O corte do vestido também ajuda. Esses em que a cintura não
é alta nem baixa demais. Prendo o cabelo. Desço os braços devagar, passando as
mãos pelo corpo. Elas se detêm sempre no mesmo ponto.
Escuto o café fervendo no bule. O gosto das coisas que
passaram do ponto. Não por descuido: às vezes é preciso.
***
- Invejo demais essa tua vista.
Os carros pequenos lá embaixo. As texturas dos prédios,
janelas acesas. E todo aquele céu. Como uma janela pequena daquelas era capaz
de emoldurar tanto céu?
Falar da vista da janela era escancarar qualquer porta. Só
não vê quem não quer.
- Quer conhecer?
***
- Ei-la!
- Gente. É muito céu!
Posso sentir meus olhos brilhando. Como se quisessem ser
maiores do que a janela, mais do que o próprio mundo, abarcar tudo. Fico
olhando para o céu por uns instantes, sentindo a presença dele alguns passos
atrás de mim. O que será que ele pensa, me vendo de costas? E não se aproxima
por não saber como ou por ainda querer manter alguma distância?
Ainda.
Me viro e vou até a
frente da estante. Os livros bagunçados, uns sobre os outros. Porque são
tirados e devolvidos com frequência. Folheados. Vividos. Meus olhos param sobre
um Proust.
- Posso pegar?
- Claro! Pode mexer à vontade.
É aquele momento. Exatamente aquele momento. O limiar de
tudo que está prestes a acontecer. Os últimos instantes em que ainda é possível
desistir: podemos olhar nos olhos um do outro, entender que foi uma escolha
errada e sem dizer nada acabar o que não começou. Ou podemos falar um pouco
sobre o livro que tirei da prateleira, às vezes olho para as páginas, às vezes
para o rosto dele, ele pega o livro das minhas mãos, folheia em busca de uma
passagem específica e me devolve com o indicador no início de um parágrafo,
“aqui, lê a partir daqui”, eu começo a ler, nós dois em silêncio, de frente um
para o outro, dessa vez mais perto, ele me observando ler, chego ao fim do
trecho que ele apontou, engulo, “nossa”, não consigo dizer mais do que isso,
“foda, né? O cara é muito bom”, eu deixo o livro sobre o batente da janela,
olho mais uma vez para o céu e quando volto a olhar pra ele é porque sinto as
duas mãos na minha cintura, uma de cada lado.
***
Sinto a mão dele subir pelas minhas costas e se encaixar na
nuca, por baixo dos cabelos. Levo a mão que apoiava o rosto dele para o mesmo lugar. Deslizo para cima e para baixo,
fazendo um pouco de força, puxando de leve os cabelos. Arranho as costas dele, a mão
dele desce pelo meu vestido. Desvio meus lábios dos dele e começo a
beijar o pescoço. Respirando com mais força. Coloco a língua na orelha
dele, mordo de leve. Ele chupa meu pescoço. Respirações sonoras e mãos que querem abrir calças, subir por baixo de vestidos, atravessar todos os tecidos.
Até que só reste pele.
Até que só reste pele.
***
Tomamos o café que ele acabou de passar sentados na beira
daquela janela. Nossos joelhos se tocam no centro da cena. O dia é cinza e
sopra um vento mais frio. Prenúncio de outono.
- Planos? – eu pergunto.
- Nada. Só ficar lendo aí, acho.
- Coisa boa.
Bebemos mais um pouco do café em silêncio. Percebo ele
olhando para mim, mas quando viro o rosto para olhar de volta ele baixa os
olhos num susto. Dou um sorriso, mais pra mim mesma do que pra ele. Ele se
escora de costas para a janela e diz, olhando para as próprias mãos, mais para
si mesmo do que para mim:
- Posso te emprestar algum livro, se tu tiver a fim de
ficar.
***
Que arranjo é esse?, tenho vontade de perguntar. Onde no
mundo esse amor vai se encaixar? Pode mentir, desde que seja verdade.
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