23 de janeiro de 2013

o personagem

Qualquer pessoa pode julgar que sua vida e suas histórias merecem ser contadas e então contá-las, ainda que só para si. E eis uma mentira. Se outros vão ler, é o outro lado da mesma moeda. Há um mistério por trás das intenções que movem as palavras, e os escritores a escrevê-las, mas a vaidade de ser lido nunca foi contestada. Por que inventar uma história quando a vida e a realidade são mais fantasiosas? Por que viver a realidade quando o universo da ficção só depende de ser devidamente explorado para se tornar real?

***

Entrou no ônibus. Sua vez finalmente chegara, entregou a passagem ao funcionário e agora estava sentado em uma janela do fundo. Você não sabe exatamente aonde vai, mas não importa, porque estaremos juntos. Se fizesse um pouco de força, ainda poderia ouvir as palavras. Longes, e agora não queriam dizer mais nada, mas o problema com certas palavras é que uma vez ditas.
E você nunca mais se recupera.
O quê?
O homem sentado ao lado olhava com expressão confusa.
Nada, só pensei alto.
Coisa estranha pra se pensar em voz alta.
É, pode crer.

A paisagem corria pela janela. Mudava a cada metro e no entanto era sempre a mesma.

Qual o sentido de optar pela saudade? Um sentimento que se nutre por algo que se deseja reviver, por alguém que se deseja rever. E existindo essa possibilidade – por que optar pela saudade? Era mesmo possível sentir saudade de uma pessoa e não querer vê-la de novo?

***

A Verônica era eclética. Do gosto musical ao que ela fazia para se sustentar, quase tudo seguia uma desuniformidade sem precedentes. Era estudante de administração, mas trabalhou com fotografia, design gráfico e produção e edição de vídeo até optar por ser modelo, mudar-se para o Japão e voltar ao Brasil meses depois decidida a ser atriz. Foi aí que se conheceram, em uma festa da produtora para a qual ela trabalhara e que ensaiava fazer um filme para o romance que ele havia escrito. Um livro de guri, como dizem.
Bah, tu! Eu adorei teus livros!
Não era a primeira e nem seria a última a dizer isso. Das meninas deslumbradas. Jovens. Estudantes de jornalismo que o procuravam para entrevistas, adolescentes que queriam um autógrafo e uma foto, encantadas com o homem mais velho com semblante e cabeça de guri. E ele tinha uma natureza gentil e modesta, tratava todas com respeito, até interesse, o meio sorriso contornado pela barba enquanto os olhos buscavam os olhos delas. Tão fácil se apaixonar.
E Verônica surgiu na festa como mais uma dessas meninas. Já tinha 23 anos, só três a menos do que ele, mas estava ali, boba e deslumbrada, com um ar infantil que beirava o ridículo e o fazia se sentir cansado antes mesmo de precisar abrir a boca. Na época, ela ainda mantinha o cabelo liso, escorrido e meio sem corte típico das modelos, mas era inevitavelmente linda: o rosto entre oval e triangular, a pele branca, perolada, o sorriso, as curvas que ela simultaneamente escondia e mostrava sob o vestido preto reto.
Que bom, obrigado. O mais importante são os leitores.
Ela sorriu de volta, e nesse momento já não era infantil: olhava nos olhos dele sem desviar, sabia exatamente o que queria.

Verônica gostava de dizer que aprendera a ler cedo, aos três ou quatro anos, e que tivera a primeira crise existencial já aos dez, idade com que a maioria de nós, reles mortais, sequer sabe o significado dessas duas palavras. Sempre fui um pouco precoce, dizia. Tinha ânsia de fazer tudo e de fazer tudo logo; quando decidiu ser atriz, carreira que viria a seguir definitivamente, e começou a trabalhar na área, ainda não completara 25 anos. E ele nunca sentiu atração por mulheres assim, aqui e agora, com pressa de sair e de chegar, o desejo de viver tudo o quanto antes. Havia coisas, e não eram poucas, que exigiam certo tempo. Em alguns casos até lentidão. Mas mesmo nisso Verônica era diferente. Ele enxergava nela o doce da sede juvenil: a vontade, a ausência de medo, tentar o novo e o diferente, não se preocupar em quebrar a cara no caso de dar errado. Ela era corajosa, intensa em tudo o que fazia. 
Em meio ao vulcão de vontades e sentimentos que era a personalidade daquela mulher, ele viria a descobrir mais tarde, havia algo de dúbio. Uma lacuna sob o ímpeto de fazer tudo a deixava sem a base sólida de que precisaria para se sustentar. Entre todos os traços marcantes e bem definidos que ela ostentava, um borrão de incerteza em contraste, paradoxalmente, com as impressionantes segurança e autoconfiança que ela estampava no rosto. O espaço onde se encontravam as hesitações que ela escondia mas de que jamais se veria livre. O que denunciava sua humanidade e, como ser humano, sua falibilidade de caráter e todos os receios e ambiguidades que temia.

Antes mesmo de começarem a namorar, não muito tempo depois da festa da produtora, ele já estava completamente apaixonado. Sentia prazer em ouvi-la, o tom animado da voz nem grave nem aguda demais discorrendo sobre os assuntos que surgiam. Observava com cuidado os traços do corpo dela, o contorno do rosto, a delicadeza das mãos brancas de dedos finos. Os seios eram quase perfeitamente simétricos, e quando ela usava uma blusa mais aberta, deixando à mostra as omoplatas  poderia olhar para ela o dia todo. Entre os gostos desconexos, os lugares-comuns e as excentricidades, tudo na Verônica parecia completar sua existência na medida exata. Como em todos os amores, a vida ganhou um sentido a mais. A felicidade de fazê-la feliz, o gosto ímpar de amar e ser amado, busca humana, eterna e quantas vezes tola. 
Vê-la acordar, o hálito matinal, olhos ainda pesados, rosto e cabelos amassados pelo travesseiro, e ainda assim continuava linda. O jeito como gesticulava ao discutir, argumentando em defesa de seus pontos de vista, quase inflexível. Ela se irritava, enérgica, sentia gana de sacudi-lo, enquanto ele falava pausadamente, sem se alterar, sabendo que a irritaria ainda mais.
Deixa de ser boba.
Ela permanecia imóvel.
Deixa de ser boba, eu disse.
E a puxava pela blusa ou pelos bolsos da calça até que ela finalmente cedesse.

***

O chacoalhar do ônibus costumava ter o efeito de um sonífero, e ele era capaz de dormir poucos minutos depois de embarcar, mas embora estivesse cansado e com sono não queria dormir agora. Apoiou o rosto na mão direita e se pôs a observar pela janela os terrenos que iam passando depressa, as casinhas de beira de estrada que de fora pareciam extremamente aconchegantes. Às vezes não passavam tão depressa quanto poderiam.
Tu não tá no teu melhor dia, né?
Ele olhou para o homem que agora tinha uma expressão mais curiosa e complacente do que confusa.
É.
E não é de falar também.
É.
O homem não diz nada.
Não, é só que tô aqui pensando, lembrando umas coisas que eu tinha que resolver.
Ah, sei.
Um pouco perplexo, ele vira o rosto para encará-lo.
É mulher, né?
Ele não responde. Um dos maiores clichês dos relacionamentos modernos. Origem de todas as dores e de toda a sensação de que elas nunca acabarão.
Ela entrou completamente na minha vida.

***

Desde o início ela se envolveu com o filme. Participava das reuniões, discutia com o roteirista e o diretor, dava sugestões, fazia críticas. Quando iniciaram os testes com os atores, ela estava lá também, o tempo todo. Não foi difícil encontrar um intérprete para o Julio; não eram incomuns atores dispostos a interpretar um jovem adulto frustrado, enfurnado num quarto e sala no centro de Porto Alegre. E Marcelo, eleito para o papel, era a encarnação do personagem projetada diante deles. O mesmo tom de voz melancólico e arrastado, a expressão de quem não tem qualquer perspectiva que considere decente e/ou viável, do cara que se sente estagnado, preso no próprio corpo. A Roberta, em compensação, era complicada. Tinha traços mais específicos, incluindo o caminhar e a maneira de se postar. Não era qualquer garota. Testes foram e vieram, um ou outro nome possível, mas ninguém estava completamente satisfeito.
Não é que sejam de todo más, mas nenhuma entrou de verdade. A gente precisava de uma guria exatamente que nem tu... Fernando, o diretor, comentou com Verônica enquanto remexia em um calhamaço, aparentemente sem se dar conta da ideia que lançara.
Então eu faço o teste. Porque eu quero ser atriz.

Era a cara dela. Se jogar numa experiência nova, algo que nunca havia tentado antes, que talvez sequer houvesse pensado em tentar – que talvez sequer fosse capaz de fazer , mas que na hora pareceu uma boa ideia. Não havia um “mas pode não dar certo, e se der errado...”. Ela não tinha medo. Fizeram o teste no dia seguinte, e era ela. Ele não poderia ter sonhado com a existência da Verônica quando criou sua personagem, mas as duas eram a mesma pessoa, e a ficção ganhou vida a poucos passos de distância. Como toda a história. Eles estavam fazendo um filme, e ver a mulher que ele amava no papel da mulher que havia idealizado era ver a mulher que havia idealizado se tornando real. Diante dos olhos de todos, diante dos olhos dele.

***

Eu escrevi há quase dez anos já. Foi meu primeiro romance. Basicamente é a história de um escritor que não deu certo e sobrevivia de traduções aqui e ali. Morava num apartamentinho de merda no centro e um dia conhece essa modelo e se envolve com ela. Os dois trancados lá. No verão de Porto Alegre. Até o dia em que acaba. Acontece com escritores novos. Põem mais da própria vida num livro do que deveriam e depois se arrependem. E a Roberta era a mulher que eu imaginava e queria pra mim naquele tempo, uma personificação.
E tu encontrou ela na tua namorada.
É, de certa forma.
De certa forma?
Até o dia em que acabou.

O ônibus contornava uma lagoa imensa. A água reluzia no dia ensolarado sem nuvens. Sente vontade de nadar. O corpo molhado, braçada após braçada, as ondas estourando na praia, ir e voltar para esquecer. O infortúnio da memória sã. Você jamais esquece. Imagens e sons esparsos que estarão presentes enquanto durar a consciência. As vozes dos dois discutindo depois de um dia de filmagem já na reta final, ela rindo com Marcelo no set, os dois juntos na cama em uma das cenas de sexo.

***

As ideias que tinham para essa ou aquela cena, as brincadeiras nos bastidores, os erros de gravação, as noites viradas, todos os dias de trabalho – quase injusto chamar de trabalho. Ele via Verônica na pele de Roberta na frente das câmeras e depois a via em seu próprio papel, o corpo ao lado do dele, usando não mais que os brincos que às vezes esquecia de tirar. Segurava o cigarro de um jeito macio, fumava olhando para o teto, percorrendo com os olhos o caminho da fumaça, desenhando círculos imaginários. Era impossível adivinhar o que ela pensava nesses momentos. E nesses tanto quanto nos outros.
Numa noite, ela falou do Marcelo. Perguntou se ele achava que o outro estava representando bem o papel. 
Sim. Acho que ele tá muito bem, na verdade. Mas por quê? Tu acha que não?
Não, não. Acho ele ótimo. Só tava pensando se tu concordava.

Ele conversava muito com Marcelo. Não demorou para se tornarem amigos. Ganharam liberdade e intimidade um com o outro e mesmo fora do set eventualmente gastavam tempo falando sobre o protagonista. Um devia ser o outro. O Julio é meio perdido. Ele tem que mostrar isso na cara, o desânimo, a falta de perspectiva. Ele não acredita. A barba malfeita, ele se largou. E com a Roberta é assim, é forte, carnal, mas tem uma melancolia. Existe uma dor ali. 
E o Marcelo incorporou conversas e instruções. Nos intervalos, observava o jovem escritor de longe, o jeito como acariciava e tratava Verônica, assimilando trejeitos, cacoetes e expressões. Ele sabia onde olhar para enxergar seu personagem. Sabia quem estava interpretando e o que fazer para ser igual e para ser melhor. Foi além, apropriou-se do que havia de melhor em criatura e criador. E assumiu com Verônica uma postura irresistível: elegante, viril, cavalheiro. Entoava a voz ao falar e deixou aflorar o senso de humor que já lhe era próprio e agradava a todos. Passou a estampar um sorriso preciso e a olhar com suavidade e interesse ao mesmo tempo. Os três saíam juntos, iam beber na Cidade Baixa, riam muito. Marcelo puxava a cadeira para Verônica sentar e, no aniversário dela, mandou um buquê de flores acompanhado de um cartão cujo conteúdo ela não quis dividir.
É bobagem, nada demais.
Os dias se seguiam uns aos outros, folhas arrancadas do calendário. A medida com que o filme se encaminhava para o fim era a mesma que os unia e separava. A melancolia dele, o sorriso galante do outro, a curiosidade nos olhos dela.

***

Bah, sacanagem, hein.
Ele leva o olhar em direção à janela e permanece em silêncio.
E ela nem pensou duas vezes?
Mantém a expressão resignada, sem sequer mover os olhos.
E ela lá tinha o que pensar?

O ônibus não estava lotado, mas sem dúvida havia mais lugares ocupados que vazios. Depois de quase três horas de viagem, a maioria dos passageiros dormia. Alguns ouviam música ou liam, outros apenas  se mantinham sentados, olhando para a poltrona da frente. Entre origem e destino, existiam uma existência inerte. Se alguém perguntasse, talvez nenhum desses passageiros diria que ele estava realmente ali. Talvez nem o homem sentado ao seu lado. Talvez ele mesmo duvidasse, não tivesse consciência de estar de fato presente. Não a consciência do próprio corpo, das roupas que vestia, do que passava do lado de fora ou do homem sentado na poltrona à sua direita. Era a dor que ainda era capaz de sentir. Sabia que estava ali, sabia que estava vivo. Talvez uma vida. Daquelas em que a felicidade não fosse o jogo na prateleira mais alta. Adiando os dias que seriam dele por absolutamente nada que valha o que eles valeriam. E sentir ao pé do ouvido o passar das coisas que já ouvira. Saudade, é a palavra que ele não queria dizer.
Olha uma última vez para o homem, agora visivelmente compadecido, visivelmente sem saber o que dizer, visivelmente desejando não estar ali e não ter puxado conversa. 

Quando quem me interpreta é uma versão melhor de mim.

12 de janeiro de 2013

sem título

Aquilo sobre escorregar. Por que andar desviando das cascas de banana quando tu não sabe aonde tá indo? Nesse caso, melhor escorregar. E tu não lembrava. Achei que tu fosse lembrar. Sempre me intriga isso, por que um lembra e o outro não, se os dois viveram a mesma coisa. Por que selecionamos momentos e lembranças diferentes. E certamente deve existir uma explicação científica, neurológica, psicológica, daquelas que a gente não entende, mas por quê? Me diz tu, por quê? Por que desviar, por que escorregar, por que tu não lembrava. Não deve lembrar de todo o resto também, anos e anos de bobagem. Mas isso não vem ao caso, não importa mais. Ainda acho engraçado – de uma ironia tão bonita quanto irônica – que ele fosse justo teu amigo. Mais, que logo tu tivesse tentado nos apresentar. Vocês iam se dar tri bem, não quer que eu te apresente? Risadinha constrangida, não, não vou saber o que dizer. Imagina, um completo desconhecido. E logo eu, que mal consigo falar at all. Mas a vida tratou de nos juntar por conta própria assim mesmo e, é, a gente se deu tri bem. Muito mais do que isso. Como tu disse, como previsto. E mesmo assim a gente insiste em dizer que a vida é imprevisível. Não é. É só olhar. A maioria dos dias e de tudo o que acontece em todos esses dias acontece exatamente como a gente imaginou na noite anterior, antes de dormir. Como a gente previa. Vou levantar, tomar café, fumar um cigarro, ir para o trabalho, voltar, tomar banho, jantar, ver tv, ler, ouvir música, fumar outro cigarro, dormir tarde. Todos os dias. Para cada surpresa, uma série de eventos previsíveis e previstos. Nós sabemos do futuro todos os dias e ignoramos, e toda essa previsibilidade passa sem ser notada. Quem vai dizer que eu não vou morrer amanhã? Atropelada por um ônibus ou por um carro, pelo motorista babaca cuja primeira reação ao ver o sinal vermelho não é frear, mas acelerar, passar rapidinho, que mal há, não dá nada. Nós vemos o futuro o tempo todo, só não percebemos. Talvez eu soubesse há dez anos exatamente o que seria hoje; talvez eu saiba agora exatamente o que serei daqui a dez anos. Ou fingimos não perceber porque não saberíamos lidar com isso. E aí passamos a vida toda reunindo fragmentos de uma história que nunca vamos compreender. Se somos em cada momento tudo o que já fomos e tudo o que ainda seremos. E no meio disso a misteriosa e incalculável sucessão de eventos que leva dois seres a se encontrarem em determinado momento de suas vidas. Aquele exato momento, único no tempo e no universo. Aquele, e não qualquer outro. Nem dois anos antes, nem dois anos depois. Ainda me lembro das primeiras vezes que te vi, no inverno, usando a jaqueta laranja. Aquele concurso bobo que fez todos nós nos conhecermos naquele ano. E tu nem era daqui. Fico imaginando onde as pessoas estavam antes de eu conhecê-las. Onde tu tava. Onde ele tava. Se cinco ou dez anos antes as engrenagens do destino já se moviam na direção do encontro futuro ou se tudo – a cidade, o prédio, as pessoas, o trabalho – não passa de um bolo de acasos e coincidências de proporções monstruosas e incontroláveis. E a gente se conheceu; eu e tu, e cinco anos depois eu e ele. E a gente se conheceu porque eu tinha um blog e porque ele tinha um blog, e eu tinha um blog porque comecei a escrever coisas mais elaboradas que um diário, e eu comecei a escrever coisas mais elaboradas que um diário porque descobri o blog de um rapazinho escritor genial que me trouxe pra esse mundo, e eu descobri o blog desse rapazinho porque era amiga de um amigo dele, e era amiga desse amigo porque – acaba aqui. Minha memória não vai mais para trás do que isso. E do caminho dele eu pouco sei além do fato de que por alguns anos moramos na mesma cidade e estudamos no mesmo colégio sem saber. Mas o fato é que nos conhecemos. E tu tava certo, a gente era muito parecido. Talvez até demais. E nos demos bem desde o começo, desde a primeira conversa, a primeira ligação e o primeiro encontro. Até ali eu acreditava que tu poderia ter sido o meu ápice. Eu gostei demais de ti, e tu nunca teve ideia, noção do quanto. Por mais besteiras que eu tenha dito e feito, e eu sei que disse e fiz, porque eu era muito boba. Quase idiota. É provável que ainda seja. De se entregar. E me entreguei pra ele também, mas aí foi completamente diferente. Me deixei apaixonar, mas com ele não era um caminho que eu percorresse sozinha, como foi contigo. Não era só eu. Pelo menos não até certo ponto. Foi o que eu vivi de mais intenso desde sempre. Uma paixão relâmpago tão forte que foi capaz de me derrubar. De me pôr no chão, e por muito tempo sem a menor intenção de levantar. E hoje eu sou outra. Suponho que ele também. Tu eu não sei. O que eu vejo é que tu tem hoje, com ela, o que eu imaginava pra gente no nosso tempo, sem saber que não tinha como. Hoje eu sei. E guardo por ti um carinho especial – só teu, ninguém mais tem isso de mim. Enfim. O engraçado, e o que eu só descobri recentemente, é que ele achava que eu fosse como ele. Ele me disse isso. Achou que eu fosse como ele, não exatamente canalha, mas desapegada. Eu não era. Não na época. Ele era. E eu soube disso o tempo todo. Era obrigada a saber, mesmo que não quisesse, mas deixava pra lá. A cada noite sem saber se ele viria. Todos os dias em que eu não sabia se a gente se veria outra vez. O vazio. Quando eu comecei a fazer o caminho sozinha. E mesmo assim o que a gente viveu foi o que foi. Amor que tem marcas até hoje. Foi nosso, continua sendo, vai ser sempre. E o meu desapego veio depois. Porque não tem saúde que aguente. Tu bem sabe. Os outros caras, que eu conheci depois, não são nada perto dele. Do que ele me fazia sentir. Não conseguem um terço do meu interesse ou da minha vontade. Não me fazem sentir nada. Desse tipo de casca, aí sim, prefiro desviar. E hoje não sabemos o que somos. Talvez nem ele seja um canalha nem eu uma apaixonada. Ou desapegada. Eu não sou nada, essa é que é a verdade. Não sei de nada também. Mas às vezes uma voz interna me fala. Tão lá no fundo que não é difícil fazer de conta que ela não existe, mas às vezes eu ouço, baixinho no silêncio. Talvez fosse ele. Eu conheci a pessoa certa na hora errada.