Um cenário épico e um guarda-chuva bem grande. Era o que
dizia no rótulo da cerveja. De tão alto, o mundo é um lugar que vale a pena.
- Um brinde às almas que vagam sozinhas.
Do alto de uma montanha. Onde
mais eu poderia estar?
***
Foi uma dessas cenas improváveis. Não era para a conversa
ter acontecido – e de repente ela se desenrolou, bem diante de nós. Não dava pra
enxergar o céu. Poderiam ser oito da manhã ou oito da noite. Lembro de tentar
abrir uma janela e não conseguir. Quando voltei, ele sorria.
- Gosto das coisas que não são evidentes, que exigem mais do
olhar.
- É preciso haver
esforço.
- Olha, reconheço essa referência.
- Prestou atenção na leitura, então.
- Sempre presto.
- Eu sei, eu sei.
- É por isso que contigo é tão difícil?
- O quê?
- Porque precisa ter esforço.
- Não tô te entendendo. O que que é difícil comigo?
- Tu entendeu, sim.
- Tá, entendi. Mas tu sabe que não é por isso.
- Eu não sei de nada.
- Já te expliquei.
- Não sei se acredito em ti.
- Por que tu não acreditaria em mim?
- Porque tu nunca me diz as coisas de verdade.
- E tu por acaso perguntou de novo?
***
Eu não tinha perguntado de novo, pensei enquanto sentia o
primeiro gole da cerveja. Comprada no mercado do peixe. Na banca de um meio
português, meio brasileiro. Era bom falar a minha língua.
- Queres mais alguma coisa? Talvez um peixe para o almoço?
- Não, obrigada. Mas eu volto amanhã, com certeza.
- Serás muito bem-vinda!
Não é preciso sorrir para ter um rosto sorridente. Como o do
Pedro, que me vendeu a cerveja. Um rosto que sorri por si e por isso faz a
gente lembrar. Me fez lembrar. Dos dias de abrir aquela porta e encontrar o
rosto que também era sorriso.
Nem sempre olhava pra mim. Nem sempre podíamos ou
conseguíamos falar. Às vezes sentia os olhos às minhas costas. Ou imaginava
sentir. E de um jeito ou de outro permanecia o rosto. A despeito de qualquer
circunstância.
Eu nunca tinha perguntado de novo. Por quê?
***
O tempo vai curar tudo. Mas e se o tempo for a doença? Não
sei, Wim. Não sei. Vendo tudo de tão longe a vida tem ainda menos sentido.
Gaivotas sobrevoam o mar acima dos barcos atracados. Uma nuvem baixa se
aproxima da cidade ao pé da montanha.
- Eu queria estar contigo.
Digo em voz alta, como se ele pudesse me ouvir. Onde
estaria? Com quem? Será que eventualmente ainda pensava em mim? Eu poderia
perguntar. Mas há tempo não dissemos nada. Foi preciso atravessar o mundo para
tentar apagar o que descobri fazer parte de mim: a lembrança daquele sorriso.
Carregamos memórias e palavras no bolso, como uma chave ou
moedas recebidas de troco.
***
Meus óculos embaçam. Ele ri.
- Pelo amor de deus, vamos pra rua.
- Vamos.
Sentamos no banquinho do lado de fora.
- Vou sentir tua falta.
- Eu volto.
- E se não voltar?
- A gente se acha de novo em outro lugar.
***
Pedro estava lá no dia seguinte também. Voltei para almoçar,
como disse que voltaria. Repeti a cerveja. A gente tem isso de repetir sensações.
Principalmente as que nos fazem voltar.
Comi na beira do mar e fiquei por ali. Duas imensidões
cinzas que quase eram uma só. Não é o lugar, é a ausência.
- Queres mais uma? – ouço os passos do Pedro às minhas
costas.
- Se tu dividir comigo.
- Não tens de pedir outra vez.
***
Me acorda, eu digo. Estás sonhando? Sonho. É muita
realidade lá fora pra gente não sonhar de vez em quando. Como posso te acordar,
então? Me acorda da realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário