28 de julho de 2015

as planilhas

Existem umas planilhas que preciso preencher. Elas dizem o que faço com todas as horas dos meus dias. A hora que acordo, o tempo que levo escovando os dentes, os horários de trabalho e de almoço, os minutos de caminhada pelo Bom Fim, as horas que eu gasto lendo e as outras tantas que passo sonhando e dormindo. Essas planilhas são um diário do tempo. De todos os dias, de todos os meses, de todos os anos. Eu deveria ser verdadeira com elas, mas nem sempre é o que acontece. Às vezes eu minto.

Na verdade, minto o tempo todo.

Minto, por exemplo, quando digo que somos amigos. Não sei se ele sabe. Porque não é tão sutil assim, quando você procura todos os dias uma brecha, quando usa as menores oportunidades para apenas estar presente. Ele talvez me veja nesses momentos. Pode ser que pense a respeito ou talvez nem perceba.

Eu tento demais, mais do que seria sensato tentar, e obviamente não consigo nada. E como haveria de conseguir? A vida não é a mesma para nós. Deveria acrescentar em minhas planilhas todos os minutos perdidos pensando no que dizer, em como dizer. Tinha que ser ele a me falar de solidão, do que há de sombrio em nossos dias.

- Tu me chama de querida, mas nunca me senti querida. Na verdade me sinto uma sombra. Invisível para os únicos olhos que eu gostaria que me enxergassem.

Hoje deveria acrescentar duas linhas nas planilhas. Uma para quando ele riu da minha cara e fez com que eu me sentisse nada, outra para as horas de escrever essa história. Tinha que ser ele a tripudiar, a reduzir minha existência a um detalhe qualquer. Tinha que ser ele a causar dor onde há muito nada se fazia sentir.

Outra linha na planilha é reservada para Umberto Eco e "Quase a mesma coisa". Mas ele pode esperar, porque quase a mesma coisa é o que eu sinto há quase dois anos e quase tudo sobre o que escrevo. Quase a mesma coisa quase todos os dias. Como as traduções que em vão tentam traduzir. Se um dia fosse diferente, já não seria a mesma coisa ou quase. Se um dia de fato for diferente, nós também não seremos mais os mesmos.

- Há quanto tempo a gente se conhece? 

É uma fantasia que eu afasto com a mesma frequência com que trago de volta. Acordes de violão que silenciam e se repetem. Maldição com nome e rosto, sem hora para sucumbir ou triunfar. Talvez um dia ela não esteja mais aqui. Talvez um dia fiquemos a sós. Talvez um dia olhemos um para o outro e o momento esteja ali, diante de nós.

- Eu não sei como dizer, ou se deveria dizer, mas a verdade é que sou completamente apaixonada por ti desde a primeira vez que te vi. E eu nem sabia teu nome.

Atrás dos meus olhos, a vontade e o medo. Eu deveria correr o risco ou apenas sorrir? As noites de bebedeira, cujo final eu gostaria que fosse diferente, em outro lugar. O mundo é melhor quando ele ri, e quando rimos juntos chego a vislumbrar uma possibilidade de vida. Há mais no silêncio do que eu jamais poderia dizer.

Há quase dois anos não sou capaz de responder as mesmas perguntas, repetidas na esperança de que na repetição venha embutido um rascunho de resposta. O que eu faço com o amor? O que eu faço com isso, seja lá o que for? Ele tampouco me ajuda a responder. Fica lá, vivendo a própria vida, alheio a mim e a tudo o que calo.

Nas planilhas, é tempo morto. Na vida, é silêncio. E eu, que nunca soube falar de amor, sinto cada segundo e cada palavra. Like fucking crazy.

22 de julho de 2015

sessões noturnas de terapia literária

Não é um sentimento tão incomum, no fim. A gente tende a pensar que encontrou uma espécie de par - alguém com a mesma necessidade, com o mesmo ímpeto -, mas a verdade é que quem sente sente mais ou menos da mesma forma.

O que mais me fascina é não saber de onde vem ou por que existe. É uma força, é uma necessidade - e simplesmente existe. Por que algumas pessoas são assim? O que determina? A gente nasce com isso? Adquire com as vivências e o desenvolvimento da personalidade? Talvez haja uma explicação neurocientífica? A gente bem que tenta, mas nunca sabe.

E daí invetamos teorias, como no mais da vida.

Eu sofro internamente por isso, mas a verdade é que me afastei. Em todos os sentidos. Não tenho mais lido com a mesma frequência e prazer de antes. E quanto a escrever nem se fala. Não faz muito tempo, eu tinha uma vontade tão grande. De seguir, de desenvolver, de dar vazão a isso tudo. E agora as palavras vêm truncadas, como se não estivessem mais em mim.

Às vezes a gente acredita que quer uma coisa e depois percebe que não era bem isso. Às vezes a gente pensa em algo, mas a vida e o tempo vêm com outros caminhos, nos levam por esses outros caminhos. Não é uma derrota ou uma falha. Acontece todos os dias, com todo o mundo.

Tem essa tendência que eu tenho de me autodesacreditar. Sabe? De não confiar na qualidade do que eu faço. De não acreditar que alguém possa realmente se interessar. De pensar que sou uma fraude enganando o mundo quando as coisas dão certo.

Isso de "acreditar em si mesmo" é uma bobagem, né. Tu sabe. Se isso de fato funcionasse e bastasse pra que as coisas "dessem certo", o que seria o mundo?

Sim. Cara. Esse é o problema da vida em geral. As pessoas se levam a sério demais. Elas realmente acreditam que são indispensáveis.

"Você é patético", lembra? Pra lembrar da nossa própria estupidez. É mais ou menos por aí. Algo de que a gente precisa - ou deveria - estar ciente pra não sair distribuindo babaquices pela boca.

Acho que em algum momento já tive essa fantasia. Mas nunca consegui pronunciar. Literalmente: nunca consegui falar em voz alta.

Posso te listar algumas coisas aqui não precisam ser pronunciadas pra existir da forma mais plena possível. O que tu não pode é procurar nos outros palavras que são tuas. Tu sente? Se joga. Ou não. Mas, qualquer que seja a opção, precisa partir de ti.

***

O café acaba, o céu escurece, nós perdemos a noção do tempo. Conversar com o Daniel tinha disso. Sessões de terapia literária ou sessões literárias de terapia, nunca decidimos. Ziggy deitado no chão aos pés dele; especulávamos se gostava de nos ouvir divagar. Quando a vida e o tempo insistiam em nos dizer que era hora de ir, ficava ali, pairando silenciosa no ar entre nós, a vontade de ficar. De estender a noite, o café e as palavras. Mas nunca a pronunciávamos. Porque sabíamos que não era possível, deixávamos que permanecesse - silenciosa, no ar, entre nós. "A Luci deve ter chegado já, deve estar me esperando", ele dizia. "Também preciso ir, tenho umas coisas do trabalho pra organizar", eu respondia. Pagávamos a conta, eu me despedia de um Ziggy feliz, língua de fora e rabo abanando, e seguíamos, à direita e à esquerda. O tempo que não víamos passar era um prenúncio da própria vida. Do curso de palavras invisíveis que deixávamos correr. "Tem certeza que não quer que eu te acompanhe?" Ele perguntava por educação, e sorria cúmplice quando eu negava, porque sabia que caminhar sozinha à noite era das coisas que eu mais gostava na vida. Meus passos seguiam uma uniformidade disforme, cada um tão igual e tão diferente. No silêncio e no escuro, aperto o casaco e penso em nós, que sempre nos encontramos em desencontros. Nossa cumplicidade, nosso silêncio, nossa distância e nossos tempos que nunca são os mesmos. Ao final da noite, restam-nos as palavras. A ele, porque as lê. E a mim, porque, aliadas a minhas mentiras e fantasias, são tudo o que tenho. Segue o baile.