21 de junho de 2012

o engano

Meu problema é que raras vezes sou capaz de trocar a música pela escrita. Não que não estejam ligadas, com palavras, ritmos e sonoridades, mas deixar de ouvir uma para escrever a outra acontece de me exigir certo esforço. Não posso, simplesmente, fazer as duas ao mesmo tempo, sob pena de desperdiçar ambas. Tanto a música quanto as letras exigem uma entrega de que só quem de fato sabe apreciá-las pode despender.

Mas eu me entrego menos com essa finalidade bonita do que com o desejo egoísta de dar um objeto, outro e qualquer, para o que eu penso. Esquecer está fora de alcance. Não é como num filme, em que eu poderia escolher apagar - ou em que, diante dessa impossibilidade, surgiria na minha vida algo melhor - ou em que, ainda, seria fácil morrer. E não obstante seria arte.

Eu, mulher de letras. Daquelas ainda, que parecem empregar todos os esforços para preencher cada requisito do estereótipo. Solitária melancólica que deposita num maço de cigarros a qualidade de um aliviador de tensão. Ah, quem nos dera. Em uma sequência de anos em que frustrações igualmente se seguiram, infalíveis, eu deixei pelo caminho a noção do que fazer, como fazer - como acontecer.

E ele um homem de números, como não poderia deixar de ser. Mas não como eu: ele era leve. Falava, projetava - calculava como quem sabe o que quer. Um coração e uma mente habitados pela certeza das decisões tomadas que dá força e credibilidade ao mais ignóbil dos homens. Da frieza dos cálculos, o calor das palavras.

No café, nossa conversa girou em torno das cidades, das pessoas, de suas dinâmicas de funcionamento e convivência. Sorria bonito, abraçava macio. Leva menos de um minuto - apaixonar-se por palavras ou perceber o engano dos sentidos - que deve ser a mais bela forma de se dizer ilusão. Deixar-se levar por uma fantasia qualquer de amor fácil e belo. No colo do prazer, que talvez eu merecesse, e da alegria, que talvez eu conhecesse.

Esvaziava aos poucos a xicarazinha do expresso e encarava os olhos azuis à minha frente. Cheios, a mim diziam que sim e ao mesmo tempo chamavam a imaginar o que diziam. Eu, inábil e amedrontada diante de quaisquer outros olhos, ali só podia olhar - e não sentia vontade de fazer outra coisa. As curiosidades e os convites que se fazem ver nos olhos nenhum conjunto de palavras pode formular.

O que é insanidade hoje? Ainda repetir as mesmas coisas na espera de um resultado diferente? Nunca achei insana a repetição, nunca achei precisa a ligação dos dois conceitos. Não tivesse repetido tantas vezes, não teria aprendido a fazer o bolo de aveia, receita da minha mãe. De qualquer modo, louca e insana, na mesa do café eu podia antever todos os desdobramentos do nosso encontro. Fosse como fosse a despedida, depois dela viriam as quimeras e as ficções.

Entre as camisetas estampadas, as pessoas esquecem que camisetas não geram, ainda, gentileza alguma. E, sem uma camiseta estampada, ele era gentil como quase ninguém. Desculpou-se por falar demais, devolveu perguntas sobre o que eu fazia, e o tchau recíproco veio com o gosto amargo do provavelmente nunca mais. Assim, o vão deixado pelo que em verdade não chegou a existir. Assim, os nadas que determinam minha existência.

Jogo minha atenção e minha vontade, e acaso não a falta de vontade ou atenção?, em um plano qualquer diferente desse. Do infortúnio que é querer virar as costas para o mundo e não poder - escrever. Ou ouvir música; qualquer ritmo e quaisquer letras que esvaziem pensamentos, colocando no lugar sonhos e fantasias melhores que a realidade. Se são mentirosos, sabem enganar.