1 de setembro de 2013

a primeira frase

A primeira frase não existe. Antes da primeira maiúscula do primeiro parágrafo não há nada e depois dela outro mundo ganha forma. É o ponto de partida de algo muito maior, e por isso não é nada. A sentença bate no pensamento que cospe em palavras: tudo vai virar uma coisa só.

Tudo vai virar uma coisa só.

Conheço de cor o trajeto do ônibus: as curvas, umas mais acentuadas, e é preciso firmar o corpo para não encostar na pessoa da poltrona ao lado, as sinalizações que obrigam o veículo desajeitado a parar, o intervalo aproximado entre elas, as conversões, as subidas e descidas da estrada. São duas horas, às vezes duas horas e meia, de um caminho repetido à exaustão que já não traz qualquer surpresa. As paisagens, também sei de cor. De coração, na origem do termo, que o inglês sabiamente não trocou. Sei onde estou sem precisar abrir as cortinas, sem precisar abrir os olhos.

A mesma viagem. No começo tinha o gosto das novidades. Entrar no ônibus significava estar à mercê de inumeráveis possibilidades desconhecidas - qualquer um poderia sentar na poltrona ao lado. E de alma aberta ao acaso acabei conhecendo tantas pessoas, tão diferentes entre si quando eu delas. Um homem de sobretudo que falou sobre como é incrível que sejamos sete bilhões e nenhuma impressão digital seja igual a outra. Um tatuador com os braços fechados, alargador na orelha, piercing no supercílio e uma filhinha de cinco anos com quem troquei de lugar para que pudessem sentar lado a lado. Uma dona de loja de uma das principais avenidas da cidade. Um soldado do Amazonas interessado em casamento. Um rapaz do interior que sempre pegava o ônibus às segundas de manhã cedo com a mesma jaqueta de couro preto.

Eu costumava ocupar meu assento na expectativa de quem conheceria, à espera de uma nova história que por algumas horas penetraria a minha. Não demorou muito, porém, para toda a falsa mágica se desfazer. Com o tempo, o corpo envelhece, as cores desbotam, os sapatos perdem o verniz. Eu era, então, uma ranzinza em corpo jovem, que se aboletava na poltrona, puxava as cortinas, virava as costas para o resto do ônibus e do mundo, fechava os olhos e dormia, tentava ou fingia.

No último dia do último mês, cheguei às sete da manhã. Eram sete da manhã, mas a escuridão era tamanha que poderiam ser sete da noite. No horizonte, um barco cruzou o rio até desaparecer de vista. Quando começou a clarear, o céu mesclava o azul com nuvens cinzas, como se listrado. Não havia nada ali que me prendesse, absolutamente nada que me fizesse ficar e no entanto nada que me fizesse ir, nada que insinuasse em mim os movimentos decisivos de ir embora. Fui e voltei e não poderia ser mais infeliz por voltar. Na cidade que é a personificação de prisão, atraso e infelicidade. Na cidade onde tudo o que você vê são os outros lugares em que poderia estar.

Parei de tentar há meses. Outra vez no ônibus, fechei as cortinas e me escorei, da maneira mais confortável que o estofado da poltrona permitiu. Sem prestar atenção nas pessoas que aos poucos entravam e se acomodavam, tirei um chiclete da mochila, pensando em refrões. Dos refrões da vida, os momentos de explosão de felicidade a que todos se entregam de prontidão. Os refrões, que dificilmente são a primeira frase ou a primeira estrofe. Estão no meio, onde a vida deveria acontecer.

E eu pensava nos refrões quando um homem ocupou a outra poltrona. Mais velho, mas jovem. Trazia a barba levemente espessa, uma mochila preta e um livro gasto. Não consigo ver o título nem sou capaz olhar diretamente para ele, que depois de sentar procura a página em que havia parado. O ônibus sacudia pela estrada, e quase uma hora já havia ficado para trás quando percebi o movimento dos olhos, que àquela altura já não estavam nas páginas do livro e fixavam a minha direção.

Se eu virar, e olhar nos olhos dele, então o que vai ser?

Sempre haverá refrões. Em todas as buscas diárias por nós mesmos. E se nos buscamos é porque ainda não nos temos e estamos atrás do que acreditamos que devemos ser. Milhares de anos vividos em nostalgia e esperança do que não será, porque nada pode ser. Tudo apenas é. Foi a primeira frase, foram os refrões e foi tudo o que no fim vai virar uma coisa só.