3 de julho de 2012

o cara

Falta de inspiração, tenho certeza de que ele diria. Toda aquela petulância de quem se sente capaz de tudo. De quem sabe tudo. Um bosta, eu diria. Debaixo da asa da mãe, sem se assumir, e vem dizer que é livre. E enche a boca pra falar. "Eu faço o que eu queeeeero", pra todo ouvido desocupado poder escutar. Andando como se fosse dono; "Isso aqui é minha primeira casa", quase canta, cheio de si, circulando entre os bares com aquele arzinho de boêmio. Dentro da jaqueta de couro, atrás dos óculos escuros, e vai cumprimentando tantas pessoas quanto eu levaria uma vida inteira para conhecer. "Bah, nem sei quem é esse cara, meu. Só sei que conheço." E aí eu perco um tempo imaginando qual desses comentários ele usaria para me descrever quando passasse por mim na rua. 'Conheço o cara lá da faculdade. É meio que meu vizinho também, às vezes a gente faz um som juntos e coisa.' Poderia ser. Não sei, é provável que eu nunca saiba. E íamos assim, falando de alguém da faculdade, de alguma coisa do trabalho, de uma música, quem sabe, em direção a qualquer bar, quando a encontramos. Se pendurou na hora no pescoço dele, os cabelos caramelo compridos roçando na barba malfeita que ele trazia quase invariavelmente. “E aíiii”, um beijo na bochecha, “qual vai ser a noite hoje?”. “Não sei. Que que tu tá afim de fazer?”, ele disse botando o braço ao redor da cintura dela. E continuamos; os dois entrelaçados, eu com as mãos nos bolsos vazios do jeans velho. Ele tinha esse jeito meio descolado, meio indiferente que todo mundo costumava adorar. Conquistava as pessoas sorrindo de canto, fazendo uns comentários às vezes infames outras irresistíveis. No final da noite, depois dos beijos e amassos cor de caramelo, cabelos afastados a toda hora, estávamos os dois no meu apartamento outra vez. Do chão, usando o assento da poltrona como apoio pra cabeça, ele fumava um cigarro e me olhava. Eu, jogado no sofá, olhava pro teto, olhava pra frente, olhava pra ele. Aqueles momentos de uma tentativa frustrada de pensar e não pensar ao mesmo tempo. “Pensando em quê?” “Nada.” “Tu sabe que isso não tem a ver contigo, né?” “Isso o quê?” “Ah, para, meu.” “Então tá. Boa noite.” Um bosta, fui pensando, e deitei, na expectativa de dormir e na certeza de que ele viria atrás de mim. “Para com isso”, ouvi a voz dele no escuro, vindo na minha direção. E mesmo que eu fosse responder - muito antes ele estava também na cama, me envolvendo com o braço direito, beijando meu pescoço. Assim eram nossas noites, ou a maioria delas. O sexo depois da discórdia, o amor depois da farsa. Nada que já não estivesse morto no dia seguinte, antes que um de nós atingisse a calçada. Chegávamos à faculdade, encontrávamos turmas diferentes. Ouviam-se dele as exclamações de “Cara, que noite, meu!” ou qualquer coisa parecida igualmente sem significado. “E aí?” era o que meus colegas ouviam de mim. Minha cabeça baixa, meu andar esguio e esse jeito de encarar sem olhar diretamente nos olhos por mais de alguns segundos. Em contraste, ele era uma daquelas pessoas que não precisa de esforço para ser notada ou ouvida, que anda confiante e tem, quase sempre, um grupo de amigos ao redor. Eu sentia raiva. Dele e de mim, idiota e submisso. Diálogos curtos de ‘somos vizinhos’ em troca de noites escondidas. Uns dias depois, ele tocou a campainha lá em casa. “Olha, passei num restaurante e trouxe uma janta pra gente. E vinho!”, disse enquanto deixava as sacolas na bancada da cozinha e vinha me abraçar. O sorriso mais bonito, os olhos verdes faiscando de alegria e inocência. Quem não conhece compra fácil; eu conhecia e comprava todas as vezes. Me fiz de difícil, virei o rosto, não sorri, saí do abraço dele. Inútil. E premeditado também, porque eu sabia que ele não desistiria. Me abraçou enquanto eu estava de costas, me beijou de um lado, depois do outro, enquanto ia dizendo "para, não fica bravo comigo, eu sei que tu não tá bravo" entre outro e outro beijo. Até que eu cedia, me virava de frente sorrindo, escorado na bancada da pia, e nos beijávamos outra vez. Naquela noite, depois do jantar, do vinho, dos beijos, depois de ele tirar minha camiseta enquanto eu abria o cinto e o jeans que ele usava, depois de nos abraçarmos com força, suspirando de prazer, ele suado, respiração audível, depois de deitarmos lado a lado e ele dormir, depois disso eu abri os olhos no escuro. Olhei pra ele do meu lado sem enxergar não mais que um contorno na escuridão do quarto. Não sei se era medo, vergonha ou se era só comodidade. Porque não devia ser ruim, pra ele, aproveitar o melhor de cada um, sugar o melhor de cada pessoa e viver. Ele se divertia, todo mundo gostava dele, não tinha nada do que reclamar. Não tinha nada com que ele precisasse se preocupar; era só contornar a situação comigo, dar o que eu queria, me convencer, e tudo ficaria bem outra vez. Mas naquela hora, deitado no escuro, olhando pro teto, mesmo com ele do meu lado eu tinha perdido as certezas que talvez tivesse. Não acreditava mais, com toda a minha boa vontade, no que ele dizia sentir e que por vezes até demonstrava de formas que eu não esperava. Um dia foi me encontrar em um café perto do prédio. Chegou com um presente e, enquanto eu me concentrava em tentar adivinhar o que seria, veio pra perto de mim na cadeira e me deu um beijo. Com toda aquela gente em volta, até uma guria da faculdade que depois reconhecemos, o que para ele era algo inesperadamente - dificilmente - inédito, e significava alguma coisa. Mas no escuro eu não fui capaz de me lembrar desses momentos. De alguma forma, escondidos pelo preto, que era quase só o que eu enxergava, eles não faziam mais parte de mim, da minha memória. E antes que eu pudesse perceber a dimensão do que fazia minhas mãos estavam sobre o pescoço dele, e não muito tempo se passou até que ele continuasse deitado do meu lado, mas agora sem vida. São assim, as coisas. Todo mundo nasce pra morrer, mas uns sabem matar.

2 comentários: