16 de maio de 2016

os nomes

Existe essa teoria de que não nos apaixonamos por pessoas, mas por nomes. Os nomes, que carregam histórias. A imensidão de experiências e escolhas escondidas por um punhado de letras. Quando você os vê ao acaso, estampados numa placa de rua, no texto de uma notícia, num cartão de visita - despertando sentidos que não estão ali, mas em outro lugar.

Aos nomes, passamos a atribuir significados, como se ao proferi-los pudéssemos concretizá-los. As histórias vão ao encontro do passado do mesmo modo que começam, na expectativa do futuro. Sorrateiras. Você não percebe, e elas já existem. Vira os olhos por um instante, e não estão mais ali. Pensa, e nunca existiram.

No começo não tinha nome. Era só ele.

Um cara qualquer que me chamou a atenção pelos cabelos. Depois pelas mãos. Depois pelo café. Depois pela música. Depois pelo que escrevia. E em algum momento qualquer besteira era suficiente: bastava que viesse dele.

Com o nome, vem a intimidade. Brincadeiras com apelidos e sobrenomes que nos permitimos fazer - porque podemos, porque nos conhecemos, porque já temos nome um para um outro. E, com o nome, nossas histórias. Passados que condenam porque feitos de escolhas questionáveis, que envergonham porque vazios, que fazem rir porque passados.

Nossas risadas formaram um par. Era com ele que eu sentia vontade de dividir as histórias do dia e, eventualmente, a própria vida. E porque tínhamos nomes ganhamos sutilezas.

Gosto de ver teus pulsos se movendo.

Macios, como se todo movimento fosse feito para eles. Na caneta ou no violão, nossas mãos passaram a ser nossas. Começamos a dividir novos momentos e novas palavras. Até que ganhamos um novo nome. E então eu soube, porque no fundo sempre sabemos: basta ganhar nome para começar a ter fim. Nascemos, somos batizados e estamos destinados a morrer.

Nós sempre seremos nossos nomes, mas o que serão nossos nomes quando forem apenas nomes? Quando, gravados em uma lápide, não disserem nada a quem ler?

Ele voltou a ser um nome. O conjunto de letras que me paralisa a cada vez que o encontro ao acaso, estampado numa placa de rua, no texto de uma notícia, num cartão de visita - despertando sentidos que não estão ali, mas em outro lugar. Em eterno retorno, a maldição da palavra que se repete e volta para assombrar.

Quando a fantasia acaba, é um nome que reencontra o passado. Nomeamos, e tudo começa a morrer.

16 de abril de 2016

flores murchas

As flores murcharam. Sobre a poeira acumulada dos dias, descansam livros e anotações perdidas. Há correntes de ar que atravessam a sala e sussurram linhas de um poema que não sou capaz de ler. Do rádio, soa a única sequência de músicas possível para mais um mês de maio. Nossos corpos no litoral desabitado. Nossos corpos de outono. Trocando energias que jamais voltariam a pulsar.

Na última vez, juramos sinceridade. Pouco importa se a mentira é para si ou para o outro: está tudo bem. Enganamo-nos quando dizemos a verdade, mentimos sendo sinceros, acreditamos porque é a única possibilidade. Entre mentiras honestas e falsas verdades, jamais vivemos o melhor um do outro.

Acredita que estivemos lá? Que deitamos na areia e dissemos aquelas palavras e fizemos o que fizemos? Passam anos como décadas. Mas são as mesmas canções, em vão repetidas e repetidas de novo, que vêm para lembrar que sempre fomos uma mentira. O que acontece com as palavras, que tantas vezes insistem em soar melhor em outra língua? Você é capaz de me traduzir?

Dias demais vividos à base de nada. Horas que jamais deixaram de ser uma promessa. Nada de bom é capaz de sobreviver aqui, nada de bom poderia nascer de duas pessoas tão detestáveis. Nenhum de nós vale nada, e seria bom que o mundo soubesse. Já não é perspectiva de amor o que nos falta, mas capacidade de amar. É possível apenas existir? Passar os dias sem aspirações, esperando pelo fim. O que eu poderei dizer no momento derradeiro é o mesmo que ainda posso dizer agora. A vida é carregada de ironias, e algumas delas doem como o quê.

Há uma brisa lá fora e algo nela que acompanha meus passos. A Ipiranga passa como um borrão, e o vento sopra pra longe os vestígios de passado. Tanta energia despendida em vão. No fim, quando as flores murcham vem o alívio - chega de lutar contra o impossível. Batalhar por um momento a mais numa vida que não vai durar.

Sim, sou eu do outro lado da rua. E, pela primeira vez, não tenho nada a dizer.

12 de janeiro de 2016

em breve

Demorou para eu perceber que breve significava muitas coisas, menos um espaço curto de tempo.

Esperei por aquele dia como quem espera por uma festa qualquer, e até poucos minutos antes sequer tinha decidido o que vestir. Não tá frio, não tá quente, posso usar uma meia calça e levo um casaco. Lá dentro vai estar cheio, não vou passar frio. Esse vestido, pode ser. É na hora de sair que vem a ansiedade. Faz tempo. O que vamos dizer, depois de tantos anos? Nunca mais vimos a cara um do outro. E se não houver o que dizer? Vamos nos encarar? Desviar o olhar?

Chovia, mas os cabelos nunca importaram. Na medida em que o táxi avançava, olhava para as luzes dos postes - passando, uma após a outra, como todos os dias. Fugazes demais para serem percebidas em detalhe, mas ao mesmo tempo únicas, cada uma nos segundos e no espaço da cidade que lhe compete. Agora não tem volta, e eu não me perdoaria se não fosse adiante. Sempre em frente, ainda que retrocedendo de quando em quando.

Pedi uma cerveja e sentei no balcão. A solidão nos balcões tende a ser mais aceitável e mais fácil de aturar que a de uma mesa. Não recorri ao celular. Em vez disso, olhei para as paredes, onde quadros com imagens e frases misturavam-se a luminárias aqui e ali. As mesas foram ocupadas, e grupos de pessoas muito parecidas umas com as outras somavam à musica o som dos copos, das conversas e das risadas altas demais. Não era possível distinguir nenhuma frase inteira, no máximo palavras - show, amanhã, domingo, eles, essa música, mais uma.

Ele chegou na segunda cerveja. Começou a circular entre as mesas, cumprimentando conhecidos. Não sei se não me viu ou só fingiu não ver. Terminei o último copo e levantei para ir - ao banheiro? Qualquer lugar longe dali. Na rua, a chuva havia diminuído. Mais uma vez, olho para a luz dos postes. Agora em detalhe - como os dias enquanto ainda não passaram por completo. Penso em simplesmente sair andando. Virar a esquina e nunca mais voltar pra essa cidade. Como se fosse possível evitar um encontro inevitável.

Penso em quão ridículo e inexplicável era tudo aquilo. O simples fato de eu estar ali. Quando me viro, ele está ao meu lado. Dessa vez, me vê. Ou não é possível fingir que não. O reconhecimento vem aos pedaços. Demoro a perceber que a voz é a mesma. Assimilo em partes, uma a uma, e não por inteiro. O rosto, em seguida os cabelos e por fim os gestos. Pergunto se está nervoso, falamos brevemente. Não para de se mexer e de olhar para os lados. Me agradece por ter ido. Toda aquela linguagem corporal. Traços que o passado conhecia tão bem e que o presente demorava a entender como algo conhecido.

A mistura de luzes e sons foi única. Memorável. A suavidade das melodias em contraste com a intensidade com que ele tocou e entoou cada uma. Senti lágrimas breves nos olhos. A felicidade de ver feliz. Como algumas sensações, que bastam por si próprias, músicas são difíceis ou impossíveis de se descrever. Porque nunca vêm sós: há sempre algo mais. Uma lembrança, um sentimento, uma maneira de chegar aos ouvidos e ser absorvida pelo corpo que é singular e escapa às palavras.

Ao final, me afastei, deixando que o rodeassem todos os que estavam ali e queriam dar um abraço, dividir congratulações e palavras de carinho. Voltei à rua e fiquei - buscando um significado inexistente, tentando alcançar algo há muito fora de alcance. Despediu-se de mim com aquele nos falamos em breve. Nenhum amor deveria durar até acabar, e talvez os melhores sejam exatamente os que acabam. No mais, é só o silêncio. Em cada música, todos os dias.