema ou a chuva que caiu na primeira segunda. As panquecas, o champagne, a sacada. A mensagem inesperada de estou indo, caminhar de noite, comer pizza. A alegria infantil dele com um presente de natal, minha surpresa com uma caixa de madeira cheia de cadernos e um pedacinho de papel em que se lia 'amor'. A primeira vez que nos vimos pessoalmente, a primeira noite, o primeiro dormir juntos. Dividir o banheiro de manhã, jantar junto, andar de mãos dadas. My girlfriend, quando vai apresentar, e a gente se escondendo e fugindo o tempo todo. 

Não lembro, mas quando lembro ele está sorrindo, empolgado, feliz. 

Tem coisas que acontecem e nós só percebemos que aconteceram depois de já terem acontecido. Um olhar diferente, um silêncio qualquer. A gente se conheceu e isso deve bastar. Dois imbecis, provincianos, loucos, que eram perfeitos juntos mas não sabiam ficar juntos. 

Num outro tempo, numa outra dimensão da vida, nos vejo como um daqueles casais: felizes, musicais, literários, sendo um para o outro o próprio reflexo. Como se todo o verso fosse reverso. Como se de repente o tempo pudesse virar e perder nossa história no caminho para começar uma nova, que dessa vez fosse mais longe do que nós conseguimos ir. Como ouvir de novo a voz dele pela primeira vez.

3 de junho de 2014

a bolha

Não escrevo aforismos porque não tenho certezas. Nem uma delas sequer. Pobre leitor ingênuo, que lê em busca de um sentido. O sentido não existe, como não existe a própria coisa para a qual se busca sentido: é tudo imaginação.

O jardim de inverno viu tudo o que ninguém mais viu. Visto dali, o céu era mais próximo. Entre janelas acesas, copas de árvores, faróis e os sons da noite da cidade, distante e ao redor. A bolha que resguardava a dimensão paralela do tempo em que podíamos ser.

O cheiro de erva e a fumaça ganhavam o vento frio e nos inundavam de infinito. Nenhum outro lugar é capaz de nos manter em segredo.

- Tu não tem ideia, noção do quanto eu queria ter te conhecido antes.

Antes, quando nós poderíamos existir.

- Tu não te sente mal?
- Eu me sinto muito mal.
- Eu também.
- E ao mesmo tempo não tem outro lugar no mundo que eu gostaria de estar.
- Só aqui.
- Só aqui.

Se alguém voltasse - em busca, talvez, de uma chave esquecida -, estaríamos fadados à inexistência. A mais uma inexistência, entre as tantas em que já vivíamos.

- E se a gente ficasse aqui, e fingisse que o tempo não existe?

A fantasia de parar o tempo que tanto nos ronda. Nós - aqueles para quem o tempo em que vivemos não dá conta da nossa própria realidade. É preciso mais. Um espaço temporal em que seja possível viver o que a realidade não permite, uma fenda no próprio tempo que permita a vida não vivida. Essa dimensão comportaria todas as histórias sem final, todas as histórias que sequer aconteceram, toda a imaginação que nasceu morta, engolida por um mundo sedento de realidade e sentido, sangue nos olhos em busca da verdade dos fatos.

- O que tu vai dizer?
- A verdade.
- ...
- O que é a verdade se não o outro lado da mentira?

O outro lado. Como ouvir de novo uma voz pela primeira vez. Ninguém pode ver como eu vejo. Ou sentir o amor que foi mentira em tempos de verdade. Existe o ontem e já não existimos. Como ouvir sem reconhecer a voz que falava tão perto: sinta agora. Pobre leitor ingênuo, que acredita no tempo absoluto.

21 de abril de 2014

a cafeteira

Tenho tão pouco de vida própria - e isso é algo inconfundivelmente meu.
Quem disse isso sabia do pouco que há para dizer: falar de si é falar dos outros. Debruçar-se sobre esses que nos rodeiam e fazem de nós o que somos; em essência, observadores. De gestos, trejeitos, cacoetes, vícios de linguagem, o olhar sobre o alheio.
Os rostos das calçadas, dos ônibus, das esquinas e dos bares, inesquecíveis pela breve sucessão de momentos em que diante de mim dizem o que se espera ouvir. Somos estranhos, vamos viver.

O estranho na cafeteira.
Esse é o Miguel, nosso novo colega.
Prazer, Miguel.
Seja bem-vindo, Miguel.
Como vai, Miguel?
Quer um café?
Sim, por favor.

A gente descobre que as pessoas pensam parecido, mas não difícil, quase raramente, conseguem falar da mesma coisa. Daí o barato da solidão: é um curso que se faz pra aprender a rir sozinho.

As palavras dele como um espelho. Das frases que nasceram como réplica, um passado em fragmentos que agora reflete o presente por vir. Que têm os amores passados que parecem predizer os que ainda não aconteceram? Como se na pele ficasse certa energia, que se propaga, sempre em direção ao futuro, e mana dos poros quando na presença do outro, do futuro, do porvir.

Na cafeteira, era o silêncio. Corpos parados lado a lado, esperando e sentindo o aroma que aos poucos exalava do líquido marrom preenchendo as xícaras. Menos impaciência do que angústia, e quando ele se mexeu e nossas mãos se tocaram

Para mim os beijos de café são os melhores, com gosto de manhã. Ele levanta as sobrancelhas, eu cruzo os braços, ele sorri, eu falo do café que começa o dia, ele diz pra mim também. E quando eu passo pela porta e ele levanta os olhos da tela parece que o mundo inteiro vê: está ali. Outra vez.

No elevador, de costas para o espelho.

Imagine, disse Paul um dia, que o presente seja simplesmente um reflexo do futuro. Imagine que passamos nossas vidas inteiras olhando em um espelho com o futuro nas nossas costas, vendo-o somente no reflexo do que está aqui e agora. Alguns de nós vão começar a acreditar que podem ver melhor o amanhã virando-se para olhar diretamente para ele. Mas os que assim fizerem, sem mesmo perceber, perderão a chave para a perspectiva que antes possuíam. Porque a única coisa que eles nunca serão capazes de ver no futuro é a si mesmos. Voltando suas costas ao espelho, eles se tornarão o único elemento do futuro que seus olhos nunca poderão encontrar.

Na calçada, pegamos o mesmo caminho. Eu podia ouvir a trilha no piano, like crazy. Todas as tardes como a única tarde em que nossos passos se acompanham, em direção ao mesmo lugar. O lugar onde você escolhe estar.

- Não tem como.
- Não sei, talvez a gente nem perceba.
- E os outros?
- Eles não importam, importam?

Os outros não importam e pouco importam nossas alianças. Se ele fosse meu futuro, e eu olhasse diretamente para ele - sem você, que olhos vão refletir os meus?

Nada separa as recordações dos momentos banais. Posso te ver agora, de olhos abertos, como se estivesse na minha frente. Como na cafeteira, enquanto ainda éramos sem ser. O lugar onde escolhemos estar. Tente se lembrar de que não é possível esquecer.

15 de março de 2014

o diário

Cara, vamo lá essa semana? Não acredito que eu vou ter que te levar na sorveteria que fica na tua rua.

Sabia sim, eu te falei num e-mail. Mas não comenta isso com ninguém, por enquanto. Vocês tão procurando apartamento onde?
*
Tudo bem, tudo bem... E boa sorte, se encontrando.
*
Tu sabe que eu não sonho (ou não lembro dos sonhos) normalmente, né. Mas eu vi um filme tri bonitinho sobre sonhos (The Science of Sleep, se se interessar), e resolvi procurar na internet algumas dicas de como sonhar e lembrar dos sonhos e até controlar o que tu sonha e o que faz dentro dos sonhos. Não consegui essa última parte ainda,
*
Minha internet é bem ruim aqui, mas vou pegar a música no final de semana. Ando tocando Bang Bang, da Nancy Sinatra, porque é facinho e o tom é bonito pra mim, eu achei. Gravei, um dia te mostro. Me manda essas músicas que tu aprende também, cara.
*
Oi! Escolheu e comprou o apartamento novo e começou a fazer a carteira de habilitação?
*
Eu tô louco pra sair com uma mochila pela Europa, e vai ser o meu auto-presente de formatura em 2018.
*
Acho mesmo que é como tu falou, e acho também que não é por nenhum motivo muito peculiar ou que tem a ver com sorte ou destino ou nada disso; acho que acontece, e é legal assim.
*
É que as palavras sozinhas não querem dizer quase nada, e, bom, não-sozinhas elas não ajudam em nada; porque aí ou já era óbvio antes ou então elas são um jeito de compensar o que deveria ter sido óbvio. Sabe? É uma escolha, não dizer e não pensar nessas coisas, and I'll stick to it.
*
eu procurei uns materiais de pintura pela casa, e acabei achando e lendo um bando de cartinhas, de várias épocas. Como eu devia ser um monstro, ainda pior, antigamente. Dá vontade de sair mandando cartas, agora, pedindo desculpas por cada coisinha, pra todo mundo -- mas acho que vai passar, tomara. Olha a camiseta, a estampa.
*
E, viu, esse da casa na praia e da viagem pra-daqui-a-nunca é o meu pai, não eu.
*
Nem comentei, mas é porque vou comentar o que: tu sabe que tu é foda, mesmo.
*
Sobre as palavras: apropriado as in à altura, e eventualmente as in não sei. Pode agradecer (mas não deveria, porque ainda não ganhou nada) e pode dizer que não precisa (mas não deveria, porque vai ganhar igual), tu que sabe.
*
Muita fluência que eu tenho pra escrever e-mails, sim; sofro das mesmas coisas que tu descreveu. E obrigado pelo que tu disse, sério.

É que as palavras sozinhas não querem dizer quase nada, e, bom, não-sozinhas elas não ajudam em nada; porque aí ou já era óbvio antes ou então elas são um jeito de compensar o que deveria ter sido óbvio. Sabe?
A sorveteria continua vazia, à nossa espera. As vozes que soam lá não são mais nossas.

5 de março de 2014

o carnaval

Carnaval bom é na rua, com as pessoas pulando juntas a céu aberto. Não importa se vai chover ou não, se faz muito calor ou se poderia ventar menos. E carnaval bom é carnaval do povo, sem ostentação, sem trios, fantasias e palcos grandiosos. Gente como a gente e gente de todas as idades na mesma festa.

Mas sempre tem um blasé. Ou dois. Lá parados, com as mãos nos bolsos a não ser enquanto seguram uma cerveja, estranhos ao ambiente e às pessoas em torno.

Fazem o que aqui? Quem vem pro carnaval pra ficar parado?

Um era tão sério que dava medo; o outro, mais aberto, arriscava acompanhar a música de vez em quando. Usavam aqueles chapéus, formato fedora/panamá; hipsters, ou qualquer que seja o termo em voga.

Daí eu comecei a olhar pra eles. No início porque era engraçado ver as duas figuras: as únicas pessoas paradas em meio às outras milhares, olhando pra tudo como se diante de uma manifestação grotesca de um povo aborígene. E depois porque, entre uma música e outra e as horas que iam passando, me interessei por um deles, que, louco pra dançar, se soltava mais a cada cerveja. No fim, ele me mostrou, sambava melhor que quase todo mundo ali.

Vira e mexe eu olhava pro lado e eles tinham desaparecido. Um tempo depois eu olhava de novo e lá estavam outra vez. A uma dada altura eu perdi a conta, tanto das cervejas quanto dos olhares trocados. Flerte nunca foi o meu forte. Não tenho paciência pra ficar olhando e sorrindo de canto por muito tempo; assumo que a pessoa não quer nada e deixo pra lá. Por um motivo que ainda me escapa, porém, dessa vez foi diferente. De fato perdi a paciência, mas em vez de deixar pra lá fiz o que até então não me lembrava de ter feito: tomei a iniciativa, fui até o cara e puxei papo.

*

Não há por que se debruçar sobre amores de carnaval. Noites felizes que ficam de lembrança de uma festa de quatro dias, tão amada e odiada.

Eu poderia falar da minha ansiedade: da incapacidade de esquecer a manhã e continuar dormindo ao lado desse cara da noite anterior e o resto do mundo que se dane. Poderia falar dessa minha autoconsciência destrutiva, com a qual brigo todos os dias e que tanto emperra minha vida. Poderia, ainda, falar dele: ora faceiro ora entediado, às vezes me encarando outras olhando pros lados, o chapéu escondendo os cabelos e aquele arzinho blasé e doce. O gosto de cerveja, cigarro e noite nos nossos beijos. Gremista, o filho da puta.

Os amores de carnaval. Os melhores, porque pura potencialidade - tudo o que poderíamos ser e poderíamos ser tudo. Os melhores - acabam antes de começar, morrem antes de existir. E tantas camisinhas esquecidas sobre cômodas contam as histórias desses amores de raspão.

O mundo sempre poderia acabar na noite de um amor de carnaval, e talvez um dia acabe. Mas não há por que se debruçar sobre amores de carnaval; de outro modo, não seriam amores de carnaval.

22 de janeiro de 2014

a quadra

Deixei-o no hospital por volta das dez da noite. O irmão estava em uma cirurgia e não tem por que tu passar a noite aqui também, ele me disse. O irmão autista que havia sido atropelado e a namorada que ia pra casa porque trabalhava cedo no dia seguinte. Te ligo antes de dormir, eu disse, qualquer coisa me avisa.

Antes de chegar no táxi, o celular tocou. Onde tu tá? Vem aqui pro Syls, tá todo mundo aqui. E quem é todo mundo dessa vez? No táxi, dei o endereço do bar. Tava todo mundo lá. Os amigos formandos ou quase formandos, os amigos de fora da cidade, uma mesa de degenerados de diferentes espécies.

Tava no hospital, o irmão do meu namorado foi atropelado.
Bah, que merda.

Ele chegou um pouco depois, quando eu já terminava a primeira cerveja. De todo mundo ali, era o único escritor de verdade, com livros publicados fora do país e sucesso razoável. Fez sinal pro garçom pedindo um copo a mais, puxou uma cadeira e sentou na minha frente. E aí, nunca mais tinha te visto. Pois é, como é que tá? Levando, semana que vem vou pra Alemanha. Eu ri e pensei em dizer que quem leva a vida não costuma ter a Alemanha como cenário ou destino, mas me calei.

Não é preciso discorrer sobre uma noite dessas. Todo mundo sabe como acabam as conversas embaladas pelo efeito do álcool, onde terminam os flertes do percurso, disfarçados em meio às risadas sonoras.

Vai pra onde?
Pra casa.
Te acompanho.

Foi questão de uma ou duas quadras. Eram os planos dele e também os meus, uma cerveja a mais e um livro autografado. Faz parte do jogo. Enganar-se, mentir, sorrir de canto, dizer uma coisa sabendo que se diz outra.

O cachorro esperava à porta. Coitado, preciso dar comida pra ele.

Transar com um homem mais velho nunca foi exatamente uma fantasia minha - transar com ele era. O fato de ser mais velho era um adicional. O romantismo sujo trabalhado pelos anos e a consciência do toque, sem carinhos desnecessários. O que corre enquanto estamos um sobre o outro não é um fluxo de pensamentos. Tampouco as narrativas que os povoam. O mundo não precisa acreditar no prazer e não precisa acreditar em orgasmos múltiplos. A corrente que percorre o corpo inteiro, seca a boca, contrai músculos, revira os olhos.

Ele era um desses homens. Da literatura de todos os tipos. Livros e fluidos corporais. Nomes mortos de todos os séculos nos observavam. A luminária era pequena, mas clareava quase todo o quarto. Tons laranja-amarelados que jogavam uma miríade de sombras sobre o chão e as paredes. Apaguei o cigarro e fui até os livros empilhados ao lado da cômoda. Quando levantei, ouvi o clique da câmera.

Porra. Deixa eu ver.
Não vai me obrigar a apagar.
Não, na verdade não.
Não.
Tem um quê de vaidade, saber que tu tem uma foto minha sem roupa.
Eu posso jogar na internet.
Tu não vai fazer isso.
Mas posso fazer.
Bom, mas não tem nada do que eu me envergonhe aí, então.

Quanto tempo leva uma decisão? No espaço de uma quadra, no espaço físico e temporal de uma quadra e uma noite quente de meia estação. As luzes da cidade ao redor, vorazes e mórbidas.

Na calçada, chequei o celular. Ele tem uma foto minha. Uma chamada perdida do meu namorado. Eu dormi com ele. O irmão podia estar bem ou podia ter morrido. Eu transei com ele. Eu não liguei antes de dormir. Merda.

8 de janeiro de 2014

a província

Ué, cansou?
É, por aí. Não fisicamente.
...
É tudo igual aqui, né. As festas. Qualquer lugar que tu vá, qualquer bairro, nas faculdades: tocam as mesmas músicas, pro mesmo tipo de gente, vestindo o mesmo tipo de roupa. Vai dizer. Não tem nada diferente.
Ele botou a ênfase na palavra quando falou, como se para ressaltar ainda mais o que era óbvio, era tudo igual. Mudavam comportamentos, algumas dinâmicas de noite conforme o lugar, mas a essência era mesma. Na província, tudo é provinciano.
Eu sempre tive um pouco de medo disso, na verdade.
Do quê?
Disso, de ser uma dessas pessoas. Igual a todas as outras, vestida como todas as outras. Sabe? É como se eles não fossem além daqui.
E não vão, né.
Tu foi.
Por que tu não te muda também? Qualquer cidade tem uma vida mais pulsante que isso aqui. De repente é o que te falta.
Ah, os vícios de linguagem. Alguns nunca se perdem. Antônio percebeu, mas não se corrigiu, e ela percebeu também, mas tampouco o corrigiu, e os dois sorriram em meio àquela pausa gramatical. Do parapeito interno onde estavam, via-se a rua vazia. Lá fora era silêncio e vazio.
Não te escora na janela, vai que esse troço abre.
Porra, nem minha mãe diria isso.
Tu não sabe quantos anos tem esse prédio. Nem em que estado tá essa madeira. Não é impossível.
Cara, olha essa música.
Vai tocar pelo menos mais umas duas vezes.
Hah. Meu deus. Eu me esqueço de como é por aqui, às vezes.
É bom esquecer o que a gente não gosta de lembrar, né.
Meu passado me condena, definitivamente.
Quando tu for um escritor célebre, além de conhecido, depois de ser famoso, eu vou vender essas informações. Cada uma delas.
Tu vai sair daqui pra fazer isso?
Não sei, talvez.
Ir ou ficar era ao que se resumia boa parte da vida, ao menos enquanto ainda se fosse jovem o bastante. O que é uma capital sem importância? Chega-se fácil ao ponto de sentir vergonha. Longe dos cenários que estampam a imaginação. Antônio coça os cabelos, entediado. Ele  foi. Escapou de ser incógnito aos olhos da vida.
Outra ceva?
Tu sabe que não vai conseguir o que tu quer se continuar aqui.
Eu sei é que os lugares pra onde eu iria não são viáveis.
Tem que começar por algum lugar.
E o livro novo?
Tu não muda, né.
Não era um sonho roubado. Era mais um sonho dividido. Sonhado pelos dois, vivido só por um. Enquanto Antônio levanta para pagar por uma última cerveja, ela espera, ainda no parapeito, pensando em como fazer para não estar quando batem na porta. Por que escolher a solidão? Ele volta sem os copos.
Vamo embora, isso aqui tá um saco. E eu tô com meu livro novo lá em casa pra te dar.