Morava sozinha, e nos encontramos no apartamento dela. Toquei
o interfone e logo depois a enxerguei atravessando o hall, de vestido longo verde e sapatos floridos. Os cabelos castanhos, longos e ondulados, eram ainda
mais bonitos pessoalmente e o sorriso – ela sorria e algo dizia que alguém
com aquele sorriso não merecia sofrer. E eu descobriria, mais tarde, ao vê-la
rindo das minhas piadas infames, a melhor das felicidades que já havia
experimentado até então.
Passei
a viver no apartamento dela tanto quanto na minha própria casa. Era fácil: eu
encontrava alguns amigos para beber e lá pelas tantas lembrava que o prédio não
ficava longe e ligava avisando, “abre pra mim?”. Ou saía do trabalho
e, com preguiça de ir até em casa, ia para lá outra vez, e nós jantávamos e
passávamos a noite juntos. Ela não chegou a me dar as chaves, mas eu tinha
roupas no armário e uma escova de dentes no banheiro. Vagabundo, matava aulas
de manhã, porque ela tinha a melhor cama e o melhor sofá, mas esperava ao
meio-dia com almoço. Fazia meus trabalhos lá. Minha mãe ligava para lá quando
não conseguia falar comigo no celular. Meus amigos iam lá. Era o nosso canto,
afinal.
Uma noite, alugamos Where the Wild Things Are.
“Mas
a gente não precisa ir até a locadora, eu baixo aqui rapidinho.”
“Gosto
de ver filme na tv.”
Estava escorada no meu peito, o filme acabou e ela continuou em
silêncio. Assim que terminei de perguntar o que havia achado,
percebi que ela estava chorando e na mesma hora ela levantou do sofá tapando os olhos com uma das mãos e foi para o quarto.
“O
que foi? É por causa do filme?”
Conforme
me aproximo, ela se encolhe e vira de costas e esconde o rosto de mim. Estendo
meu braço ao redor dela, puxando-a para sentar comigo na cama.
“Calma,
não precisa chorar, pequena. Por que tu tá chorando?”
Ela
retoma o ritmo da respiração e faz uma pausa comprida.
“É
porque eu sei que vai acabar.”
Eu
a abraço forte e digo que não. Está tudo bem, é bobagem dela pensar nisso.
“Seca
esses olhinhos.”
E
em questão de dez minutos estamos na cozinha procurando algo para comer. Agindo como se nada houvesse acontecido.
Eu
nunca soube como me comportar em um relacionamento. Como e quando estar
presente, como responder e corresponder ao carinho – como gostar, em suma. Mas
a Alice lidava bem com esses e todos os meus outros defeitos, e é provável que
eu estivesse feliz com ela justamente por isso. Porque eu acreditava que ela
era o meu tipo de mulher, alguém independente e que não se apegava a tolices
como eu ou um relacionamento.
E, ao contrário de mim, ela sabia bem o que queria e fazia o que tinha de fazer. Virava noites terminando os projetos da faculdade se
fosse preciso, trabalhava num escritório famoso, não deixava de ir às aulas por
bobagem. E ao mesmo tempo era minha companheira em quase tudo. Bebia comigo, não
tinha as frescuras de dividir xis ou pegar táxi, gostava dos filmes que eu
gostava e das músicas que eu ouvia. Viajávamos juntos, nos dois sentidos, e ela
fazia eu me sentir bem. Eu estava feliz, talvez como nunca antes, e se aquela noite não tivesse
acontecido possivelmente nada teria mudado.
Depois que a vi chorando por medo de me perder – porque ela ‘sabia que ia acabar’ –, nunca mais consegui vê-la do mesmo jeito que via antes. Alice passou a ser só uma menina. Uma guriazinha boba que ficava feliz por eu chegar sem avisar,
que abria um sorriso idiota quando me via e fazia uma cara triste quando eu ia
embora, que chorava pela possibilidade de eu não voltar. Cada mensagem que ela mandava era motivo para um suspiro de tédio e ah, que saco, e eu comecei a esnobá-la e quase não ia mais para o
apartamento. Sabia que ela estava sofrendo e não me incomodava.
Um
dia, quando entrei em casa, minha mãe contou que havia ligado para ela. Meu celular estava desligado, e ela pensou que eu pudesse estar lá. Disse
que a Alice estava estranha no telefone, perguntou se tinha acontecido alguma
coisa, eu respondi que não sabia, fazia um tempo que não nos víamos, e ela achou
prudente que eu fosse até lá, só para ver se a menina estava bem. Era tarde e,
ao contrário de alguns meses antes, a ideia de atravessar a cidade para ver a
Alice não me agradava. Fui na manhã seguinte. Bati, ninguém atendeu e, já
pensando que “bom, ela não está em casa”, girei a maçaneta e a porta abriu.
Alice estava dormindo no sofá, e em cima da mesa eu vi um potinho vazio.
“Ah,
mas era só o que me faltava”, cheguei a dizer em voz alta, com raiva, antes de
começar a sacudi-la e chamar o nome dela. Acordou meio desnorteada e levou uns
segundos para entender a situação e me reconhecer na penumbra.
“É
isso mesmo? Tu vai tentar te matar agora, é?”, perguntei em tom de deboche.
Ela
levantou e ficou me olhando séria. Tive vontade de rir.
“Ah,
Alice. Quem te viu e quem te vê, né.”
Eu
conseguia sentir os olhos verdes em cima de mim, devorando e consumindo. Ela
mexeu o rosto por um instante e quando voltamos a nos encarar eu enxerguei o
sorriso da primeira vez que nos vimos.
“Some
daqui.”
E minhas
roupas ficaram lá.
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