- Tu por acaso não tem um isqueiro aí?
- Tenho - respondi, e procurei no bolso lateral da mochila e alcancei para ele meu isqueiro rosinha.
Não entendo as pessoas que carregam caixas de fósforo.
Depois que eu me mudei, rodoviárias passaram a ser um cenário constante - chegando ou indo, esperando, circulando, vendo malas e pessoas em todas as direções e em todos os lugares. Imagens de quando eu era criança e vinha a Porto Alegre com minha mãe surgem na minha cabeça: a rodoviária parecia para mim um labirinto imenso de que só minha mãe conhecia as saídas. Hoje passo tanto tempo lá, na rodoviária, às vezes mais do que gostaria, que quase tudo já perdeu a graça. Ou tudo. Mas de uma certa maneira ela ainda me agrada. É feia, desconfortável, atrasada e estranha, mas me agrada. Seja pelo hábito, seja por qualquer presença misteriosa na atmosfera, seja ainda pela melancolia de ficar sozinha, estar lá é confortante.
Contrariando as expectativas, recentemente descobri, em um dos meus passeios, uma ala nova. Por vezes penso que talvez ela exista desde sempre, e eu que nunca havia percebido, mas prefiro acreditar que não fui tão desatenta e durante tantos anos. É um corredor comprido no segundo andar, com bancos distantes uns dos outros, de frente para o Guaíba. Está sempre vazio, e é gostoso sentar lá para ler com o sol de fim de tarde batendo nas pernas.
- Vai pra onde? Não é pra Lajeado, é?
- Não, não, vou pra Canela.
- Passear?
- Não, minha família é de lá.
- Bah, nunca tinha conhecido ninguém que fosse de lá mesmo. É legal?
- Ah, não sei. Foi bom pra crescer. E é confortável de morar também. O problema é que as possibilidades se esgotam rápido.
- Que é o que acontece em toda cidade pequena, né.
- É, bem por aí.
- Mas como é lá? Todo mundo sabe da vida de todo mundo?
- Não... Quer dizer, depende. Não são cinco mil habitantes, então não. Mas se tu pegar círculos de famílias, e amigos, e conhecidos, e os apêndices relacionados, aí sim. Não sei se tudo, mas dá pra saber um monte de um monte de gente. Ouvir, no caso. Saber é outra história.
- E o que que sabem de ti?
- Ah, não sei. Devem saber que eu me mudei - eu rio.
Ele sorri.
- No meu caso, acho que nem sabiam que eu existia antes, pra poderem notar que eu saí.
- Eu queria conhecer Lajeado. Não sei por que, mas tenho curiosidade.
- É meio melancólico demais, sabe.
- Tu estuda aqui também? Que que tu faz?
- Engenharia civil, grande futuro.
Tinha uns olhos verdes faiscantes, intensos, e eu poderia só ficar olhando, nada mais. Cabelo castanho, curto, do tipo que teria cachos se fosse maior. Ele era bonito, em suma. Mas não sorria muito; quando o fazia, passava a impressão de que não queria, como se sorrir fosse errado. De costas, fumando apoiado na grade, era uma dessas pessoas que renderiam um personagem. Perguntou o que eu estava lendo, e eu mostrei a capa do meu exemplar de Exit Ghost. Sorriu de novo.
Movimentou a cabeça em convite para eu ir com ele, e seguimos andando pela plataforma. Fomos até o fundo, como que explorando o que ainda nos era desconhecido, e voltamos. No fim, o lugar mostrou-se tão comum quanto qualquer outra parte da rodoviária - mas ainda assim diferente.
- Não é um lugar que vale a pena?
- Onde?
- Aqui.
- Aqui Porto Alegre? Ou aqui exatamente aqui?
- Aqui exatamente aqui.
Olhei outra vez nos olhos verdes e sorri.
Ele tirou o celular do bolso para ver as horas e em seguida sentou ao meu lado abrindo a mochila. Tirou de dentro um caderno, rasgou um pedaço de uma folha.
- Tu por acaso não tem uma caneta aí também?
Entreguei a caneta que por acaso eu tinha, ele escreveu umas linhas, dobrou o pedaço de papel e me entregou ambos.
- Meu ônibus deve estar quase saindo.
Jogou a mochila no ombro direito e foi embora. Antes de chegar à curva, olhou para trás e sorriu uma última vez. O conjunto de olhos e sorriso mais intrigante que eu já vi.
Meu ônibus saiu meia hora depois, e sentada na janela, sempre a 35, tirei do bolso o pedaço de papel dobrado.
"Os rostos que a gente vê aqui nunca mais voltam."
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