Enquanto a água escorre pelo café em pó e atravessa o tecido
do filtro para preencher a caneca. Todas as manhãs. O céu mais próximo ou mais
distante. De todas as coisas que fazemos sempre, o café é das que não perdem o
sentido.
Há três meses eu escrevia sobre nós, patinando nas palavras.
Gosto de perceber as mudanças. Da maneira como construo as frases aos pontos
que o sol já não alcança aos novos ramos que brotam dos vasos. De qualquer
maneira, a vida segue. A qualquer custo, a vida segue. Lenta e inelutavelmente.
Sempre segue.
Na vida, quando estamos frente a frente, vem de dentro algo
que nos prende. Um qualquer medo de alguma coisa, uma vergonha não se sabe bem
que de quê. Na vida, quando estamos frente a frente, as perguntas não são
feitas. A vida sozinha não liberta as interrogações que nos acompanham.
Mas aqui é diferente.
Olho para a caneca vazia. É mais relógio do que esse que
trago em volta do pulso.
***
- Não sei se a melhor pergunta é o que tu tá olhando ou o
que tu tá pensando.
- Pode perguntar as duas, ué.
- E as respostas são diferentes?
- Não sei. Tu acha que quando a gente olha pra uma coisa e
pensa em outra na verdade vemos aquilo que pensamos?
- Pode ser. Pode ser o contrário também: às vezes a gente tá
pensando em algo e de repente vê alguma coisa e aí começa a pensar nessa outra
coisa.
- Ou a gente pensa exatamente naquilo que tá vendo.
- Também. O que a gente pensa determina o que a gente vê,
então?
- Talvez. Mas não literalmente.
- Literalmente eu não vejo nada direito, vejo um monte de
borrões e imagens não definidas. E aí?
- Talvez tu pense desse jeito também.
- Vou considerar um elogio.
***
Teu rosto não é só um rosto. Muitas pessoas são só um rosto.
A maioria delas. Mas o teu é mais do que isso. O tempo todo sei que tu pensa em
algo além daquilo que consigo ver quando olho pra ti. Teu rosto é vista.
***
São desvios quase invisíveis, mas o rio corre, e o que escrevi
sobre nós há três meses já são palavras mortas. Se as lemos, não somos nós.
Quando as lemos, já somos outros. Não é só a passagem do tempo, mas os
sedimentos que ele carrega. O que segue e o que vai ficando pelo caminho. O que
chega a nós a partir do alheio.
- Venho aqui todos os dias e parece sempre igual, mas sou
outra a cada vez que tu me olha.
Não mudo à revelia desses olhos, porque eles me mudam
também.
- Cada vez que tu me olha, esse olhar se torna parte da
pessoa que me torno.
Quantos olhares já trocamos? Quanto de mim foi contigo e
quanto de ti veio comigo?
- Sou feita também dos teus olhares.
***
Se depender do tempo, o que escrevo sobre nós nunca será verdadeiro.
Ou será para sempre, congelado em instantes que não voltarão a existir. O tempo
leva as palavras. Amanhã mesmo, o que diremos?
Nossos olhos guardam e transmitem as palavras que não
ousamos pronunciar.
Quero te dizer tudo com os olhos. Quero ler nos teus olhos o
que tu escreve sobre nós.
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