29 de outubro de 2012

os carros

Pense nos carros.
Pense em um modelo de carro.
Pense em quantos deles há em uma cidade.
Pense em todos os carros de uma cidade.
Pense no barulho dos motores desses carros.
Pense nas buzinas.
Pense que em cada um desses carros ouve-se algo diferente.
Pense em todas essas músicas tocando ao mesmo tempo.
Pense nas pessoas que conversam ou gritam umas com as outras dentro dos carros.
Pense em quantas pessoas dentro de carros existem em uma cidade.
Pense nas vozes falando sem parar ao mesmo tempo.
Pense nos motores de todos os carros fazendo barulho ao mesmo tempo e ao mesmo tempo em que as pessoas dentro desses carros falam enquanto ouvem música.
Pense na confluência de todos esses sons.
Pense nas bocas se movendo, pense na fumaça que sai pelo escapamento, pense no calor.
Pense nas cores do semáforo, pense no som de uma freada, pense no som de uma batida.
Pense nos gritos.
Pense no caos.
Pense que essa é a nossa vida.

Eu nunca parei para pensar.
Na vida que já foi, na vida que existe, na vida que poderia ser, na vida que será. Talvez realmente não exista um homem que não seja, em todos os momentos, tudo o que foi e tudo o que será. Talvez nós sejamos mesmo donos da eternidade. Nós só não sabemos disso.

Meu coração nunca vai ser o lugar de ninguém. Imaginei que encontraria a felicidade quando encontrasse companhia. Encontrei diferentes companhias em diferentes momentos e descobri que era mentira. Em companhia e infeliz, imaginei que era a pessoa errada, sem saber que não existem pessoas certas e pessoas erradas. Sem companhia e infeliz, imaginei então que encontraria a felicidade quando eu fosse só eu - sem ausências, sem vazios, sem tristeza. Consegui e descobri que isso também era falso. Quis ainda acreditar que fosse coisa da minha cabeça, como costumava ser tantas vezes, e depois eu sentia em mim toda a imbecilidade humana – mas a gente sabe quando não é, quando é pra valer, quando acabou de verdade, mesmo que no ano seguinte a gente volte a tentar, não, não dá certo, acabou.

Amei tudo com o triste amor que inspiram as pessoas que não nos amam, com o triste amor que inspiram, nas pessoas que não nos amam, os fracassos, as doenças, as manias. Chorar até sentir dor de cabeça, dor nos olhos, dor no corpo inteiro, até não aguentar mais, até desmaiar sobre a cama na esperança de que desfalecer amenize a dor, mas acordar não vai ser melhor. Chove todos os dias e quando o sol aparece as cores continuam as mesmas. O que eu era morreu ali, tarde da primavera. A atenção e o carinho das pequenas paixões momentâneas agora não são o bastante, não me fazem abrir braços e sorriso e achar a vida linda outra vez. A vida nunca foi linda.

Mais rotina, menos novidade. Ser dá trabalho. Nos delegaram a função de existir, mas existir é demais. É muito. Além ou aquém. Os vizinhos sempre têm algo a dizer, eles falam das seis da manhã às dez da noite, levam a ao pé da letra o horário do silêncio. Não importa os bilhetes que deixam - eles deixam bilhetes nas paredes do corredor porque não falam com os outros. Andam em círculos, felizes.

Meu pai não avisou para não mexer com essas coisas. Ele disse que ninguém quer ficar sozinho, é melhor ter alguém, é isso que faz a gente feliz. Eu caí nessa e dormi e agora não consigo acordar. Não consigo amar e amo. Não quero amar e amo. E se tivesse dado certo? O amor. O que teria sido de nós?

Pense nos casais.
Pense em quantos casais há em uma cidade.
Pense nas mãos dadas, nos beijos, nos sorrisos.
Pense nas risadas e nos cobertores divididos, nos presentes de Natal, no conforto do silêncio.
Pense nas línguas se tocando, nos movimentos de braços, pernas, mãos, bocas.
Pense nas línguas na orelha, nos arrepios sem aviso.
Pense em todos esses casais transando ao mesmo tempo.
Pense nos sons que eles fazem.
Pense nos corpos tão próximos que um está dentro do outro.
Pense no depois.
Pense no cigarro depois do sexo.
Pense nas brigas, nas mulheres que atiram vasos nas paredes, nos homens que dizem que elas são vadias.
Pense em um relacionamento que termina.
Pense nos casais que tentam de novo.
Pense nas lágrimas.
Pense na raiva.
Pense no amor.

Eu nunca parei para pensar.
No amor que já foi, no amor que existe, no amor que poderia ser, no amor que nunca será. E se tivesse dado certo? Há uma solidão terrível em um que faz planos para dois. Qualquer coisa impronunciável, que as palavras não descrevem. Morar juntos, a cinco, dez anos daqui. Ou agora. Nós teríamos livros e cds em pilhas numa praia longe dos carros. Café. Gastaríamos o tempo e o dinheiro que fossem necessários para encontrar um sofá decente. Redes na varanda. Cozinharíamos juntos. O mar. Andaríamos até um lugar que nos satisfizesse e então nos deixaríamos ficar. Enxergaríamos o que somos no outro. Eu nunca parei para pensar, mas nunca vou ter um carro.

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