Nasceu numa tarde gostosa de novembro, um mês antes do início do verão. Os pais estavam casados há pouco menos de dois anos e haviam construído a segunda casa de um bairro afastado do centro. Sob o colchão da cama do quarto de hóspedes, desenhos feitos pelo pai em papel pardo revelavam cenas íntimas do início do casamento. Quando havia romance e poesia em lavar a louça depois do almoço no sábado, lustrar o chão ou cuidar do jardim.
Nas imagens filmadas, a mãe a empurrava no balanço da varanda, o pai dançava com ela no colo sob o móbile de palhacinhos estrategicamente pendurado no bar, ela sorria sonolenta no cadeirão, "que malvado esse pai, né, não me bota pra dormir".
Às vezes maltratava as bonecas.
Não que fosse uma criança malvada, mas a maldade atraía. Porque, ao infligir o mal, também era capaz de salvar e, assim, de ser útil de alguma forma. E as bonecas e os amigos imaginários tinham nela uma amiga, alguém em quem podiam confiar, com quem podiam conversar. Tudo o que as pessoas não eram.
Secretamente gostava dos brinquedos de menino. Em especial os carrinhos. E com frequência roubava do irmão o kit de explorador, composto por bússola, binóculo, mapa, lupa, caderno de anotações, ferramentas em geral. Os meninos é que sabiam brincar.
Os livros e os intermináveis passeios de bicicleta vieram depois. Quando explorar o quintal, o porão, o sótão e os terrenos baldios conversando com quem não existia deixou de fazer sentido para preencher as horas livres. Saía com a mochila: os livros, o discman, a água, diário e caneta. Pedalava atrás dos lugares escondidos, os terrenos vazios, as praças e parques que ninguém parecia frequentar, e do conforto de não ser vista nem encontrada. E com o tempo já não adiantava ir mais longe, porque a cidade se esgotara.
Vai a bicicleta, ficam os livros, chegam o computador, o primeiro porre e a vida noturna.
A primeira noite em que ela e as amigas saíram foi uma das últimas do Ferreiro. O bar do pessoal que queria se divertir, beber e ouvir música pagando pouco. Crianças e pré-adolescentes marginalizados esperavam ano a ano pelo dia em que finalmente cresceriam e poderiam passar uma noite lá. O bar fechou, mas a noite sempre encontra um meio. Outros lugares vieram, e voltar para casa de madrugada ou esperar o dia começar na rua não era mais estranho.
Com o primeiro namorado, chegou a primeira mentira. E depois dele a primeira vez em que se apaixonou, por um cara mais velho, que já tinha namorada. Havia crescido, enfim, e descobriu não o que era amar, mas o que era sofrer por alguém que se julga amar. Era mentira, não amor, e histórias semelhantes se seguiram àquela. Como a noite, a dor também encontra um meio.
Mudou, pintou o cabelo, entrou na faculdade. Cansada dos homens, ficou com meninas. Meninas é que sabiam viver, e beijá-las tinha um gosto bom. Mas, mais do que beijos, era enganação, também era mentira, e ela trocou ambos, homens e mulheres, por um punhado decente de paz.
Formada, mas sem vontade, foi trabalhar em uma livraria. Nem grande nem pequena, com um café-lojinha no fundo e diversas estantes espalhadas no resto do espaço. Entre os livros, a vida era mais fácil, mais prazerosa, e tinha aquele gosto de romance e poesia. Era bom estar de volta.
Os dois casamentos sem sucesso, que acabaram por uma separação e um acidente fatal, fizeram-na aceitar que morreria sozinha. Em segredo, manteve o desejo de adotar. "O que há de errado em amar uma criança que já existe?" Vê-la crescer, educá-la na medida do possível, passar adiante os livros empilhados no chão do escritório. Encarando o reflexo no espelho, porém, sabia que não poderia ser boa mãe. Pele ainda jovem para a idade, cabelos macios e vivos - mas o corpo bonito escondia desordem. Cobria em curvas a confusão, o pessimismo e a falta de vontade que em algum momento criam raízes nas pessoas para quem nada deu certo, escolhidas a dedo entre a massa que as cerca.
Aos 77 anos, com dores agora físicas e um cansaço bem diferente do da juventude, já tinha aturado a vida. Mais do que seria saudável, mais do que poderia querer. Morreu dormindo, depois de errar a dose e os remédios. Sem romance nem poesia.
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