15 de maio de 2019

o instante em que perdemos as palavras


Entrei na sala e dei de cara com ele. Era alto demais para a mesa que ocupava, as pernas espremidas na parte de baixo. Não sabia se era visita, funcionário novo, entrevistado. Ficou me olhando, quiçá com a mesma dúvida. Soltei um oi tímido e passei por ele para chegar ao armário no fundo da sala. Nenhum dos dois cogitou se apresentar.

- O pessoal tá precisando de uma caixa dessas lá embaixo.

Essa pessoa é legal, lembro de ter pensado ao fechar a porta atrás de mim e chamar o elevador. Se ficar, a gente vai se dar bem.

Não é sempre, claro. Mas há casos. Pessoas que despertam esse instinto que no resto do tempo a gente nem sabe que tem. No segundo em que as vemos – antes de ouvir a voz, antes de saber o nome. Só uma sensação. De que estamos diante de alguém que divide algo conosco. Talvez a maneira de funcionar no mundo, de absorver a vida, de sentir tudo isso.

***

- Tu é muito parecido com o Jesse Eisenberg. Alguém já te disse isso?
- Sim! Minha irmã!

Saímos do elevador e, na rua, descobrimos que fazíamos o mesmo caminho de volta. Éramos vizinhos de bairro, poucas quadras separavam nossos prédios. Quantas vezes já não teria encontrado com ele no Zaffari sem saber quem era? Parados no mesmo lugar: olhando o preço das cervejas.

Começamos a dividir aquele caminho.

Quase todos os dias: quinze ou vinte minutos em que vivíamos as mesmas pequenas doses de vida. Caronas de guarda-chuva. Paradas na praça para fumar. Difícil dizer em que momento aquelas amenidades e papos de elevador se tornaram confidências. Risadas mais frequentes que antes de percebermos acabavam em um bar. Conversas que, de repente, só éramos capazes de ter um com o outro.

Normalmente a vida acontece quando não esperamos. Olha aqui, ela diz: alguém parecido contigo. Alguém com quem se identificar. Um encontro de almas perdidas cuja essência divide a mesma raiz.

***

- Eu queria muito outro cigarro. Tu não tem aí, por acaso?
- Pior que não. Mas aquela mulher talvez tenha – indico a outra mesa com o rosto.

Olhamos pra ela. O maço ao lado do copo e da garrafa, largado tão displicente sobre o logo descascado da Skol. Vários cigarros ali.

- Eu não tenho coragem de pedir.
- Nem eu.

Rimos os dois.

- A gente é igual, meu deus – ele diz, ainda rindo.
- Mas tenho em casa, pelo menos.
- Bah, a gente podia passar ali na volta, então, né? Tu não te importa?
- Capaz, vamos lá!

Fechamos a conta e saímos a pé. Tinha isso também. Nossos caminhos, que gostávamos de percorrer a pé. Nenhum dos dois tinha carro. Nenhum dos dois fazia questão de ter um carro. Nenhum dos dois era do tipo que chama um Uber quando pode caminhar. Mesmo à noite. Mesmo em uma cidade como Porto Alegre.

Mesmo sozinhos.

***

Para o coração a vida é simples: ele bate o quanto puder. E então para. Ele fecha o livro e coloca de volta sobre a mesa, admirado com a abertura.

- Não sei se a morte é algo que me faz sofrer, sabe? Pra mim é algo que acontece.
- É, acho que eu encaro um pouco assim também. Uma parte da vida que a gente sabe que um dia vai chegar.
- Claro, tu nunca quer nem espera que aconteça, muito menos com as pessoas que tu ama.
- Mas é parte do processo.
- Exato. Inclusive, ou principalmente, pra quem fica.

Acendemos o segundo cigarro, abrimos a segunda cerveja. Cada um jogado para trás em uma ponta do mesmo sofá de onde agora escrevo. Falamos sobre morte, sobre amar, sobre incertezas e o que fazer da vida, sobre nossa necessidade de isolamento, tempo e distância mesmo das pessoas de quem mais gostávamos. Sobre os caminhos que haviam nos levado até aquele momento, que hoje pode ser só uma projeção da memória.

O ápice da cumplicidade a que uma amizade poderia chegar: não era mais preciso falar.

***

Até que aconteceu: a vida.

***

O tempo jorra, se espalha ao mesmo tempo em que desvanece. Somos tragados, sempre. Começa com uma semana atribulada, mais compromissos que o normal, às vezes coincide de tudo se concentrar no mesmo período. A semana passa e surge uma viagem. Férias. Reuniões fora do estado. Um congresso em outro país.

Estamos parados e o mundo gira. Damos um passo e giramos com ele. Abrimos os olhos, e aquela semana foi há dois anos. Colocamos em duas horas as conversas de um ano inteiro. Tu soube que vou me mudar? E a entrevista, como foi? Mais uma semana, mais um ano.

***

Ele passa por mim, levanta as sobrancelhas e sorri sem graça. Sem saber o que dizer. Sem saber me cumprimentar. O tempo. Correndo indiferente entre tentativas vãs de um desespero estúpido e unilateral. Quando não há mais nem perguntas nem respostas. Nos perdemos no instante em que perdemos as palavras.

Uma definição de dor: não é preciso dizer nada porque perdemos ao mesmo tempo a capacidade de dizer e a de não dizer.

Eram os desencontros da vida que, embora não caibam no coração, o alimentam imprescindivelmente.

Já há algum tempo, nada mais cabe aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário