21 de abril de 2014

a cafeteira

Tenho tão pouco de vida própria - e isso é algo inconfundivelmente meu.
Quem disse isso sabia do pouco que há para dizer: falar de si é falar dos outros. Debruçar-se sobre esses que nos rodeiam e fazem de nós o que somos; em essência, observadores. De gestos, trejeitos, cacoetes, vícios de linguagem, o olhar sobre o alheio.
Os rostos das calçadas, dos ônibus, das esquinas e dos bares, inesquecíveis pela breve sucessão de momentos em que diante de mim dizem o que se espera ouvir. Somos estranhos, vamos viver.

O estranho na cafeteira.
Esse é o Miguel, nosso novo colega.
Prazer, Miguel.
Seja bem-vindo, Miguel.
Como vai, Miguel?
Quer um café?
Sim, por favor.

A gente descobre que as pessoas pensam parecido, mas não difícil, quase raramente, conseguem falar da mesma coisa. Daí o barato da solidão: é um curso que se faz pra aprender a rir sozinho.

As palavras dele como um espelho. Das frases que nasceram como réplica, um passado em fragmentos que agora reflete o presente por vir. Que têm os amores passados que parecem predizer os que ainda não aconteceram? Como se na pele ficasse certa energia, que se propaga, sempre em direção ao futuro, e mana dos poros quando na presença do outro, do futuro, do porvir.

Na cafeteira, era o silêncio. Corpos parados lado a lado, esperando e sentindo o aroma que aos poucos exalava do líquido marrom preenchendo as xícaras. Menos impaciência do que angústia, e quando ele se mexeu e nossas mãos se tocaram

Para mim os beijos de café são os melhores, com gosto de manhã. Ele levanta as sobrancelhas, eu cruzo os braços, ele sorri, eu falo do café que começa o dia, ele diz pra mim também. E quando eu passo pela porta e ele levanta os olhos da tela parece que o mundo inteiro vê: está ali. Outra vez.

No elevador, de costas para o espelho.

Imagine, disse Paul um dia, que o presente seja simplesmente um reflexo do futuro. Imagine que passamos nossas vidas inteiras olhando em um espelho com o futuro nas nossas costas, vendo-o somente no reflexo do que está aqui e agora. Alguns de nós vão começar a acreditar que podem ver melhor o amanhã virando-se para olhar diretamente para ele. Mas os que assim fizerem, sem mesmo perceber, perderão a chave para a perspectiva que antes possuíam. Porque a única coisa que eles nunca serão capazes de ver no futuro é a si mesmos. Voltando suas costas ao espelho, eles se tornarão o único elemento do futuro que seus olhos nunca poderão encontrar.

Na calçada, pegamos o mesmo caminho. Eu podia ouvir a trilha no piano, like crazy. Todas as tardes como a única tarde em que nossos passos se acompanham, em direção ao mesmo lugar. O lugar onde você escolhe estar.

- Não tem como.
- Não sei, talvez a gente nem perceba.
- E os outros?
- Eles não importam, importam?

Os outros não importam e pouco importam nossas alianças. Se ele fosse meu futuro, e eu olhasse diretamente para ele - sem você, que olhos vão refletir os meus?

Nada separa as recordações dos momentos banais. Posso te ver agora, de olhos abertos, como se estivesse na minha frente. Como na cafeteira, enquanto ainda éramos sem ser. O lugar onde escolhemos estar. Tente se lembrar de que não é possível esquecer.