8 de novembro de 2011

um rei e o zé


Um dia me foi contada uma pequena fábula sobre um rei e um zé. Dizia ela que quem deixa ir tem pra sempre. Reproduzo-a aqui, então, com o zelo de manter seu significado e a esperança de que permaneça ainda viva quando o tempo de seus contadores chegar ao fim.

Andavam a esmo dois homens. Distantes um do outro, o cenário que percorriam era semelhante, quiçá o mesmo. Mas como no ensinamento confucionista talvez fosse aquele reino um outro sendo também o mesmo, segundos antes ou depois. No dia ensolarado de uma estação qualquer, toda a grama reluzia e o azul no céu lhe fazia contraste. Eram os dois homens também as únicas pessoas naquelas paragens. Via-se ao longe o castelo do Rei; a moradia do Zé não era possível avistar.

Seguiam à sorte entre os nadas que podiam enxergar, travestidos de tudo. Vetores, o Rei e o Zé eram caminhos de mesma direção e sentidos opostos. Enquanto um ia, outro voltava. Na ida e na vinda, um sistema de rumos perdidos: para o observador estático sob a árvore, no exato momento em que se cruzassem, não passaria a voltar o que antes ia e a ir o que antes voltava? Uns chamam de física, outros de ordem natural, sem saber que falam da mesma coisa. Mas não-vetores o Rei e o Zé viram seus caminhos chegarem um ao outro e tomarem um mesmo sentido, novo, agora perpendicular aos anteriores: as mesmas coisas vistas por outro ângulo, as mesmas coisas vistas por outro olhar.

"Não vou te falar das coisas que sei, dos livros que li, dos conhecimentos que carrego", as palavras saíram dos lábios nobres. E o homem sóbrio postado ao seu lado encarou-o, esperando por algo entre o absurdo e a sabedoria. Não teriam em sua composição, afinal, um pouco um do outro, absurdo e sabedoria, um Rei e o Zé? De reinados impossíveis descendo às cavernas dos velhos sábios, escondidos do arrabalde. Do chão batido da penúria aos floreios lá do alto, onde o saber se esconde sob uma coroa.

O Rei trazia consigo as marcas de um soberano. Da roupagem às feições, as cicatrizes nem tão ásperas e o ar elegante de quem constrói a própria trajetória com um propósito, ainda que recôndito. As barbas que entregavam a experiência na bandeja e marcavam seus anos. E, sujeito simples, o Zé pensava que talvez não fosse capaz de compreender as posturas do Rei, mas ali estava, em nome da vontade obscura de uma nova frente. As barbas que marcavam seus anos e deixavam à vista as ações da vida.

"Sou rei porque penso diferente", mais uma vez as palavras nobres, como se estivesse o homem a buscar justificativas para a própria condição. E à medida que iam andando o Zé do seu lado mais e mais procurava descerrar os horizontes, em prol da nova filosofia que se lhe apresentava. Arriscou a pergunta e viu o Rei se calar. O tartamudeio e a mudeza, que não se usa mais dizer. Então ele não sabia que os reis falam e calam quando têm vontade?

"A pressa não nos deixa ver o que é evidente. Eu achei do meu lado o que me fez assim", chegaram, finalmente, as palavras do soberano.

E do pequeno espaço que ocupava no mundo o Zé pode visualizar o ensinamento, feito presente por meio de apenas duas sentenças. A nova perspectiva que buscava desenhava-se nos aforismos reais – e o contraste de conhecimentos aos poucos tomava forma, um quê de soberania, um quê de popular.

Frente à decisão do Zé, desejoso de encontrar a filosofia nova para a vida que era a mesma, o Rei falou-lhe de saberes adquiridos não com a experiência somente, mas com a experiência da realeza. Pequenos apontamentos que iam e vinham, contando o lado podre da vida e ao mesmo tempo querendo ensinar a viver. Será? E então vinha o silêncio dizer que nem tudo pode ser dito. Que, em verdade, talvez pouca coisa o possa.

“Quem deixa ir tem pra sempre”, o Rei disse, num repente.

O Zé saboreou as palavras com os ouvidos, sentiu o som que entrava ativando mecanismos outrora em desuso. Quem deixa ir tem pra sempre. As palavras lhe soaram certeiras embora não conseguissem tomar o corpo de uma certeza. O Zé pôs-se a pensar nas coisas que ouvira e viu seus desejos e crenças, em lados opostos, brigarem entre si. O Zé vislumbrou o castelo do Rei ao longe, e o próprio Rei que caminhava a seu par, e quase pôde tocar suas diferenças. O Zé ouviu aberto e atento as palavras daquele soberano e então pôde tirar a conclusão de própria autoria.

Os pensamentos são regidos por engrenagens estranhas, é sabido. Umas conexões com um quê de meu que se misturam com todo o resto espalhado pelo mundo e ora estão quietas mas ora inventam de sair para respirar novos ares.

“Não leve a mal. Eu queria poder ter outra filosofia, mas não nasci pra conversar com rei”, a sentença fugiu do universo de um e chegou ao do outro.

O Rei calado, como sorvesse uma taça de vinho em solidão. O Zé – também calado. Há certos momentos em que o silêncio vem para ser a matéria-prima da vida. E ali fica para explicar aos que forem capazes de alcançá-lo que as realidades mais distintas podem, então, encontrar-se e compartilhar filosofias. Em suas entrelinhas taciturnas ele fala e deixa ouvir. O que escapa, porém, aos domínios do silêncio são os efeitos desses encontros, imprevisíveis, bem-vindos ou não, benéficos ou não.

O Zé percebeu-o como um ponto derradeiro. A nova frente que encontrara nas palavras do Rei, descobriu-a imperfeita. E descobriu a si próprio também imperfeito. Duas realidades confrontadas seguiram as mesmas. Duas realidades (o)postas lado a lado: um Rei e o Zé.
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Baseado na canção de Alexandre Kumpinski e Ian Ramil.
Roubei ainda parte de uma frase veiculada por aqui, quando eu não sei precisar.