16 de dezembro de 2010

o tom

Já há algum tempo não nos víamos nem nos falávamos. Tudo o que eu sabia eram as pequenas bobagens de 140 caracteres escritas no twitter, essa rede para mim ainda incógnita. Então um dia eu o encontrei. Em uma madrugada, na volta ou no caminho de uma noite qualquer, ele estava escorado em um táxi em uma esquina. Os ombros inclinados, olhando para baixo, as mesmas roupas de que eu me lembrava. Cheguei sem saber o que dizer e, quando dei por mim, estávamos dentro do carro conversando. Discutindo e não discutindo, nossas vozes baixas. Ele me falava com toda a naturalidade da namorada, e eu escutava, também com naturalidade, quando - eu não sabia. Não estou mais certa acerca do que eu disse em seguida, só me lembro de desejar não chorar ao mesmo tempo em que sentia lágrimas escapando dos meus olhos e se misturando com o que quer que eu estivesse tentando dizer, deixando minha voz pastosa, enquanto ele ainda falava, agora em tom de desespero. Pudemos ouvir passos fortes aproximando-se, o som característico dos saltos, e ela, ou quem eu supus ser ela, abriu a porta do táxi com alguma violência e entrou, não gritando, mas falando em um tom de voz um tanto elevado. Ou talvez não. Talvez fosse aquele seu tom de voz natural. Tem pessoas que falam mais alto, que não precisam de muito esforço para serem ouvidas. Eu olhei para ele, saí do carro e voltei para casa a pé. Pensando só em dormir. Em silêncio.

7 de setembro de 2010

solidão acompanhada

Fui chamada lá e nem sabia por quê. Soube que queriam falar comigo, qualquer coisa com relação a outras coisas ainda não resolvidas. Mas eu não costumava conversar muito com nenhum deles, então por que de repente queriam a minha presença? Que adicional eu traria a um assunto tão desimportante para qualquer pessoa sensata? Mas eu fui. É parte de mim atender quando me chamam, menos por vontade de fazer o que quer que possam pedir do que por alguma satisfação em ser requisitada.

Eu estava na casa de uns primos - e agora não sou capaz de recordar o porquê de estar lá, uma vez que pouco falo com eles também - que foram gentis em me oferecer carona. Ao chegar, um grupo de pessoas veio em minha direção, sorridente, quase de braços abertos para um abraço absurdo, e uma delas me informou alegremente que ele queria falar comigo. Perguntei onde ele estava, muito surpresa com o que acabara de ouvir. "Lá em cima", disseram, "no corredor".

Eu não sabia que corredor era aquele, nunca havia estado lá antes. Ou talvez já estivesse estado, e minha memória estava a me enganar mais uma vez, como costuma acontecer, de quando em quando. É bem possível, eu pensei.

Cheguei ao último degrau da escada e virei a esquerda para entrar no corredor. O chão era um piso de ladrilhos beges já bastante gastos, havia várias portas de ambos os lados e, por alguma razão a mim ainda obscura - talvez falta de atenção ou interesse, talvez pelo comprimento -, eu não consegui enxergar o fundo do corredor. Havia pessoas escoradas aleatoriamente pela parede ao longo da extensão que eu percorri, e algumas sentados no chão. Quando finalmente o encontrei, ele era um dos sentados no chão, tive a impressão de que era o último - a última pessoa postada naquele corredor, matando tempo; não havia mais ninguém até o misterioso fim que eu não pude enxergar. Poderiam meus olhos me enganar também, além da minha memória? É bem possível, eu pensei outra vez.

Nós pouco nos conhecíamos. Na segunda vez em que o vi, eu sóbria, ele bêbado, estávamos em uma festa de início de aulas da faculdade - ou, em melhores termos, uma despedida das férias. Ele caminhava pela calçada cantando e falando sem parar coisas na maioria incompreensíveis, segurava uma garrafa de cerveja vazia na mão e jogava as pernas de qualquer maneira uma na frente da outra, em uma tentativa vã de andar em linha reta. "Quem vai contribuir pra mais uma?", ele perguntou, rindo. Eu pus algumas moedas na mão dele e nós dividimos uma cerveja. E foi isso. Depois daquela noite, eventualmente nos encontramos e dizemos oi ou participamos de uma mesma roda de conversa - é o nosso vínculo. Tendo consciência disso e não sendo eu uma participante muito ativa dos eventos acadêmicos festivos - e tendo consciência disso também -, fiquei curiosa ao saber que ele procurava por mim.

Sentei ao lado dele, no chão.

"E aí, disseram que tu tava me procurando."

Ele estava rindo sozinho. Os olhos claros brilhando no rosto de bochechas rosadas levemente escondido pela barba e cabelos. Não tivesse certeza do contrário, eu poderia dizer que ele estava bêbado também na ocasião.

"É, eu quero um beijo", ele respondeu, para minha surpresa ainda maior, em um misto de riso e seriedade, e eu não pude decifrar qual era o verdadeiro - ou se ambos o eram.

Fomos para a rua. Os dois rindo sem qualquer motivo aparente. Não tivesse a infeliz certeza do contrário, eu poderia dizer que estávamos chapados.

Paramos próximos a uma mesa próxima a uma parede escura. Ele riu pra mim, e eu acariciei o rosto dele, percorrendo com os dedos a bochecha direita dele. Era uma pele inesperadamente lisa e macia, como a de um bebê, daqueles de rosto gordinho. Eu ri ao pensar nisso. Ele beijou meu rosto e pegou na minha mão. Ele usava uma camiseta de mangas curtas, de maneira que eu pude ver e tocar seu braço. E a mão. Mãos de homem. Como se tivessem sido cuidadosamente desenhadas e planejadas para ser exatamente como eram naquele dia. Nós ainda sorríamos sem qualquer motivo aparente.

"Eu tenho namorado."

"..."

Nós ainda sorríamos.

"Ele nem vai saber."

"Não. Eu quero que tu confie em mim, se um dia acontecer, né."

Nós ainda sorríamos e nesse momento nós rimos. Ele riu. Não sou capaz de lembrar o que ele disse em seguida. Talvez não tenha dito nada, apenas rido. Talvez tenha me abraçado e ido embora ainda sorrindo com os olhos claros brilhando no rosto de feições interioranas. Eu não me lembro. Antes de ele ir, contudo, eu percebi que minha mãe me esperava no carro, parado a poucos metros da mesa em que nós estávamos escorados, ensaiando uma história de mentira, sorrindo sem qualquer motivo aparente.

Ele foi embora de repente, sem que eu percebesse.

"Por que tu ficou esperando sem fazer nada, se tu sabia que não tava acontecendo nada? Que não tinha ninguém de verdade ali?", eu perguntei a ela, que me olhava meio perplexa.

O problema nunca vai ser estar sozinha, eu pensei; o problema é não estar sozinha e, no entanto, sempre estar. É o pior tipo de solidão, a acompanhada.

4 de agosto de 2010

eu ouviria


"Quem guarda seus bebês guarda pedaços de si. Eu acho, eu guardei minha boneca antiga e lembro de um tempo que não lembro de verdade, mas invento."


Estou em uma prateleira, em cima de um pequeno armário. Bem à frente do meu pé esquerdo, jaz um mosquito. E ao meu lado esquerdo fica a porta do quarto que dá para o pátio dos fundos.
Daqui o cenário é sempre o mesmo: a cama, a prateleira com a televisão de plasma, o armário e a porta do quarto. Não há muito que se ver; ou o quarto está vazio, ou ela está sentada sobre a cama assistindo à televisão, ou na cadeira em frente ao notebook, ou simplesmente dormindo. Às vezes aparecem outras pessoas: amigos que vêm beber e fumar, a família, sempre tentando organizar as coisas de uma maneira melhor, o namorado. Mas na maior parte do tempo ela está aqui sozinha, cuidando sozinha da vida de que eu só conheço a parte que se passa neste quarto.
Eu passo todo o meu tempo observando. Não durmo. Tampouco morrerei um dia. Talvez ela se desfaça de mim, me passe adiante como fez seu pai e, antes dele, a mulher que me buscou na loja. Enquanto nada acontece comigo, porém, eu fico aqui, observando atento cada movimento, cada mudança, por mais sutis que possam ser. Não tem grandes altos ou baixos uma vida como a minha: eles se resumem aos altos e baixos de vidas alheias que eu tenho a oportunidade de presenciar dia ou outro. No entanto, digo, é na serenidade e na calmaria que tomam corpo os pensamentos serenos e calmos, dignos de meu cuidado.
Às vezes, ela almoça no quarto. Às vezes, ela tenta estudar, sempre parecendo inconformada com todos aqueles papéis. Às vezes, ela se olha no espelho. Às vezes, ela fala sozinha coisas que nem sempre eu compreendo. Da vida, de pessoas e sentimentos que eu não conheço, de um futuro e de um sentido que ela não consegue enxergar.
Quando ele aparece, eu fico satisfeito. Ela assiste à TV e vai e volta até o banheiro ou a sala enquanto espera, mas quando ele chega ela sorri. Os dois se beijam e riem e brincam um com o outro. É quando eu vejo a felicidade – o que eu imagino ser a felicidade: as rugas que se formam no canto dos olhos deles enquanto em suas bocas se esboçam sorrisos bonitos. São risadas gostosas. E, para quem assiste a tudo parado, melhor do que a felicidade é o som que ela é capaz de fazer.
Outro dia, no entanto, há mais tempo do que essa felicidade, ela fechou as portas do quarto, apagou a luz, deitou-se na cama e chorou. Era uma tarde de final de semana. Era possível ouvir os vizinhos do andar de cima, que conversavam alto e riam ouvindo música gaúcha e sertaneja. Mas ela, aqui, à minha frente, estava sozinha. Eu a via de longe, sereno, no canto do quarto reservado para mim, como em todos os outros dias, e via seus olhos marejarem aos poucos. Então ela afundou o rosto no travesseiro, na tentativa de abafar o som dos soluços e do choro. Estava tão triste. Desesperada. Eu torci para que algo acontecesse, qualquer coisa que fizesse aquela tristeza mais amena. Foi quando o celular tocou. Ela atendeu e, logo depois de desligar, jogou roupas na mochila e foi embora. Os olhos ainda estavam vermelhos quando ela saiu pela porta. Ela ainda sofria com algo que eu nunca saberei o que é – no sentido de que nunca poderei sentir. Mas ao menos estava indo embora. Ao menos o som havia parado. Porque, para quem assiste a tudo parado, pior do que a tristeza é o som que ela é capaz de fazer.

14 de julho de 2010

falaria

Eu tinha vontade de contar. De falar tudo aquilo que eu sempre guardo. De falar, falar, falar, só falar, por minutos e minutos seguidos. Soltar todas as palavras no ar, para que pairem entre nós, silenciosas, até que se decida o que fazer com elas. Não para causar mudanças - mas podem palavras serem ditas sem que algo mude no mesmo instante? -, não para suscitar reflexões desnecessárias. Apenas para desabafar - um desabafo que não é desabafo, de coisas mundanas e de uma rotina sem graça, mas que de tão contidas e por tanto tempo parecem enormes. Dividir: porque ao dividir uma tristeza ela diminui e ao dividir uma alegria ela aumenta. Falaria da morte do meu avô, de episódios aleatórios da minha infância, de pensamentos que me ocorrem no ônibus ou enquanto leio, de sensações que me assolam repentinamente de quando em quando, em frente à lareira ou sob o sol no jardim. Falaria do que eu ouso pensar a respeito do amor. (Ouso, porque o amor é algo fora do alcance do raciocínio humano. Sempre tive e tenho ainda problemas com o amor. A incompreensão do porquê de todas as pessoas não se acomodarem, como eu, a uma sensação tão constante e tranqüila e deixar que ela tome conta de tudo dali para frente. A incapacidade de tomar conta da própria cabeça. O desejo insano e incontrolável pelo eterno.) Falaria das idéias ainda engatinhantes do que eu julgo um ideal de futuro. (Sempre tive e tenho ainda problemas também com o futuro. Por razões que vão muito além do manjado porém não por isso insincero 'não saber o que fazer da vida'. É algo intrínseco, que não me deixa ser otimista ou fazer planos, que não me deixa pensar em nada diferente do fracasso e da mediocridade quando o som da palavra - futuro, futuro! - me chega aos ouvidos.) Falaria dos livros que eu leio. E dos devaneios que passam por mim à noite quando tenho dificuldade de dormir. Eu falaria.

15 de junho de 2010

de rua

Minha vida é diferente da sua. É, pode apostar. Eu sei que você não acredita, porque tem seus próprios problemas e, afinal de contas, quem não os tem? Não se preocupe, eu conheço bem as pessoas e os mecanismos que regem seus atos e seus pensamentos e não hei de julgar ninguém por subestimação. Sei que, para cada um, a própria vida é maior que as demais. E como pensar de outro modo? Dar-se conta de que a nossa vida é só uma no meio das outras e que ela nada tem de importante e relevante pode ser fatal. Mas não para mim. Eu disse que minha vida é diferente. Eu vivo em lugares diferentes - dia por dia. Posso voar sem ter asas. Tenho todo o conhecimento à minha disposição de graça e a qualquer hora. Tenho idéias e as escrevo na ilusão de que não se percam - mas eu as tenho. Vejo longe. Vejo dentro desse organismo que chamamos de cidade. Minha cama nunca é a mesma da noite anterior. Só minhas roupas se mantêm. Carrego a vida em uma mochila velha ao redor de um lugar que eu nunca conhecerei por inteiro - embora possa conhecê-lo sem sair da calçada. Minhas mãos tocam paredes e troncos de árvores e bancos de praça que milhões de outras já tocaram, e isso me põe em contato com aqueles que nunca conhecerei. Tenho inteligência e capacidade para muito mais, para quem sabe ser rico, mas escolhi o outro lado. Assim, as pessoas passam por mim e fingem não me ver. Algumas sentem pena, em seus caminhos de volta para casa, enquanto divagam sobre a desigualdade do mundo, mas sem saber que aquele a sentir pena sou eu. Pena da pequenez. Da falta de visão em vidas que, não fosse isso, seriam tão promissoras. Você agora pensa em quanto sou imbecil e arrogante, talvez. Mas eu repito: não hei de julgá-lo. Porque você e outros tantos seus semelhantes são a prova de que eu necessito. São meu meio de saber que estou certo. E vocês passam por mim todos os dias. Provam-me todos os dias a veridicidade do que penso sem dizer uma palavra, sem dar um passo fora da linha imaginária que seguem. Eu morri para você. E morri também para o mundo e para as outras pessoas, mas continuo vivendo. E, no dia em que eu morrer de verdade, eu ainda continuarei vivendo.
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Do clube.

26 de maio de 2010

a loja

A menina entrou com o pai em uma loja. O dia estava claro na rua, quase ofuscando a visão, mas não fazia sol. Era só aquela claridade quase insuportável. Dentro da loja, que mais parecia um barraco gigante, a luz era mais amena, era possível enxergar sem apertar os olhos. E ela olhou para cima a tentou calcular a altura, sem conseguir. O teto ficava tão acima das cabeças que era difícil saber se era de madeira ou não. Apesar de alto, no entanto, o lugar era pequeno e apertado. Uma centena de coisas se amontoavam sobre tábuas velhas: almofadas, capas de sofá, panos, redes, tralhas de cigano. Havia tapetes no chão e pendurados em todas as paredes. As janelas, que ela não lembra mais ao certo se eram vitrais ou se estavam cobertas por cortinas, eram tão altas que quase chegavam ao teto. Os corredores entre as mesas com os objetos à venda eram estreitos demais para uma pessoa um pouco maior do que o pai poder passar entre eles. Ela olhou para o teto de novo e, dessa vez, percebeu que havia camas e sofás pendurados nele. Era tão alto que eles pareciam pairar imóveis no ar - não era possível enxergar se estavam suspensos por cordas, correntes ou o que quer que fosse. O pai, então, apontou para uma cama vermelha, inflável, com dois sofás acoplados, um de cada lado. "Olha, é esse que eu vou te dar", disse. Ela assentiu com a cabeça, ansiosa por sair daquele lugar. Estava com medo. Queria ir embora dali o mais rápido possível.

18 de maio de 2010

meu espelho

- Mas não era para ser assim.
- Mas não era para ser assim.

- Quando vão começar a ensinar que o mundo não vale tanto esforço?
- Quando vão começar a ensinar que o mundo não vale tanto esforço?

- E os outros?
- E os outros?

- Eles estão sentindo isso também?
- Eles estão sentindo isso também?

- Meu tio disse para eu viver a minha vida. Só a minha vida.
- Meu tio disse para eu viver a minha vida. Só a minha vida.

- Eu só não sei bem como se faz.
- Eu só não sei bem como se faz.

- Eu não sou independente.
- Eu não sou independente.

- Eu não tenho dinheiro.
- Eu não tenho dinheiro.

- Eu aprendi algumas coisas, é verdade, mas há tantas outras ainda.
- Eu aprendi algumas coisas, é verdade, mas há tantas outras ainda.

- Às vezes eu queria conseguir abstrair tudo.
- Às vezes eu queria conseguir abstrair tudo.

- Tudo.
- Tudo.

- Ou sumir.
- Ou sumir.

- Quando chove.
- Quando chove.

- Tem uma arma no fundo do armário lá em casa.
- Tem uma arma no fundo do armário lá em casa.

- E daí?
- E daí?
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Do clube.

22 de março de 2010

nunca mais agora

                         agora

nunca
                                         mais

26 de fevereiro de 2010

fim

Costumavam gravar coisas um para o outro. Às vezes um cd, às vezes pequenos vídeos ou partes de filmes, às vezes trechos de livros ou poemas lidos em voz alta. A voz dela era suave e baixa, mansa. A dele, grave, mas macia, acalentadora. Era tão mais fácil somente ouvir. E era tão mais fácil ouvir as palavras que eram de outros e não deles. A realidade não é complacente com casais que se pensam apaixonados. A ficção é até demais. A mistura das duas era gostosa. Um dia, então, as gravações e toda a tecnologia foram quebrados por um pedaço de papel passado por debaixo da porta. Uma folha de caderno velha contendo toda a sutileza de que só aquela mulher seria capaz com palavras. "Eu ainda não ouvi todas - ainda não! -, mas parece que você sempre sabe do que eu vou gostar. Parece que sabe que vou gostar de me apaixonar por uma banda qualquer, passar um mês sem ouvir outra coisa e, depois, deixá-la ali, ocupando espaço, e ouvir de quando em quando."

19 de fevereiro de 2010

do impensável

"A música não vem daqui."
E era verdade.

13 de fevereiro de 2010

a janela nova

Os vizinhos da frente trocaram uma das janelas da casa. Notava-se a madeira nova, crua - sem tinta e sequer verniz -, apenas lixada, em contraste com as demais, todas velhas, pintadas de forma tosca por um marrom descascado nas partes mais manuseadas e batidas. A nova janela, dotada de uma beleza singular que apenas a simplicidade - a rusticidade - pode conhecer, suscitava nele, deitado na rede na varanda de sua própria casa, uma curiosidade quase infantil. Por que havia sido colocada ali? O que acontecera com a anterior, a velha? Seriam cupins? Alguém a quebrara? Não havia como saber. E, no entanto, ali estava ela, a nova janela, encarando-o do outro lado da rua, com seus vidros e abas abertos, sua cortina branca fechada em balanço com o vento, seus donos sumidos em algum lugar no interior da casa. Quem eram seus donos? Não havia como saber. Ele não conhecia seus vizinhos. E, no entanto, ali estavam eles, em algum lugar no interior da casa. Era possível ouvir suas vozes, mas não era possível distinguir o que diziam. Na varandinha, muito pequena, descansava silenciosa e vazia uma cadeira de diretor, vermelha. O que fazia ali? Não havia como saber. E antes que ele pudesse continuar a divagar, a cortina branca da janela se abriu. Foi aberta por alguém que não mostrou o rosto e que logo desapareceu novamente no interior da casa. Na parede ao fundo, branca, lisa e suja, próximo à porta, velha como as outras janelas, um espelho. Do outro lado da rua, então, ele pôde enxergar sua rede refletida. Mas não seu rosto.

7 de fevereiro de 2010

o fogão

O sono, atrasado, agora fazia pesarem suas pálpebras de menina. Um rosto tão macio e inocente não merecia aquelas olheiras. Os olhos azuis e doces não mereciam aquelas lágrimas amargas. Deixou de lado, então, sobre a mesa de centro, o bauzinho de cartas e fotos e atirou-se sobre o sofá como o faria a menina de dez anos que trazia dentro de si. Deitou a cabeça sobre a almofada, cobriu-se com a capa do próprio sofá e deixou-se vencer pelo sono, atrasado. Entregou-se à agradável sensação de apagar, de se livrar do mundo e da vida, mesmo que por um período de que ela sequer poderia sentir o tamanho. Ainda antes de dormir, pôde aspirar o gás, vindo do apartamento da vizinha. A velhinha, beirando os oitenta anos, sempre acordava cedo para cozinhar e assim ia até tarde da noite, mas o fogão já era tão velho, e todos os vizinhos próximos sentiam o cheiro de gás vindo da cozinha dela o dia todo. Ih, esse não tem mais conserto, ela lamentava, mas minha aposentadoria não chega pra um novo, e esses remédios todos cada vez mais caros também, não dá, não. Naquela noite, no entanto, a velhinha não estava mais cozinhando. O filho, de férias, a levara mais cedo para duas semanas em Fortaleza, sabendo do antigo desejo da mãe de conhecer a Dragão do Mar. E os vizinhos acharam graça do fogão da velha, que, mesmo já desligado, ainda espalhava seu cheiro pelo prédio.

31 de janeiro de 2010

a rapidez humana

Lembro-me das lágrimas no cinema. Elas escorriam e brilhavam sobre seu rosto com a luz vinda da tela. Não faz diferença aqui o filme, e, hoje, sequer sou capaz de afirmar com certeza se era esta a causa daquelas lágrimas. Faziam parte de um processo silencioso e particular que eu não poderia interromper. Retornei minha atenção à tela e apenas apertei e acariciei a mão dela. A mão que tanto me deleitava observar, com todos os seus detalhes imperceptíveis à impaciência.
Que mistérios - para mim - passam a cada minuto por sua cabeça e que princípios e crenças determinam os comandos que percorrem o seu corpo em uma fração de segundo formando as ações e palavras, aquele dia, destinadas a mim? Que desejos e vontades. Que sentimentos...
O mundo é tão rápido.

14 de janeiro de 2010

h maiúsculo

Eu o encontrei em um dos bares daquela rua, em um fim de tarde, por acaso. Ele estava sentado com a namorada, os dois tomavam cerveja e conversavam. Eu cheguei com duas amigas, nós sentamos, pedimos cerveja e conversamos.
Ele usava um all star verde capim, um jeans azul escuro, um lenço xadrez ao redor do pescoço e com as pontas para trás, como sempre, e a camiseta com o Che de ray ban - "eu nem me dei conta naquele dia. No quarto de um militar com aquela camiseta. Ele ficou me olhando sério e não me cumprimentou, e eu não entendi por quê até minha namorada me puxar pela porta de volta. Passei um mês sem pisar na casa. Mas, ah, o que que eu ia fazer? A camiseta era bem como eu sou, mesmo: uma mistura, uma mistura que não dá pra entender e é isso."
Eu usava meu all star bege, um jeans também azul escuro e uma blusa vermelha sem mangas - "vermelho é a cor da sedução, meninas. Quando quiserem seduzir alguém, usem vermelho."
Ele não me viu. Eu fui ao banheiro e, quando saí, a namorada tinha ido embora. Parei na mesa dele e cumprimentei. Perguntei se, depois de quase dois anos, ele ainda se lembrava de mim. "Claro. Era a penúltima fileira à direita, não era?" Minhas amigas olharam, fizeram sinal e foram embora. Perguntei sobre a faculdade de História, que eu tinha vontade de fazer depois de terminar a minha. Ele me deu uma carona. Eu o convidei para entrar e tomar vinho. Ele aceitou. Nós dormimos juntos.
Apenas dormimos.
E mesmo assim me considerei uma vagabunda até a manhã seguinte, quando soube que a mulher, naquele dia, era a ex-mulher, a mãe da filhinha dele de oito anos. "Era minha ex-mulher." Assim. As primeiras palavras da manhã. Como se tivesse percebido que eu acordara há tempo e soubesse no que eu pensava desde então.
Talvez tivesse percebido. Talvez soubesse.
E então me beijou. Com os lábios ainda secos. Com o hálito puro das sete da manhã. Gosto de boca. Sem disfarces, flúor, halls ou chicletes de menta.
E então me beijou. Com os lábios ainda secos. Como só um homem quase vinte anos mais velho poderia fazer. Sem se importar com a pequena espinha que há poucos dias surgira no canto esquerdo do meu queixo. Sem frescuras.
A manhã de verão, sem dar conta dos nossos batimentos acelerados e do suor dos nossos corpos, passou também acelerada. A tarde e a noite pediam para chegar.
Eu o deixei em um dos bares daquela rua, em um fim de tarde, por acaso. A mulher, nesse dia, era a namorada, perdoada.

9 de janeiro de 2010

2010

A luz dos faróis do carro forte em meus olhos, cegando. E depois outro, e outro, e outro, e outro, sem nunca cessar. Feixes sucessivos de luz.

- A vida em películas - ele disse.

Então nós viramos de costas. Os carros continuaram a passar, mas a vida havia parado.