Passo as mãos pelo rosto depois de chorar e sinto a pele tão
lisa e macia quanto jamais esteve. As lágrimas lavam, literalmente. E é como se
levassem com elas as imperfeições e marcas do tempo. Depois de chorar,
recomeçamos.
***
Da ordem do previsível: a maior parte do tempo. O caminho
até o trabalho, o horário do almoço, a ida ao supermercado, a sessão de
terapia, a aula de francês, academia, regar as plantas, almoço de família no
domingo, passear com o cachorro, leitura no fim da noite. Conhecemos tanto do
futuro antes de vivê-lo.
Da ordem do imprevisível: os detalhes. Janelas em formato de
arco, o desenho no verso da placa, o lambe colado no poste, galhos que
invadiram a calçada, as luzes que agora iluminam a sacada do terceiro prédio à
esquerda. Um ou outro acontecimento que nos derruba. A ausência inesperada. As
palavras que eu não poderia ter previsto.
O futuro também pode ser implacável.
***
Vivemos tudo?
Habita na superfície do que acaba certa espera vã pela
continuidade. A interrupção abrupta deixa o mundo em suspenso. Foi apenas um
imprevisto, um desvio breve.
Amanhã abrirei essas mesmas portas e tudo estará como sempre
foi. Como era quando nos despedimos ontem. Chega mais cedo amanhã, pra gente
retomar. Beleza, vou chegar. Vê se descansa, bons sonhos.
Um banco sob uma árvore no verde a perder de vista. O sol. O
céu. Nuvens rabiscando o azul.
- Que lugar é esse?
- Ué, achei que tu quisesse vir pra cá.
- Eu queria, mas não sei que lugar é.
- Tu é maluca.
- Gostei daqui.
- Gostei também.
- A gente pode ficar, então?
- Mas foi tu que nos trouxe pra cá.
- Quando?
- Ontem.
- Mas tu tem hora pra voltar?
- Eu não. Tu tem?
- Agora não mais.
***
E quando chega sem aviso a gente congela. “Não”. Foi tudo o
que eu consegui dizer. Não, não, não. Não é verdade. Para de dizer isso. Não é
verdade.
Minha reação exatamente igual à da última vez que ouvira
aquelas palavras, sete anos antes. Andando de um lado para o outro sem saber
que direção tomar e sentindo crescer por dentro a dor da realidade que em palavras
eu ainda queria negar. Não. Não. Não.
Até sentar e chorar. Por todo o tempo que deveríamos ter
passado juntos naquela noite. Em todas as outras. Foi um problema em casa, só
isso. Amanhã vai estar tudo bem.
***
Talvez essa ausência seja o mais próximo que conseguimos
experimentar em vida do conceito de eternidade. Uma ausência eterna, vazio que permanece.
O espaço vago que dói e dura – para sempre, enquanto estivermos aqui.
A mesma eternidade que cabe dentro de cada segundo. Nos
olhos que agora só vejo quando fecho os meus. Nas palavras que
compartilhamos na vigília e nos sonhos de cada um.
Era pra ter sido muito mais. Ou foi exatamente tudo o que
poderia ter sido?
***
- E agora?
- A vida segue.
- Queria que seguisse contigo aqui.
- Finge que eu tô aí. Tu sabe o que eu diria.
- Sei. Sei de um monte de coisas que tu diria. Mas não é a
mesma coisa.
- Diz pra ti mesma. Prometo que vou estar falando nesses momentos.
- Isso não existe.
- O que não existe a gente inventa.
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