9 de agosto de 2019

bilhetes


Me pergunto se ele soube fazer ela feliz. Se deixou de ser o disco arranhado que eu ouvi por tanto tempo. Minha vida é uma bosta, odeio minha cidade, odeio meu trabalho, odeio a faculdade, odeio meus colegas, odeio meus professores. Nada tem sentido, todos são medíocres, ninguém entende como o que eu faço e penso é excepcional.

Uma vez a mãe dele me ligou. Nunca soube que cara ela tem. Mas me ligou uma noite. Ele tá aí contigo? Não.

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O tempo nunca se esconde.

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Nunca esteve, de fato. Adotou minha casa como dele, mas nunca esteve comigo. Tinha uma escova de dente no meu banheiro e roupas no meu armário, mas nunca foi sério. O amor existia, mas o abismo que nos separava na maneira de viver e sentir, a discrepância de expectativas – foi demais para duas pessoas que mal sabiam cuidar de si próprias.

Quando levei ele até o portão no domingo de tarde e me despedi, meu corpo soube. Não vamos nos ver outra vez. Atravessei o corredor de volta até minha porta, os passos levando para dentro a certeza: não caminharíamos juntos de novo. E aquilo tudo ficaria comigo – roupas, escova de dente, gilete, os bilhetes que ele escondia pela casa para que um dia eu encontrasse.

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A vida está onde a gente menos espera.

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Seis anos passam. Tu ainda mora no mesmo prédio? Tá em casa? A mensagem que eu vejo e respondo umas duas ou três horas depois. Tava naquele bar mais pra baixo na rua e pensei em passar pra dar um oi.

Era pra ser natural. Foi uma vontade que eu tive na hora. Só isso. Se não acontece naturalmente, melhor que nem aconteça.

Claro. Eu entendo. Pode pensar em passar pra dar um oi sempre que estiver naturalmente bêbado nos bares da minha rua. Naturalmente estarei aqui pra te receber.

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O silêncio às vezes deve ser compartilhado.

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Nossas histórias podem não contar a verdade, mas nunca serão falsas. Carregam frações do tempo. Sensações que ficaram do que já passou. 

Réstias de memória que insistem em não se perder: um cigarro roubado, panquecas em um restaurante temático, o jeito dele de abraçar segurando as mangas do blusão na ponta dos dedos, o sorriso que sempre dizia esse é o melhor lugar do mundo.

Todos os livros do mundo. Um brinde a não saber há quanto tempo estamos juntos.

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A imaginação não é um presente.