17 de outubro de 2014

o covil

Nem desfazer a trança, nem tirar a maquiagem. Nem trocar de roupa. De meia calça e vestido mesmo. Que importância? De que vale todo o cuidado - ah, a pele, o cabelo - depois de uma noite assim? Vinho barato e cerveja, cigarros demais, música ruim e pouca gente. Parados, como nas festinhas de garagem da sexta série.

E dormir e acordar menos de quatro horas depois ainda na mesma posição, a claridade agredindo os olhos, olheiras borradas de lápis e rímel, cílios grudados. Como tinha chegado? De táxi. Mas e o dinheiro? Não lembro onde deixei a bolsa, não lembro de ter entrado com a bolsa, mas só pode ter sido porque senão como teria aberto a porta. Talvez esteja aqui no chão, ou na sala, no sofá. Foda-se. Depois eu vejo. Que horas são. Merda.

Limpar o rosto do jeito que dá, palmadas de água na cara. Não dava pra usar o casaco de novo, cheirando a noite ruim. O olfato é o menos considerado dos sentidos, quem escolheria perder qualquer um dos outros?, e ainda assim os odores norteiam todas essas coisas que a gente mal percebe. O cheiro das roupas depois de uma noite boa é o mesmo e não incomoda.

Virar a bolsa em cima da cama. Catar as moedas, notas amassadas, identidade. Cadê o meu celular? Não tá aqui. Ai, meu deus, eu não acredito. Só me faltava essa. Merda.

Atende. Vamo, atende, porra.

Oi. Eu esqueci meu celular. É. Pois é. Como posso fazer pra pegar? Vai estar em casa ao meio-dia? Tá. Beleza. Não, tenho que trabalhar. Tá bom. Aham. Tchau.

Tu vai embora no meio da madrugada pra não ter que ver mais a pinta e agora essa.

Que merda, que merda, que merda. Como é que pode pensar ter gosto? Como é que pode pensar espalhar esse asco pelo corpo inteiro? Como é que pode que eu seja tão imbecil? E chegando na esquina os motores e as buzinas e as pessoas silenciam quando o toque no ombro te puxa e te faz virar e te faz ver. Como é que pode alguém ter esse efeito?

E literalmente basta um piscar de olhos. E num repente nada mais importa. Olhar olhar olhar e olhar, e arrastar os passos para que demore a chegar, e então voltar a olhar. Como se de olhar algo pudesse mudar. Que nem idiota, sonhando acordada no expediente. Atrás de uma desculpa qualquer, de uma mínima oportunidade pra dizer qualquer coisa, uma mão que esbarre na outra sem querer. Uma hora ou quase dos mais absolutos devaneios.

Por que não podia ser com ele? Ele, que é o homem da minha vida sem saber que é. Tocar, e sentir pele com pele, deixar só pra ele tudo o que já foi dos outros. Misturar cabelos, cheiros, carinhos. Não há outro alguém que me faça sentir e querer ser essa metade de casal perfeito. E fico a sonhar e fico a olhar. Como se de longe os olhos pudessem dizer o que às palavras não é dado. Só pra te falar. Largo tudo. Mas é o telefone que toca e o meio-dia que chega e de novo o covil da noite que era pra ser esquecida.

Porra, não quero papo, para de falar, só me devolve essa droga e me deixa ir. Viu, quem sabe agora tu aprende, pelo menos a não esquecer o celular. E se for pra esquecer que seja alguma coisa dispensável. Pode ser até a dignidade, não tem problema. É só não precisar voltar. Não pra um naipe desses. Tá, meu, chega. Tchau. Até nunca mais.