29 de setembro de 2019

as roupas secaram


Penduro as roupas recém lavadas no varal. Mais roupas do que o espaço permite. Minha mãe diz que assim vou acabar estragando a máquina de lavar. Porque boto coisas demais ali dentro. Mas a máquina tá ali há dez anos e continua funcionando.

E o varal não arrebentou.

Dentro de mim cresce um grito. Que escapa às vezes em sonho: a janela ficou aberta, entraram em casa, um cachorro parado à porta do quarto, quando levanto e me aproximo ele foge, tem mais medo de mim do que eu dele, mas porque grito, e o assusto, ele reage, e me ataca.

Seria uma metáfora?

- Não sinto mais tua falta – tenho vontade de dizer – tudo o que podia acontecer entre nós já aconteceu. Não sobrou nada, e o resto é só complicação. Respostas que não quero mais dar porque me obrigam a lembrar que não sou quem gostaria de ser.

O amor é só demência e confusão.

Se é.

O silêncio agora tem horários. Não terminei a mala. Não apertei o parafuso solto da porta do banheiro. Comprei bananas.

Lembrei do Samuel, que tá na Nova Zelândia. Disseram que ele vem agora. Em algum momento desse mês. Ou no começo do próximo? Foi só uma noite. Beijos numa pista lotada. Escorados na parede suja. O chão grudando de cerveja derramada. Nossos corpos colados, pernas e braços que se moviam como se quiséssemos subir um no outro. O volume entre as pernas dele querendo escapar das calças. Depois nos perdemos no meio das pessoas. Ele chegou a pegar meu celular. Trocamos umas mensagens. E poucos dias depois ele viajou. Agora vem de novo, não sei por quanto tempo. Também não sei quase nada sobre ele. Mas sairia de novo nem que fosse só por mais um beijo daqueles. Desses que a gente ainda sente nos lábios no dia seguinte.

Dormentes.

Extasiados.

Por que pensar nisso agora?

Tudo o que me chega à cabeça em uma noite de insônia. Com o mesmo objetivo: adiar a realidade. Mas já são quatro da manhã, acordei cinco vezes, virei na cama a noite inteira, pesadelo atrás de pesadelo.

Penso na gente nas escadas da Borges. Escorados ali, tomando uma cerveja.

- Tu vai voltar comigo dessa vez?
- Vou. Nunca entendi por que não fui da última, pra ser sincera.
- Nem eu.
- Acho que eu não faço muito sentido.
- Melhor assim.

Olhamos para um céu sem estrelas. É uma noite de nuvens, como o será o dia de amanhã. Subimos as escadas e pegamos à direita. Juntos, rumo ao desconhecido.

Acordo e não tenho vontade de levantar. Eu nunca tenho vontade de levantar. Como se escondida do dia na penumbra do quarto pudesse manter ali também minhas angústias. Bobagem. Preciso tomar banho e varrer o chão.

Abro meu caderno, anoto pensamentos aleatórios. Os sonhos estranhos que tenho. Levanto as cortinas da cozinha, coloco música, corto alho e cebola. Gosto do cheiro de alho que fica nos dedos. Depois passo um café e olho pela janela.

Parece que as roupas secaram.

18 de setembro de 2019

ninguém vê nada


Meia hora se passou sem que eu dissesse uma palavra. Ela estava esperando, contudo. Por algo. Um sinal. Um começo. Um ruído qualquer. Um fio de história que ela pudesse puxar.

Nada.

- Não tenho mais o que dizer.

Meus olhos encaram o vazio.

Tenho vontade de rasgar o fluxo do tempo e desfazer todas essas distorções. Calar todas as bocas. Interromper todos os pensamentos e o curso de uma vida que não é a vida certa. Que mundo é esse em que todas as distopias parecem plausíveis?

Elenco desgraças desejáveis e assisto aos absurdos que desfilam ao meu redor. Não tenho ânimo de me insurgir contra nenhum deles. Ela esperava mais de mim. Ela sabe que eu poderia mudar tudo por nós duas e por isso a mágoa.

- Por que você não faz nada? – me pergunta.

Eu não sei.

As ondas do tempo explodem, os dias se repetem, um segundo substitui o outro. Estamos em um carrossel ou em uma roda-gigante – qualquer coisa que gira sem sair do lugar. O mundo passa diante de nós e do alto podemos ver o horizonte. A borda de um buraco negro é chamada de horizonte de eventos.

Desço e caminho, mas por mais que eu ande há sempre um limite, uma barreira que não consigo ultrapassar.

- Sozinha eu não vou conseguir – digo a ela.
- Você sabe que não pode contar com mais ninguém – ela retruca – somos só nós.
- Eu sei.
- Não é exatamente estar sozinha.

Quando no fim da tarde o céu muda de cor, as primeiras estrelas despontam para nos lembrar: o que vemos não existe mais. Olhar para o céu à noite é enxergar o passado. De frente, nos olhos. São as estrelas os olhos do passado. Outros mundos foram possíveis, outros mundos ainda serão.

Já não falo com mais ninguém. Desapareço todos os dias: em meio a uma vida que não é minha, em meio a palavras que não são minhas. Meu é o silêncio, minha é a solidão.

- Até onde vamos com isso? – pergunto.

Ela sabe, mas não responde.

Qualquer que seja o final, o carregamos conosco desde o começo. Trazemos a morte no peito no momento em que viemos à vida. Eu só queria mais tempo para conversar. Para descobrir os mundos que se perdem em reuniões, séries, mensagens virtuais e vídeos efêmeros. Um dia para exibir um fragmento inútil de vida. Somos feitos de fragmentos e assim nos apresentamos ao mundo. Ninguém vê nada.

Sete bilhões de pessoas. Todas paridas por uma mulher. Na rua, a vida segue – à margem de tudo.

- Vai ser assim até o fim.