11 de abril de 2019

até que só reste pele


O corte do vestido também ajuda. Esses em que a cintura não é alta nem baixa demais. Prendo o cabelo. Desço os braços devagar, passando as mãos pelo corpo. Elas se detêm sempre no mesmo ponto.

Escuto o café fervendo no bule. O gosto das coisas que passaram do ponto. Não por descuido: às vezes é preciso.

***

- Invejo demais essa tua vista.

Os carros pequenos lá embaixo. As texturas dos prédios, janelas acesas. E todo aquele céu. Como uma janela pequena daquelas era capaz de emoldurar tanto céu?

Falar da vista da janela era escancarar qualquer porta. Só não vê quem não quer.

- Quer conhecer?

***

- Ei-la!
- Gente. É muito céu!

Posso sentir meus olhos brilhando. Como se quisessem ser maiores do que a janela, mais do que o próprio mundo, abarcar tudo. Fico olhando para o céu por uns instantes, sentindo a presença dele alguns passos atrás de mim. O que será que ele pensa, me vendo de costas? E não se aproxima por não saber como ou por ainda querer manter alguma distância?

Ainda.

Me viro e vou até a frente da estante. Os livros bagunçados, uns sobre os outros. Porque são tirados e devolvidos com frequência. Folheados. Vividos. Meus olhos param sobre um Proust.

- Posso pegar?
- Claro! Pode mexer à vontade.

É aquele momento. Exatamente aquele momento. O limiar de tudo que está prestes a acontecer. Os últimos instantes em que ainda é possível desistir: podemos olhar nos olhos um do outro, entender que foi uma escolha errada e sem dizer nada acabar o que não começou. Ou podemos falar um pouco sobre o livro que tirei da prateleira, às vezes olho para as páginas, às vezes para o rosto dele, ele pega o livro das minhas mãos, folheia em busca de uma passagem específica e me devolve com o indicador no início de um parágrafo, “aqui, lê a partir daqui”, eu começo a ler, nós dois em silêncio, de frente um para o outro, dessa vez mais perto, ele me observando ler, chego ao fim do trecho que ele apontou, engulo, “nossa”, não consigo dizer mais do que isso, “foda, né? O cara é muito bom”, eu deixo o livro sobre o batente da janela, olho mais uma vez para o céu e quando volto a olhar pra ele é porque sinto as duas mãos na minha cintura, uma de cada lado.

***

Sinto a mão dele subir pelas minhas costas e se encaixar na nuca, por baixo dos cabelos. Levo a mão que apoiava o rosto dele para o mesmo lugar. Deslizo para cima e para baixo, fazendo um pouco de força, puxando de leve os cabelos. Arranho as costas dele, a mão dele desce pelo meu vestido. Desvio meus lábios dos dele e começo a beijar o pescoço. Respirando com mais força. Coloco a língua na orelha dele, mordo de leve. Ele chupa meu pescoço. Respirações sonoras e mãos que querem abrir calças, subir por baixo de vestidos, atravessar todos os tecidos.

Até que só reste pele.

***

Tomamos o café que ele acabou de passar sentados na beira daquela janela. Nossos joelhos se tocam no centro da cena. O dia é cinza e sopra um vento mais frio. Prenúncio de outono.

- Planos? – eu pergunto.
- Nada. Só ficar lendo aí, acho.
- Coisa boa.

Bebemos mais um pouco do café em silêncio. Percebo ele olhando para mim, mas quando viro o rosto para olhar de volta ele baixa os olhos num susto. Dou um sorriso, mais pra mim mesma do que pra ele. Ele se escora de costas para a janela e diz, olhando para as próprias mãos, mais para si mesmo do que para mim:

- Posso te emprestar algum livro, se tu tiver a fim de ficar.

***

Que arranjo é esse?, tenho vontade de perguntar. Onde no mundo esse amor vai se encaixar? Pode mentir, desde que seja verdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário