27 de julho de 2013

a sombra

Olho minhas mãos. Estão secas e envelhecidas. Os dedos compridos levemente nodosos que se encaixam em um conjunto já não tão belo. Pequenas manchas se espalham pelo dorso, e as veias aparentes não ajudam. As mãos denunciam os anos mais do que qualquer parte do corpo.

O indicador e o dedo médio, gelados, prendem um cigarro pela metade, e o resto é inerte. O ar gélido da manhã bate na superfície das minhas mãos e rosto e por ela consegue penetrar todo o meu corpo. O vento sopra preguiçoso, mas é o bastante para reavivar o frio há muito esquecido.

Paris ao meu redor segue sua rotina de dias cinzas, e a praça em que estou é esparsamente ocupada. Além de mim, um mendigo sentado ao lado de um carrinho de supermercado e uma senhora com um livro. Ocasionalmente, mulheres e homens em trajes esportivos passam correndo, uma mãe com carrinho de bebê, pessoas indo em direção à estação do metrô.

Em certos dias cinzas do inverno, a cidade é um convite ao frio. E fumar em Paris nesses dias é realizar a própria imaginação. Deixar-se consumir pelas temperaturas geladas do inverno europeu em um misto de satisfação e sofrimento, puro masoquismo. O frio e o cinza acolhem os que sabem se deixar acolher. Aprendi a língua e os hábitos dos franceses e, por repugná-los, fiquei.

No meio da praça, um chafariz desativado ocupa o centro de um desnível circular contornado pelo assento de pedra onde estou. Acendo outro cigarro, pensando com desgosto nos anos que deixei a vida levar de graça. Pego o caderno no bolso interno do sobretudo e começo a escrever. Era jovem o suficiente quando descobri que escrever era mais do que rabiscar palavras no papel, e mesmo assim essa descoberta levou mais tempo do que eu gostaria. Quase tudo levou mais tempo do que eu gostaria. Escrevo para remediar a depressão e os problemas existenciais e para lembrar que existo. Para provar a mim mesmo minha própria existência.

E enquanto escrevo senta à minha frente, do outro lado da fonte, uma mulher de meia idade. Usa óculos, tem cabelos castanhos curtos e uma manta vermelha para proteger o pescoço. Ela fica parada por alguns minutos, olhando para o que pode ser qualquer lugar mas é o nada, até que começa a revirar a bolsa. Tira um caderno e um livro que começa a folhear e, quando aparentemente encontra a página que procurava, abre o caderno para escrever.

Não sei nada sobre essa mulher que escolheu o mesmo lugar que eu para fazer a mesma coisa. Ela fala inglês no celular sem qualquer traço da língua local, e quais caminhos a trouxeram para cá eu não sei. Ela era jovem quando descobriu que não poderia viver sem as palavras, escolheu a profissão errada, fez muitas coisas de que não se orgulha ou sente saudade, desperdiçou chances ao longo dos anos e por medo de ficar sozinha rodeada pelos rostos conhecidos que faziam parte de sua vida escolheu a solidão em um país odioso.

Nossas mãos contam histórias. E enquanto ela escreve o que só posso imaginar eu escrevo sobre dias que por acaso me vieram à memória, através da imagem de uma desconhecida. Finais de semana adolescentes em uma cidade e um país que há muito não são mais meus. Companhias duvidosas com quem percorria a noite e ia a lugares ainda mais duvidosos. Apagar em banheiros de estranhos, atravessar a cidade e chegar em casa pela manhã com a sensação plena que só tempos como aqueles poderiam proporcionar: felicidade. Todos esses dias são marcas de um passado tão distante do que eu sou agora que é difícil mesmo repassá-los em pensamento - puxar da memória algo que possivelmente nem esteja mais lá. A vida nos leva a direções que nunca poderemos adivinhar, mas o passado é fixo. Está lá para recordar tudo o que já fomos, o que já vivemos - sempre no passado.

Se passado, presente ou futuro. Há muitos momentos em que não acredito no presente, os segundos que vivemos já passaram ou ainda estão por vir, nunca acontecem no presente, e há muitos outros em que não acredito em nada que não o presente. Sentado na pedra gelada, ignorando o frio, fecho e abro os olhos: para enxergar o lugar onde o único encontro possível seja com o presente. Nem memórias falsas nem aspirações inúteis, apenas o aqui e agora.

A mulher retira da bolsa um fone de ouvido que conecta ao celular modernoso em seu colo e então continua a escrever. Imagino a solidão que sinto. E imagino a vida da mulher como costumo imaginar as vidas por trás das janelas iluminadas à noite, apartamentos de donos sem rosto de vidas sem traços palpáveis. Imaginar é negar, mesmo que apenas em nossa mente, o aqui e agora em que estamos. A transformação de qualquer estado de coisas supõe não apenas um ato de vontade, mas também essa força negativa da imaginação.

Li essas palavras há tantos anos que não sou capaz de contar, mas não poderia concordar mais. E cá estou, outra vez negando e fugindo do meu próprio presente. Como a vida inteira, fingindo uma vida enquanto ela durar. Há coisas que escapam e há coisas que permanecem. Minha covardia fugitiva, meu medo encoberto por arrogância forjada.

A mulher contorna o chafariz e passa por mim. Alguns passos adiante, deixa cair a caneta, que rola até próximo de onde estou, e sou obrigado a levantar para alcançá-la. Enquanto a entrego e ouço de volta um "merci" desajeitado, noto as mãos dela. Nossas mãos contam histórias. E as rugas no dorso de ambas não nos deixam mentir. Nossas mãos são iguais, como nossas histórias, que mesmo alheias uma à outra são a mesma. Pontas de um emaranhado de galhos que por um instante se tocaram ao sabor de uma brisa passageira.

Ela segue adiante, e eu volto ao meu caderno sobre a pedra fria. Em minha cabeça, dançam fantasias: um dia meus cadernos serão lidos por aqueles curiosos, sedentos de conhecer a vida de um escritor morto, sem saber que nenhuma vida alheia é plenamente alcançável. Acredito em infinitas séries de tempos que se tocam em momentos dispersos. E essa trama de tempos - que se aproximam, se distanciam, se dividem ou se ignoram - abrange todas as possibilidades.

Para prosseguir é preciso desaparecer. Eu escolhi onde estar, e, sentado na praça cujo nome desconheço, sou apenas uma sombra de mim mesmo.

22 de julho de 2013

a presença

Toda a raiva reprimida, sufocada, anestesiada durante não interessa quanto tempo desferida em golpes no colchão, nas almofadas, com toda a força possível para um corpo deitado, soluçando com o rosto enterrado entre outras almofadas, gritos surdos abafados por essas almofadas para que os vizinhos não ouçam, nem a pessoa na sala. Os olhos vermelhos, mas não era maconha, antes fosse, e ardiam como se queimassem dentro do globo ocular. A dor de forçar a mandíbula sobre o travesseiro. Soltar de qualquer forma o que precisava sair, o sentimento engasgado que impedia a chegada de ar novo aos pulmões. E a mão doía dos socos dados sobre a mesa. Qualquer um diria que é loucura. Essa pessoa claramente tem problemas emocionais e de autocontrole. Autocontrole. Autocontrole. Autocontrole é o cacete. É bonito demonstrar amor e felicidade mas quando se demonstra raiva é falta de controle. São hipócritas e vendem essa ideia ridícula de uma vida bonita e certinha. Raiva. E mesas e almofadas serão socadas, gritos serão dados, cabelos serão arrancados e choros serão ouvidos ou abafados. O gosto salgado das lágrimas. A merda de não estar sozinho. Não pode andar sem roupa, não pode ouvir música alta, não pode gritar, não pode chorar, não pode escolher o canal da TV, não pode ir ao banheiro e deixar a porta aberta, não pode porra nenhuma de tudo o que você fazia antes. Não do mesmo jeito. Não à vontade. Porque ninguém é o que é quando a outra pessoa está presente. Porque a pessoa está ali, na sala. Ou vai chegar a qualquer hora. E por mais que seja só uma presença silenciosa ela desordena tudo aquilo que levou tanto tempo para ser ordenado. Uma rotina. Uma série de hábitos. Uma vida inteira. E já não há mais nada. Só raiva. E o desejo incontrolável de viver nos lugares que não existem. Não estar. Mas não: a vida é aqui e agora, e contra tudo o que se pode querer. São casas e pequenos prédios de tijolo à vista e janelas e portas de madeira não pintada. Espiar para dentro, imaginar aquelas vidas, ansiar pela solidão. A sensação de chegar em casa e sentar no sofá e sentir a paz desse momento porque é o lugar mais aconchegante que poderia existir. Mas a pessoa está lá. E das 24 horas de um dia, das 24 horas de todos os dias, não há mais uma sequer em que a pessoa não esteja lá. No mesmo sofá, na mesma cozinha, na mesma pia do mesmo banheiro, na mesma cama. E toda aquela diligência irritante de quem não se incomoda com outra presença; mais do que isso, de quem gosta dessa presença. De longe o som da voz de quem um dia disse que ninguém quer ficar sozinho. O paradoxo das vontades e desejos que, por escolha própria, nunca iremos satisfazer. Ao lado da pessoa que está sempre ali, que faz o almoço e o café da manhã, que lava a louça e não é capaz de ir embora, a descoberta inevitável: eu não quero mas nasci para ser. E aos poucos o corpo sucumbe ao impulso. E para a pessoa que está sempre ali não poderia haver dia pior, mas seria o dia de alforria. Arrancar da pele uma vida que só existe na superfície, romper o elo da presença contínua que exerce essa força centrífuga viciosa. E deixar para trás todas as marcas de identidade e os vestígios materiais da pessoa que se foi. Não importa onde - para nunca mais voltar.