10 de maio de 2019

não é óbvio


O óbvio não é evidente.

O que procuramos determina o que é óbvio – o que queremos ver, muito menos do que o que está à nossa frente. E o que vemos e queremos ver depende de algo tão impreciso quanto um desejo. O abismo do caos. Nada é o que parece ser. Nada é o que é de verdade.

***

A gente tem essas conversas como se fosse algo palpável, mensurável. Como se fosse possível determinar sentimentos a partir de uma escolha de palavras ou de um conjunto de ações banais.

Não é assim, eu digo pra ela. Porque a pessoa disse A então ela quer B. Isso não existe. Talvez às vezes até seja o caso, mas a menos que a criatura te diga com todas as letras não tem como inferir desse jeito.

Mas não adianta. Na prática, a gente vê o que quer.

Quando ele foi embora, guardei algumas coisas no fundo dos armários e das gavetas, onde meus olhos não alcançassem. O que os olhos não veem o coração não sente. Nunca um ditado brega fez tanto sentido. É a mesma lógica. A gente escolhe não ver pra não sentir, mas quando queremos sentir vemos qualquer coisa. Inclusive o que não está ali.

- Porque nós não deixamos as coisas claras uns para os outros eu nunca vou entender.
- Ah, por medo. Medo de falar, medo de ser rejeitado.
- Mas não faz sentido. Quer dizer, antes de falar tu já vive na rejeição – ela só não foi verbalizada.
- Pois é.
- As pessoas têm medo de palavras, então. De ouvir. Isso é uma estupidez.
- Não necessariamente das palavras, mas do que elas vão te fazer sentir.
- Mas aí que tá – tu já sente isso. Tu já tá nessa situação. Antes de ouvir uma rejeição, tu já não é nada.

As coisas precisam ser ditas.

***

Tenho isso, às vezes, de pensar na vida como um mapa. Uma cartografia de existências. Cada um deixa atrás de si uma linha pontilhada de idas e vindas, encontros, paradas, saltos e quedas. 

Tantas linhas passam perto uma da outra, sem chegar a se cruzar.

As pessoas com quem não esbarramos na calçada. A colega para quem você pensou em dizer “não sei, tem alguma coisa em ti que eu gosto, acho que a gente se daria bem”. O idoso que sentou ao seu lado no ônibus e que teria gostado de te contar uma história se você não estivesse de fones de ouvido. A mensagem que não mandamos. A pessoa para quem não dissemos oi. 

As linhas passam perto – bastava olhar para o lado – mas não se cruzam.

E outras tantas se encontram sem seguir juntas. Podem andar lado a lado por um tempo e ali adiante voltam a se separar. Existe pelas pessoas que não chegamos a conhecer certa nostalgia do não vivido, mas as que conhecemos e perdemos – talvez entre elas vivam nossas tristezas mais profundas. Tudo o que poderia ter sido e não foi.

Linhas que se separam. Jardins que se bifurcam.

***

- O que tu vê, afinal?
- Eu vejo o medo.

O medo de falar demais e o medo de não dizer nada. O medo de deixar o tempo passar. O medo de não perceber que estava ali o tempo todo – só você não viu. O medo de que a sincronia deixe de existir e em breve estejamos de novo em tempos diferentes. O medo de olhar nos olhos e dizer: é isso que eu quero.

Não é óbvio?

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