13 de novembro de 2019
uma dessas feministas
- Tu não é uma daquelas feministas, é?
- Sou, sou uma daquelas.
Nada de particular sobre aquela manhã em Porto Alegre. O filtro de caridade branca que envolvia o dia. Nos primeiros dias de março, o verão ainda queimava.
Minha regata vermelha, a camiseta cinza dele do New Order, nossos all stars - meu all star azul combina com o seu preto de cano alto. Não era de cano alto. Éramos jovens até demais.
Mas a lembrança não é do calor. A pele retém sensações, mas não consciências. O calor, a dor, um toque, a chuva. Para lembrar, sempre é preciso sentir tudo de novo.
O que teria mudado se eu tivesse dado essa resposta?
Sim, sou uma dessas feministas.
***
A Venâncio como sempre, feita céu e carros que a gente não vê.
Às vezes me perco. Começo e quando vejo não sei como cheguei até ali. Nunca tinha reparado nessa fachada. Como as pessoas conseguem andar mexendo no celular? Por que não é possível esperar? Com que atenção se responde qualquer coisa desse jeito? Atenção. Será que a gente ainda é capaz de algum tipo de atenção? A qualquer coisa.
Colégio Militar, João Pessoa, Lima e Silva. Dobramos.
- Uma vez a mãe da minha ex ligou. Disse que tava no hospital, que a Luísa tinha tentado se matar. Tava puta comigo.
- Quê?
- É.
- Sério isso?
- Sim. Mas né, ela tinha uns problemas.
- Ah tá.
- Oh, é aqui.
Ela devia ter algum problema.
É o que nos fazem acreditar. E contam assim, como quem fala das piadas ruins no almoço de família.
Louca. Exagerada. Emotiva. Sentimental. Não entendeu direito. Sensível demais.
Entende?
***
Azul e cinza se intercalam, dia um dia outro. Tem os carros que passam no fundo, a sirene de uma ambulância, pássaros, uma obra no prédio vizinho. Vozes sem rosto e rostos sem voz.
Nunca mais te vi e nem quero.
Todo esse futuro pela frente e não saber o que fazer com ele. A gente sempre encontra jeitos de matar o tempo. E desculpas para não encará-lo. Até o dia em que ficam apenas os arrependimentos - tu vê, o tempo passou.
O medo é essa sombra sem forma.
Enquanto tudo parece ter uma sequência e todos parecem ter um plano. O que eu sou? Quem eu devo ser no mundo, agora que não sou mais quem era?
Outro dia percebi: eu não entendia direito, na época. Ainda não era uma dessas, feministas.
29 de setembro de 2019
as roupas secaram
Penduro as roupas recém lavadas no varal. Mais roupas do que
o espaço permite. Minha mãe diz que assim vou acabar estragando a máquina de
lavar. Porque boto coisas demais ali dentro. Mas a máquina tá ali há dez anos e
continua funcionando.
E o varal não arrebentou.
Dentro de mim cresce um grito. Que escapa às vezes em sonho:
a janela ficou aberta, entraram em casa, um cachorro parado à porta do quarto,
quando levanto e me aproximo ele foge, tem mais medo de mim do que eu dele, mas
porque grito, e o assusto, ele reage, e me ataca.
Seria uma metáfora?
- Não sinto mais tua falta – tenho vontade de dizer – tudo o
que podia acontecer entre nós já aconteceu. Não sobrou nada, e o resto é só
complicação. Respostas que não quero mais dar porque me obrigam a lembrar que
não sou quem gostaria de ser.
O amor é só demência e
confusão.
Se é.
O silêncio agora tem horários. Não terminei a mala. Não apertei
o parafuso solto da porta do banheiro. Comprei bananas.
Lembrei do Samuel, que tá na Nova Zelândia. Disseram que
ele vem agora. Em algum momento desse mês. Ou no começo do próximo? Foi só uma
noite. Beijos numa pista lotada. Escorados na parede suja. O chão grudando de
cerveja derramada. Nossos corpos colados, pernas e braços que se moviam como se
quiséssemos subir um no outro. O volume entre as pernas dele querendo escapar
das calças. Depois nos perdemos no meio das pessoas. Ele chegou a pegar meu
celular. Trocamos umas mensagens. E poucos dias depois ele viajou. Agora vem de
novo, não sei por quanto tempo. Também não sei quase nada sobre ele. Mas sairia
de novo nem que fosse só por mais um beijo daqueles. Desses que a gente ainda
sente nos lábios no dia seguinte.
Dormentes.
Extasiados.
Por que pensar nisso agora?
Tudo o que me chega à cabeça em uma noite de insônia. Com o
mesmo objetivo: adiar a realidade. Mas já são quatro da manhã, acordei cinco
vezes, virei na cama a noite inteira, pesadelo atrás de pesadelo.
Penso na gente nas escadas da Borges. Escorados ali, tomando
uma cerveja.
- Tu vai voltar comigo dessa vez?
- Vou. Nunca entendi por que não fui da última, pra ser
sincera.
- Nem eu.
- Acho que eu não faço muito sentido.
- Melhor assim.
Olhamos para um céu sem estrelas. É uma noite de nuvens,
como o será o dia de amanhã. Subimos as escadas e pegamos à direita. Juntos,
rumo ao desconhecido.
Acordo e não tenho vontade de levantar. Eu nunca tenho
vontade de levantar. Como se escondida do dia na penumbra do quarto pudesse
manter ali também minhas angústias. Bobagem. Preciso tomar banho e varrer o chão.
Abro meu caderno, anoto pensamentos aleatórios. Os sonhos estranhos que tenho. Levanto as cortinas da cozinha, coloco música, corto alho e cebola. Gosto do cheiro de alho que fica nos dedos. Depois passo um café
e olho pela janela.
Parece que as roupas secaram.
18 de setembro de 2019
ninguém vê nada
Meia hora se passou sem que eu dissesse uma palavra.
Ela estava esperando, contudo. Por algo. Um sinal. Um começo. Um ruído
qualquer. Um fio de história que ela pudesse puxar.
Nada.
- Não tenho mais o que dizer.
Meus olhos encaram o vazio.
Tenho vontade de rasgar o fluxo do tempo e desfazer
todas essas distorções. Calar todas as bocas. Interromper todos os pensamentos
e o curso de uma vida que não é a vida certa. Que mundo é esse em que todas as
distopias parecem plausíveis?
Elenco desgraças desejáveis e assisto aos absurdos que
desfilam ao meu redor. Não tenho ânimo de me insurgir contra nenhum deles. Ela
esperava mais de mim. Ela sabe que eu poderia mudar tudo por nós duas e por
isso a mágoa.
- Por que você não faz nada? – me pergunta.
Eu não sei.
As ondas do tempo explodem, os dias se repetem, um
segundo substitui o outro. Estamos em um carrossel ou em uma roda-gigante –
qualquer coisa que gira sem sair do lugar. O mundo passa diante de nós e do
alto podemos ver o horizonte. A borda de um buraco negro é chamada de horizonte
de eventos.
Desço e caminho, mas por mais que eu ande há sempre um
limite, uma barreira que não consigo ultrapassar.
- Sozinha eu não vou conseguir – digo a ela.
- Você sabe que não pode contar com mais ninguém – ela
retruca – somos só nós.
- Eu sei.
- Não é exatamente estar sozinha.
Quando no fim da tarde o céu muda de cor, as primeiras
estrelas despontam para nos lembrar: o que vemos não existe mais. Olhar para o
céu à noite é enxergar o passado. De frente, nos olhos. São as estrelas os
olhos do passado. Outros mundos foram possíveis, outros mundos ainda serão.
Já não falo com mais ninguém. Desapareço todos os
dias: em meio a uma vida que não é minha, em meio a palavras que não são
minhas. Meu é o silêncio, minha é a solidão.
- Até onde vamos com isso? – pergunto.
Ela sabe, mas não responde.
Qualquer que seja o final, o carregamos conosco desde
o começo. Trazemos a morte no peito no momento em que viemos à vida. Eu só
queria mais tempo para conversar. Para descobrir os mundos que se perdem em
reuniões, séries, mensagens virtuais e vídeos efêmeros. Um dia para exibir um
fragmento inútil de vida. Somos feitos de fragmentos e assim nos apresentamos
ao mundo. Ninguém vê nada.
Sete bilhões de pessoas. Todas paridas por uma mulher.
Na rua, a vida segue – à margem de tudo.
- Vai ser assim até o fim.
9 de agosto de 2019
bilhetes
Me pergunto se ele soube fazer ela
feliz. Se deixou de ser o disco arranhado que eu ouvi por tanto tempo. Minha
vida é uma bosta, odeio minha cidade, odeio meu trabalho, odeio a faculdade,
odeio meus colegas, odeio meus professores. Nada tem sentido, todos são medíocres,
ninguém entende como o que eu faço e penso é excepcional.
Uma vez a mãe dele me ligou. Nunca soube que cara ela tem. Mas me ligou uma noite. Ele tá aí contigo? Não.
Uma vez a mãe dele me ligou. Nunca soube que cara ela tem. Mas me ligou uma noite. Ele tá aí contigo? Não.
***
O tempo nunca se esconde.
***
Nunca esteve, de fato. Adotou minha
casa como dele, mas nunca esteve comigo. Tinha uma escova de dente no meu
banheiro e roupas no meu armário, mas nunca foi sério. O amor existia, mas
o abismo que nos separava na maneira de viver e sentir, a discrepância de
expectativas – foi demais para duas pessoas que mal sabiam cuidar de si
próprias.
Quando levei ele até o portão no
domingo de tarde e me despedi, meu corpo soube. Não vamos nos ver outra vez. Atravessei o corredor de volta até minha porta, os passos levando para dentro a certeza: não caminharíamos juntos de novo. E aquilo
tudo ficaria comigo – roupas, escova de dente, gilete, os bilhetes que ele
escondia pela casa para que um dia eu encontrasse.
***
A vida está onde a gente menos
espera.
***
Seis anos passam. Tu ainda mora
no mesmo prédio? Tá em casa? A mensagem que eu vejo e respondo umas duas ou
três horas depois. Tava naquele bar mais pra baixo na rua e pensei em passar
pra dar um oi.
Era pra ser natural. Foi uma
vontade que eu tive na hora. Só isso. Se não acontece naturalmente, melhor que
nem aconteça.
Claro. Eu entendo. Pode pensar em
passar pra dar um oi sempre que estiver naturalmente bêbado nos bares da minha rua. Naturalmente estarei aqui pra te receber.
***
O silêncio às vezes deve ser
compartilhado.
***
Nossas histórias podem não contar a verdade,
mas nunca serão falsas. Carregam frações do tempo. Sensações que ficaram do que
já passou.
Réstias de memória que insistem em não se perder: um cigarro
roubado, panquecas em um restaurante temático, o jeito dele de abraçar
segurando as mangas do blusão na ponta dos dedos, o sorriso que sempre dizia esse é o melhor lugar do mundo.
Todos os livros do mundo. Um brinde a não saber há quanto tempo estamos juntos.
Todos os livros do mundo. Um brinde a não saber há quanto tempo estamos juntos.
***
A imaginação não é um presente.
21 de julho de 2019
tudo o que é dito de outra maneira
Como a gente fazia pra viver quando ainda existia realidade?
Acordo e o vejo dormindo ao meu lado. Fazia uma semana que
não nos falávamos. Na véspera ele me mandou uma mensagem: abre pra mim? Sabia
que eu estava em casa. Puxei o portão e ele ficou um tempo ali parado, me olhando. Nós dois em silêncio sob a luz laranja de um poste, os galhos de um
ipê, as estrelas de um céu que tanto amávamos observar em silêncio. Exatamente
como naquele instante.
Olhar nos olhos de alguém é o mesmo que olhar para o céu.
Dei um passo atrás pra ele passar. Girei a chave de volta.
Entramos. Sentou apoiando a cabeça nas mãos. Os cabelos escorrendo pelos lados.
Puxei uma das mãos dele na minha direção. Não foi culpa de ninguém. Basta
seguir vivendo.
Desenvolvemos essa linguagem, toda baseada em olhares e mãos
que se buscavam ou se evitavam. Conversas inteiras acontecem assim. E eu amo
isso em nós. Tudo o que é dito de outra maneira.
Ele abre os olhos devagar e sorri esticando os braços. Ainda
no meio do sono. Cara de travesseiro. Quer um café? A gente pode ficar lendo na
cama? A gente deve. Manhã preguiçosa. Uma vez me disseram que não pode haver
intimidade maior do que ler. Duas pessoas em silêncio, cada uma em um mundo à
parte e ao mesmo tempo juntas.
Lemos. Não precisamos de mais.
Lemos. Não precisamos de mais.
Eu me canso primeiro. Fecho o livro e largo na mesinha ao
lado da cama. Fico sentada por um momento, incapaz de decidir se quero levantar
ou deitar de novo. Ele levanta o braço. Como se abrisse um portal. Um convite a si próprio. Deito no
colo dele e durmo de novo, entre um beijo e a mão que acaricia meus cabelos.
Ele continua lendo.
Ele continua lendo.
Quero acreditar que existe uma realidade pra nós.
12 de julho de 2019
o que escrevi sobre nós
Enquanto a água escorre pelo café em pó e atravessa o tecido
do filtro para preencher a caneca. Todas as manhãs. O céu mais próximo ou mais
distante. De todas as coisas que fazemos sempre, o café é das que não perdem o
sentido.
Há três meses eu escrevia sobre nós, patinando nas palavras.
Gosto de perceber as mudanças. Da maneira como construo as frases aos pontos
que o sol já não alcança aos novos ramos que brotam dos vasos. De qualquer
maneira, a vida segue. A qualquer custo, a vida segue. Lenta e inelutavelmente.
Sempre segue.
Na vida, quando estamos frente a frente, vem de dentro algo
que nos prende. Um qualquer medo de alguma coisa, uma vergonha não se sabe bem
que de quê. Na vida, quando estamos frente a frente, as perguntas não são
feitas. A vida sozinha não liberta as interrogações que nos acompanham.
Mas aqui é diferente.
Olho para a caneca vazia. É mais relógio do que esse que
trago em volta do pulso.
***
- Não sei se a melhor pergunta é o que tu tá olhando ou o
que tu tá pensando.
- Pode perguntar as duas, ué.
- E as respostas são diferentes?
- Não sei. Tu acha que quando a gente olha pra uma coisa e
pensa em outra na verdade vemos aquilo que pensamos?
- Pode ser. Pode ser o contrário também: às vezes a gente tá
pensando em algo e de repente vê alguma coisa e aí começa a pensar nessa outra
coisa.
- Ou a gente pensa exatamente naquilo que tá vendo.
- Também. O que a gente pensa determina o que a gente vê,
então?
- Talvez. Mas não literalmente.
- Literalmente eu não vejo nada direito, vejo um monte de
borrões e imagens não definidas. E aí?
- Talvez tu pense desse jeito também.
- Vou considerar um elogio.
***
Teu rosto não é só um rosto. Muitas pessoas são só um rosto.
A maioria delas. Mas o teu é mais do que isso. O tempo todo sei que tu pensa em
algo além daquilo que consigo ver quando olho pra ti. Teu rosto é vista.
***
São desvios quase invisíveis, mas o rio corre, e o que escrevi
sobre nós há três meses já são palavras mortas. Se as lemos, não somos nós.
Quando as lemos, já somos outros. Não é só a passagem do tempo, mas os
sedimentos que ele carrega. O que segue e o que vai ficando pelo caminho. O que
chega a nós a partir do alheio.
- Venho aqui todos os dias e parece sempre igual, mas sou
outra a cada vez que tu me olha.
Não mudo à revelia desses olhos, porque eles me mudam
também.
- Cada vez que tu me olha, esse olhar se torna parte da
pessoa que me torno.
Quantos olhares já trocamos? Quanto de mim foi contigo e
quanto de ti veio comigo?
- Sou feita também dos teus olhares.
***
Se depender do tempo, o que escrevo sobre nós nunca será verdadeiro.
Ou será para sempre, congelado em instantes que não voltarão a existir. O tempo
leva as palavras. Amanhã mesmo, o que diremos?
Nossos olhos guardam e transmitem as palavras que não
ousamos pronunciar.
Quero te dizer tudo com os olhos. Quero ler nos teus olhos o
que tu escreve sobre nós.
29 de junho de 2019
uma história feita para ser reescrita
- Não. Eu acredito que almas ou mentes ou energias
semelhantes, como tu quiser chamar, que vibram numa frequência parecida e
funcionam no mundo de um jeito parecido, se encontram e se reconhecem. E aí
pode ser qualquer coisa. Uma amizade, uma parceria profissional, alguém que te
inspira, uma pessoa que tu conhece numa viagem e nunca mais vê de novo. Qualquer coisa. A gente que tem essa necessidade de dar nome.
***
Estávamos sentados no banco do lado de fora. Difícil saber
pelo que esperávamos. Pássaros trocavam de galho acima de nossas cabeças e as
folhas das árvores sob o sol desenhavam padrões que gostávamos de assistir na
calçada.
- Eles mudam sempre.
- Tudo sempre muda.
Conto pra ele do último cara do Tinder com quem saí. Formado
em Arquitetura, fazendo mestrado. Gostava de ler também. Fomos num bar da
Cidade Baixa. Era ok pra conversar. Foi uma noite boa. Era o segundo com quem
eu tentava, mas sei lá, acho que não vai pra frente também. Por que não?, ele
perguntou. Qual o problema.
- O problema – eu digo – é que nenhum deles é tu.
As sombras continuam mudando. O vento varre a calçada e as
folhas que já caíram dançam com ele. Ele levanta e estende a mão pra mim. O
tempo passou.
- Vem, vamos entrar.
***
Te fiz dizer as palavras que eu mais gostaria de pronunciar.
Ou talvez quisesse ouvi-las ainda mais do que falar.
Achei que teríamos tempo. Aquele era o único domingo em que
as coisas poderiam acontecer e eu achei que teríamos tempo. De sentir a
presença um do outro. Entender a pessoa enquanto ela fala e gesticula à nossa
frente. Olhar nos olhos que se buscam e ao mesmo tempo se desviam.
- Gosto de sentir o tempo passar.
Não olhando para o relógio ou esperando por alguma coisa.
Percebendo as sombras e as cores do dia mudarem. Pouco a pouco. Enquanto nós
permanecemos estáticos.
- Estáticos, mas vivos?
- Não sei se precisam ser coisas opostas. Acho que existem
certos momentos especiais na vida em que podemos ser estáticos e vivos.
E nesses momentos nos enchemos de universo.
- Me diz, então: qual de nós encontrou o outro primeiro?
***
Houve um tempo antes de nascermos. E houve o tempo em que estávamos
vivos sem saber da existência do outro.
- Será que algum dia estivemos no mesmo lugar sem saber?
Será que te vi em um dos bares? Ou passei por ti na rua?
- Teria sido diferente?
- Não sei. Teria?
- E isso importa, agora?
- Importa. Porque pra mim não interessa uma versão de
existência em que estamos juntos sem poder estar.
Quis saber o que eu faria, nesse caso. Eu reescreveria toda
essa história.
- Inventamos o que não existe. Vem comigo.
20 de junho de 2019
o que não existe a gente inventa
Passo as mãos pelo rosto depois de chorar e sinto a pele tão
lisa e macia quanto jamais esteve. As lágrimas lavam, literalmente. E é como se
levassem com elas as imperfeições e marcas do tempo. Depois de chorar,
recomeçamos.
***
Da ordem do previsível: a maior parte do tempo. O caminho
até o trabalho, o horário do almoço, a ida ao supermercado, a sessão de
terapia, a aula de francês, academia, regar as plantas, almoço de família no
domingo, passear com o cachorro, leitura no fim da noite. Conhecemos tanto do
futuro antes de vivê-lo.
Da ordem do imprevisível: os detalhes. Janelas em formato de
arco, o desenho no verso da placa, o lambe colado no poste, galhos que
invadiram a calçada, as luzes que agora iluminam a sacada do terceiro prédio à
esquerda. Um ou outro acontecimento que nos derruba. A ausência inesperada. As
palavras que eu não poderia ter previsto.
O futuro também pode ser implacável.
***
Vivemos tudo?
Habita na superfície do que acaba certa espera vã pela
continuidade. A interrupção abrupta deixa o mundo em suspenso. Foi apenas um
imprevisto, um desvio breve.
Amanhã abrirei essas mesmas portas e tudo estará como sempre
foi. Como era quando nos despedimos ontem. Chega mais cedo amanhã, pra gente
retomar. Beleza, vou chegar. Vê se descansa, bons sonhos.
Um banco sob uma árvore no verde a perder de vista. O sol. O
céu. Nuvens rabiscando o azul.
- Que lugar é esse?
- Ué, achei que tu quisesse vir pra cá.
- Eu queria, mas não sei que lugar é.
- Tu é maluca.
- Gostei daqui.
- Gostei também.
- A gente pode ficar, então?
- Mas foi tu que nos trouxe pra cá.
- Quando?
- Ontem.
- Mas tu tem hora pra voltar?
- Eu não. Tu tem?
- Agora não mais.
***
E quando chega sem aviso a gente congela. “Não”. Foi tudo o
que eu consegui dizer. Não, não, não. Não é verdade. Para de dizer isso. Não é
verdade.
Minha reação exatamente igual à da última vez que ouvira
aquelas palavras, sete anos antes. Andando de um lado para o outro sem saber
que direção tomar e sentindo crescer por dentro a dor da realidade que em palavras
eu ainda queria negar. Não. Não. Não.
Até sentar e chorar. Por todo o tempo que deveríamos ter
passado juntos naquela noite. Em todas as outras. Foi um problema em casa, só
isso. Amanhã vai estar tudo bem.
***
Talvez essa ausência seja o mais próximo que conseguimos
experimentar em vida do conceito de eternidade. Uma ausência eterna, vazio que permanece.
O espaço vago que dói e dura – para sempre, enquanto estivermos aqui.
A mesma eternidade que cabe dentro de cada segundo. Nos
olhos que agora só vejo quando fecho os meus. Nas palavras que
compartilhamos na vigília e nos sonhos de cada um.
Era pra ter sido muito mais. Ou foi exatamente tudo o que
poderia ter sido?
***
- E agora?
- A vida segue.
- Queria que seguisse contigo aqui.
- Finge que eu tô aí. Tu sabe o que eu diria.
- Sei. Sei de um monte de coisas que tu diria. Mas não é a
mesma coisa.
- Diz pra ti mesma. Prometo que vou estar falando nesses momentos.
- Isso não existe.
- O que não existe a gente inventa.
9 de junho de 2019
às vezes
Às vezes é preciso buscar. Às vezes no caminho de volta para
casa. Às vezes durante o expediente ou olhando pela janela do ônibus. Antes de
dormir.
***
Dificilmente envolve sexo. Nem mesmo beijos. É mais uma
cumplicidade. Almas que se reconhecem.
Caminhamos juntos, olhando para a copa das árvores acima de
nós. Conversamos. Rimos um com o outro. Discutimos livros e escritos. Sentamos
lado a lado, nossas mãos em um carinho leve. Ou de costas um para o outro,
escoro mútuo. Lemos. Andamos na beira da praia, os pés na água. Olhamos o mar.
Sentimos o vento. Somos o vento. Céu e sal. Pegamos um ônibus. Acordo primeiro
e vejo ele dormir. Volto a dormir em seguida. Ou o contrário. Ele levanta e
passa o café. Sentamos na varanda para beber. O dia nos enche. Gostamos do
cinza.
***
Às vezes quando ele vira o rosto ao me ver e finge que não
estou ali. Às vezes quando sorri sem jeito. Às vezes quando me conta uma
história qualquer.
***
É o mundo dele. E é o meu. E os dois se encontram e dão
origem a esse algo indefinido que não sabemos bem onde colocar.
- O que a gente é? – ele me pergunta, olhando para frente.
Eu não sei.
- E o que a gente faz com isso? – eu pergunto, olhando para
ele.
Ele também não sabe.
E continua olhando em outra direção. Quando ele busca meus
olhos, sou eu quem desvio. Nossos mundos implodiriam nesse encontro.
***
Às vezes quando entro no chuveiro e fecho os olhos e inclino
a cabeça para a frente e sinto a água caindo sobre os meus ombros. Às vezes ao
acordar de um sonho. Às vezes esperando as plantas absorverem a água.
***
O prazer de se sentir insignificante diante do mar. A vida é
aqui, embora não haja tempo.
Somos infinitos – e existimos sempre como potencialidade de
tudo o que não fomos e não seremos. Eu sinto, ou quero imaginar que sinto.
O universo em nós. Viagem com a alma. A água que nos cerca,
nos envolve, nos preenche. A essência da existência em três parágrafos.
- Me deixa chegar mais perto.
***
Às vezes folheando as páginas de um livro. Às vezes passando
os olhos pelas palavras que já escrevi. Às vezes quando sou obrigada aceitar
que nada disso é real.
***
Todas as vezes.
2 de junho de 2019
me acorda da realidade
Um cenário épico e um guarda-chuva bem grande. Era o que
dizia no rótulo da cerveja. De tão alto, o mundo é um lugar que vale a pena.
- Um brinde às almas que vagam sozinhas.
Do alto de uma montanha. Onde
mais eu poderia estar?
***
Foi uma dessas cenas improváveis. Não era para a conversa
ter acontecido – e de repente ela se desenrolou, bem diante de nós. Não dava pra
enxergar o céu. Poderiam ser oito da manhã ou oito da noite. Lembro de tentar
abrir uma janela e não conseguir. Quando voltei, ele sorria.
- Gosto das coisas que não são evidentes, que exigem mais do
olhar.
- É preciso haver
esforço.
- Olha, reconheço essa referência.
- Prestou atenção na leitura, então.
- Sempre presto.
- Eu sei, eu sei.
- É por isso que contigo é tão difícil?
- O quê?
- Porque precisa ter esforço.
- Não tô te entendendo. O que que é difícil comigo?
- Tu entendeu, sim.
- Tá, entendi. Mas tu sabe que não é por isso.
- Eu não sei de nada.
- Já te expliquei.
- Não sei se acredito em ti.
- Por que tu não acreditaria em mim?
- Porque tu nunca me diz as coisas de verdade.
- E tu por acaso perguntou de novo?
***
Eu não tinha perguntado de novo, pensei enquanto sentia o
primeiro gole da cerveja. Comprada no mercado do peixe. Na banca de um meio
português, meio brasileiro. Era bom falar a minha língua.
- Queres mais alguma coisa? Talvez um peixe para o almoço?
- Não, obrigada. Mas eu volto amanhã, com certeza.
- Serás muito bem-vinda!
Não é preciso sorrir para ter um rosto sorridente. Como o do
Pedro, que me vendeu a cerveja. Um rosto que sorri por si e por isso faz a
gente lembrar. Me fez lembrar. Dos dias de abrir aquela porta e encontrar o
rosto que também era sorriso.
Nem sempre olhava pra mim. Nem sempre podíamos ou
conseguíamos falar. Às vezes sentia os olhos às minhas costas. Ou imaginava
sentir. E de um jeito ou de outro permanecia o rosto. A despeito de qualquer
circunstância.
Eu nunca tinha perguntado de novo. Por quê?
***
O tempo vai curar tudo. Mas e se o tempo for a doença? Não
sei, Wim. Não sei. Vendo tudo de tão longe a vida tem ainda menos sentido.
Gaivotas sobrevoam o mar acima dos barcos atracados. Uma nuvem baixa se
aproxima da cidade ao pé da montanha.
- Eu queria estar contigo.
Digo em voz alta, como se ele pudesse me ouvir. Onde
estaria? Com quem? Será que eventualmente ainda pensava em mim? Eu poderia
perguntar. Mas há tempo não dissemos nada. Foi preciso atravessar o mundo para
tentar apagar o que descobri fazer parte de mim: a lembrança daquele sorriso.
Carregamos memórias e palavras no bolso, como uma chave ou
moedas recebidas de troco.
***
Meus óculos embaçam. Ele ri.
- Pelo amor de deus, vamos pra rua.
- Vamos.
Sentamos no banquinho do lado de fora.
- Vou sentir tua falta.
- Eu volto.
- E se não voltar?
- A gente se acha de novo em outro lugar.
***
Pedro estava lá no dia seguinte também. Voltei para almoçar,
como disse que voltaria. Repeti a cerveja. A gente tem isso de repetir sensações.
Principalmente as que nos fazem voltar.
Comi na beira do mar e fiquei por ali. Duas imensidões
cinzas que quase eram uma só. Não é o lugar, é a ausência.
- Queres mais uma? – ouço os passos do Pedro às minhas
costas.
- Se tu dividir comigo.
- Não tens de pedir outra vez.
***
Me acorda, eu digo. Estás sonhando? Sonho. É muita
realidade lá fora pra gente não sonhar de vez em quando. Como posso te acordar,
então? Me acorda da realidade.
24 de maio de 2019
gestos invisíveis
O horror de saber que a vida é verdadeira.
Escreveu Fernando. Seria essa uma forma de vida após a
morte? – quando já não somos nem estamos mas nossas palavras permanecem?
Sento em um café para ler o jornal e sou um, à tarde escrevendo na varanda já sou outro e à noite, na solidão de uma taça de vinho, um terceiro. O rio que corre. Nem nós permanecemos nem a água. É a mesma água, e nunca é a mesma. Somos a mesma pessoa, e nunca somos os mesmos.
***
Depois de abraços e despedidas, as portas do ônibus fecharam
no fim da tarde. O horário de verão já tinha acabado, logo escureceu. Ele
perguntou se podia ocupar o lugar do meu lado. Claro, senta aí. Puxei a mochila
para o meu colo.
Seu espaço, meu
espaço. Naquele dia, por instinto ou desatenção, tinha esquecido de baixar o apoio de braço que divide as poltronas. Ele sentou, largou a mochila no chão entre as pernas e
reclinou a poltrona, à altura da minha. Falamos sobre as
conversas do dia, amenidades em geral, o que seria do resto da semana.
Esperávamos alguma coisa da vida ou só o fim daquela viagem?
A dada altura silenciamos, vencidos pelo cansaço e pelo embalar do ônibus. De olhos fechados, querendo dormir, sinto o toque na mão.
Abro os olhos e num reflexo encolho o braço. Foi sem querer? Vou relaxando de novo aos poucos. Ou eu imaginei? Devagar, retorno a mão à posição inicial, estendida sobre a poltrona. Eu já não estava totalmente acordada, pode ter sido um toque acidental. Quando decido que não foi nada – de novo.
Meu coração vem à boca, e eu congelo na poltrona. Ele não recolhe a mão, eu não recolho a minha.
Nenhuma palavra, nenhum movimento. Por quanto tempo? Não sei dizer. E então o impulso a que decidi ceder, colocando minha mão sobre a dele, buscando com os meus dedos os espaços entre os dedos dele. Ele aceita, nossas mãos se encaixam, e entre uma dança de dedos e outra viro o rosto na direção dele. Ele olha para mim. Não nos enxergamos, mas sabemos que nossos olhos se encontram no escuro.
O alívio de saber que a vida é verdadeira.
Esperávamos alguma coisa da vida ou só o fim daquela viagem?
A dada altura silenciamos, vencidos pelo cansaço e pelo embalar do ônibus. De olhos fechados, querendo dormir, sinto o toque na mão.
Abro os olhos e num reflexo encolho o braço. Foi sem querer? Vou relaxando de novo aos poucos. Ou eu imaginei? Devagar, retorno a mão à posição inicial, estendida sobre a poltrona. Eu já não estava totalmente acordada, pode ter sido um toque acidental. Quando decido que não foi nada – de novo.
Meu coração vem à boca, e eu congelo na poltrona. Ele não recolhe a mão, eu não recolho a minha.
Nenhuma palavra, nenhum movimento. Por quanto tempo? Não sei dizer. E então o impulso a que decidi ceder, colocando minha mão sobre a dele, buscando com os meus dedos os espaços entre os dedos dele. Ele aceita, nossas mãos se encaixam, e entre uma dança de dedos e outra viro o rosto na direção dele. Ele olha para mim. Não nos enxergamos, mas sabemos que nossos olhos se encontram no escuro.
O alívio de saber que a vida é verdadeira.
***
Foi um jeito de dizer: eu sinto também.
Tanta facilidade a nossa de imaginar o que existe e o que não existe. E, no entanto, o que agora sabíamos que existia continuou não existindo de fato. Somos reais quando existimos em silêncio?
Foi um jeito de dizer: eu sinto também.
Tanta facilidade a nossa de imaginar o que existe e o que não existe. E, no entanto, o que agora sabíamos que existia continuou não existindo de fato. Somos reais quando existimos em silêncio?
Olhos que se olharam sem se ver. Aqueles dois de mãos dadas no escuro não vieram conosco rumo à luz de outro dia. Existimos no tato, mas não sobrevivemos no mundo. O que sentimos é verdade quando sentimos cegos e mudos?
O horror e o alívio de saber que a vida é temporária.
O horror e o alívio de saber que a vida é temporária.
***
No dia seguinte não houve dia anterior.
- Tudo bem, é temporário.
- Como assim é temporário?
- Sentir é temporário.
A vida é temporária e nós somos feitos de gestos invisíveis.
No dia seguinte não houve dia anterior.
- Tudo bem, é temporário.
- Como assim é temporário?
- Sentir é temporário.
A vida é temporária e nós somos feitos de gestos invisíveis.
15 de maio de 2019
o instante em que perdemos as palavras
Entrei na sala e dei de cara com ele. Era alto demais para a mesa que ocupava, as pernas espremidas na parte de baixo. Não sabia se era visita, funcionário novo, entrevistado. Ficou me olhando, quiçá com a mesma dúvida. Soltei um oi tímido e passei por ele para chegar ao armário no fundo da sala. Nenhum dos dois cogitou se apresentar.
- O pessoal tá precisando de uma caixa dessas lá embaixo.
Essa pessoa é legal, lembro de ter pensado ao fechar a porta atrás de mim e chamar o elevador. Se ficar, a gente vai se dar bem.
Não é sempre, claro. Mas há casos. Pessoas que despertam esse instinto que no resto do tempo a gente nem sabe que tem. No segundo em que as vemos – antes de ouvir a voz, antes de saber o nome. Só uma sensação. De que estamos diante de alguém que divide algo conosco. Talvez a maneira de funcionar no mundo, de absorver a vida, de sentir tudo isso.
***
- Tu é muito parecido com o Jesse Eisenberg. Alguém já
te disse isso?
- Sim! Minha irmã!
Saímos do elevador e, na rua, descobrimos que fazíamos
o mesmo caminho de volta. Éramos vizinhos de bairro, poucas quadras separavam
nossos prédios. Quantas vezes já não teria encontrado com ele no Zaffari sem
saber quem era? Parados no mesmo lugar: olhando o preço das cervejas.
Começamos a dividir aquele caminho.
Quase todos os dias: quinze ou vinte minutos em que
vivíamos as mesmas pequenas doses de vida. Caronas de guarda-chuva. Paradas na praça para fumar. Difícil dizer em que momento aquelas amenidades e papos de
elevador se tornaram confidências. Risadas mais frequentes que antes de
percebermos acabavam em um bar. Conversas que, de repente, só éramos capazes de
ter um com o outro.
Normalmente a vida acontece quando não esperamos. Olha
aqui, ela diz: alguém parecido contigo. Alguém com quem se identificar. Um
encontro de almas perdidas cuja essência divide a mesma raiz.
***
- Eu queria muito outro cigarro. Tu não tem aí, por
acaso?
- Pior que não. Mas aquela mulher talvez tenha –
indico a outra mesa com o rosto.
Olhamos pra ela. O maço ao lado do copo e da garrafa,
largado tão displicente sobre o logo descascado da Skol. Vários cigarros ali.
- Eu não tenho coragem de pedir.
- Nem eu.
Rimos os dois.
- A gente é igual, meu deus – ele diz, ainda rindo.
- Mas tenho em casa, pelo menos.
- Bah, a gente podia passar ali na volta, então, né?
Tu não te importa?
- Capaz, vamos lá!
Fechamos a conta e saímos a pé. Tinha isso também.
Nossos caminhos, que gostávamos de percorrer a pé. Nenhum dos dois tinha carro.
Nenhum dos dois fazia questão de ter um carro. Nenhum dos dois era do tipo que
chama um Uber quando pode caminhar. Mesmo à noite. Mesmo em uma cidade como
Porto Alegre.
Mesmo sozinhos.
***
Para o coração a vida é simples: ele bate
o quanto puder. E então para. Ele fecha o livro e
coloca de volta sobre a mesa, admirado com a abertura.
- Não sei se a morte é algo que me faz sofrer, sabe?
Pra mim é algo que acontece.
- É, acho que eu encaro um pouco assim também. Uma
parte da vida que a gente sabe que um dia vai chegar.
- Claro, tu nunca quer nem espera que aconteça, muito
menos com as pessoas que tu ama.
- Mas é parte do processo.
- Exato. Inclusive, ou principalmente, pra quem fica.
Acendemos o segundo cigarro, abrimos a segunda cerveja.
Cada um jogado para trás em uma ponta do mesmo sofá de onde agora escrevo.
Falamos sobre morte, sobre amar, sobre incertezas e o que fazer da vida, sobre
nossa necessidade de isolamento, tempo e distância mesmo das pessoas de quem
mais gostávamos. Sobre os caminhos que haviam nos levado até aquele momento,
que hoje pode ser só uma projeção da memória.
O ápice da cumplicidade a que uma amizade poderia
chegar: não era mais preciso falar.
***
Até que aconteceu: a vida.
***
O tempo jorra, se espalha ao mesmo tempo em que
desvanece. Somos tragados, sempre. Começa com uma semana atribulada, mais
compromissos que o normal, às vezes coincide de tudo se concentrar no mesmo
período. A semana passa e surge uma viagem. Férias. Reuniões fora do estado. Um
congresso em outro país.
Estamos parados e o mundo gira. Damos um passo e
giramos com ele. Abrimos os olhos, e aquela semana foi há dois anos. Colocamos
em duas horas as conversas de um ano inteiro. Tu soube que vou me mudar? E a entrevista,
como foi? Mais uma semana, mais um ano.
***
Ele passa por mim, levanta as sobrancelhas e sorri sem
graça. Sem saber o que dizer. Sem saber me cumprimentar. O tempo. Correndo
indiferente entre tentativas vãs de um desespero estúpido e unilateral. Quando não há mais nem perguntas nem respostas. Nos perdemos no instante em que perdemos as palavras.
Uma definição de dor: não é preciso dizer nada porque perdemos ao mesmo tempo a capacidade de dizer e a de não dizer.
Uma definição de dor: não é preciso dizer nada porque perdemos ao mesmo tempo a capacidade de dizer e a de não dizer.
Eram
os desencontros da vida que, embora não caibam no coração, o alimentam imprescindivelmente.
Já há algum tempo, nada mais cabe aqui.
10 de maio de 2019
não é óbvio
O óbvio não é evidente.
O que procuramos determina o que é óbvio – o que queremos ver, muito menos do que o que está à nossa frente. E o que vemos e queremos ver depende de algo tão impreciso quanto um desejo. O abismo do caos. Nada é o que parece ser. Nada é o que é de verdade.
O que procuramos determina o que é óbvio – o que queremos ver, muito menos do que o que está à nossa frente. E o que vemos e queremos ver depende de algo tão impreciso quanto um desejo. O abismo do caos. Nada é o que parece ser. Nada é o que é de verdade.
***
A gente tem essas conversas como se fosse algo palpável,
mensurável. Como se fosse possível determinar sentimentos a partir de uma
escolha de palavras ou de um conjunto de ações banais.
Não é assim, eu digo pra ela. Porque a pessoa disse A então
ela quer B. Isso não existe. Talvez às vezes até seja o caso, mas a menos que a
criatura te diga com todas as letras não tem como inferir desse jeito.
Mas não adianta. Na prática, a gente vê o que quer.
Quando ele foi embora, guardei algumas coisas no fundo dos
armários e das gavetas, onde meus olhos não alcançassem. O que os olhos não veem o coração não sente. Nunca um ditado brega
fez tanto sentido. É a mesma lógica. A gente escolhe não ver pra não sentir,
mas quando queremos sentir vemos qualquer coisa. Inclusive o que não está ali.
- Porque nós não deixamos as coisas claras uns para os
outros eu nunca vou entender.
- Ah, por medo. Medo de falar, medo de ser rejeitado.
- Mas não faz sentido. Quer dizer, antes de falar tu já vive
na rejeição – ela só não foi verbalizada.
- Pois é.
- As pessoas têm medo de palavras, então. De ouvir. Isso é uma
estupidez.
- Não necessariamente das palavras, mas do que elas vão te
fazer sentir.
- Mas aí que tá – tu já sente isso. Tu já tá nessa situação.
Antes de ouvir uma rejeição, tu já não é nada.
As coisas precisam ser ditas.
***
Tenho isso, às vezes, de pensar na vida como um mapa. Uma
cartografia de existências. Cada um deixa atrás de si uma linha
pontilhada de idas e vindas, encontros, paradas, saltos e quedas.
Tantas linhas passam perto uma da outra, sem chegar a se cruzar.
As pessoas com quem não esbarramos na calçada. A colega para
quem você pensou em dizer “não sei, tem alguma coisa em ti que eu gosto, acho
que a gente se daria bem”. O idoso que sentou ao seu lado no ônibus e que teria
gostado de te contar uma história se você não estivesse de fones de ouvido. A
mensagem que não mandamos. A pessoa para quem não dissemos oi.
As linhas passam perto – bastava olhar para o lado –
mas não se cruzam.
E outras tantas se encontram sem seguir juntas. Podem andar lado a lado por um tempo e ali adiante voltam a se separar. Existe
pelas pessoas que não chegamos a conhecer certa nostalgia do não vivido, mas as
que conhecemos e perdemos – talvez entre elas vivam nossas tristezas
mais profundas. Tudo o que poderia ter sido e não foi.
Linhas que se separam. Jardins que se bifurcam.
***
- O que tu vê, afinal?
- Eu vejo o medo.
O medo de falar demais e o medo de não dizer nada. O medo de
deixar o tempo passar. O medo de não perceber que estava ali o tempo todo – só você
não viu. O medo de que a sincronia deixe de existir e em breve estejamos de
novo em tempos diferentes. O medo de olhar nos olhos e dizer: é isso que eu
quero.
Não é óbvio?
4 de maio de 2019
amar em poucas palavras
- Ele fica melhor em ti do que em mim.
Um blusão velho, desses que a gente já bateu e agora só usa
em casa. Marrom com listras brancas, as mangas já um pouco arregaçadas. Fez
mais frio do que o previsto, e o casaco que eu tinha pensado levar ficou jogado
sobre o sofá da sala.
- Até gosto mais dele agora.
Nos abraçamos no pátio na frente da casa e ficamos ali,
olhando para o céu, deitados sobre o tapete velho que estendemos na grama. É
preciso fugir da claridade para ver – para realmente ver.
- Por que a gente nunca fez isso antes?
- Boa pergunta.
Talvez o mais impressionante fosse o silêncio. A dimensão
que era capaz de alcançar. Não entre nós, porque nunca precisamos dizer muito
um para o outro, mas ao nosso redor. Sempre existe algum ruído – passos e vozes
dos outros apartamentos, os carros que passam na rua, um helicóptero
sobrevoando a cidade, o telefone, portas e janelas sendo abertas e fechadas, o
elevador, as notificações no celular que mesmo silenciosas trazem o mundo a
nós.
Mas não o mundo que naquele momento tínhamos diante dos olhos,
em volta de nossos corpos – dentro de nós. Um mundo de escuridão e silêncio que nos envolvia em
estrelas.
***
- Escolhe uma música.
Estávamos ouvindo Echo and The Bunnymen no meu quarto.
Adiando o almoço, vivendo a preguiça dos domingos nublados.
- Nothing lasts
forever.
- BAH.
- Que foi?
- Escolha estranha pra um casal que acabou de começar.
Dou uma risada.
- Tu é supersticioso assim? As coisas duram o que têm que
durar.
Anos depois ele escreve uma música: no love should last until it ends. Nenhum amor deveria durar até o
fim.
***
- Tava na parada e o cara perguntou pra onde eu tava indo, a pinta era muito estranha. I’m going to my girlfriend’s, eu disse pra ele.
- Girlfriend?
- É, ué.
Não é?
***
Cada mísero diálogo da nossa vida juntos. Construídos a partir
de uma simplicidade hoje quase impossível de alcançar. Fiquei com o pote dos
sabonetes, onde agora guardo colares.
Amar em poucas palavras talvez seja o melhor jeito de amar.
Amar sem precisar dizer.
Poderíamos ter mudado a vida um do outro. Mas não mudamos. Porque
o mundo é grande demais e a vida é um piscar de olhos.
27 de abril de 2019
lá, não sinto tua falta
Sempre me imagino ainda mais longe. A distância elimina os
vínculos.
Sobre mim uma arvorezinha que cresceu em um cômoro, mais ou menos a meio caminho entre a rua e a praia. O vento
traz o mar até mim. Aqui, um não existe sem o outro. Meu coração vai com eles:
sai do peito e segue, suave.
***
Quando não encontramos respostas, construímos falsas
certezas.
***
- Desculpa, eu não sei o que fazer.
Qualquer um de nós poderia dizer isso. Ficamos sozinhos na
mesa, os últimos colegas nos abanam do caixa. Decidimos tomar mais uma. Os dois
querendo a mesma coisa, sabendo que não vai acontecer. Fabricando minutos para
estender a noite na tentativa de que o desfecho seja diferente. Mas já sabemos
como termina. O garçom deixa a garrafa a se afasta. Sirvo os nossos copos.
Brindamos.
- Me diz o que tu pensa. Sobre tudo. Sobre
qualquer coisa. Sobre como é o mundo em que nós somos capazes de dialogar.
Sei que é possível construir esse mundo juntando todas as
coisas que não dizemos, todos os pedaços de frases pelo caminho. Talvez não
fosse muito diferente deste, afinal.
***
Se fosse para escolher um momento para compartilhar contigo,
seria esse – o prazer de se sentir insignificante diante do mar. Tu não
percebeu que foi o que eu tentei o tempo todo?
***
Escrevo no computador. Uso a caneta para os sonhos,
devaneios, desabafos. Meus cadernos levam o fundo da minha alma. A essência de
tudo que sou, sem qualquer tipo de filtro. Nenhuma ficção. Uma gota de ficção mancha tudo de ficção. Sempre penso que quero escrever
sobre os livros que leio, mas nunca escrevo. Vou lendo um depois do outro.
Chegava em casa e tentava escrever e depois ler um pouco. Depois de um tempo
decidi intercalar, porque não consigo fazer as duas coisas na mesma noite,
escrever e ler. Claro que consigo, mas sempre com a sensação de não ter feito
bem ou o suficiente nem uma coisa nem outra. Queria encarar a escrita como algo
natural, sem supervalorizar. Ao longo dos anos, acabei dando pra coisa uma
dimensão muito maior do que de fato tem. Em tudo na vida, isso nunca funciona:
ou a gente trava, ou cria expectativas impossíveis, ou idealiza o que não
existe, ou tudo isso junto. Sublinho trechos enquanto leio. Uma vez, comecei a
anotar todos esses trechos em um caderno. Tinha certeza de que iria até o fim
(supondo que existiria um fim, o que não é verdade), mas só precisei de três ou
quatro livros do Borges pra perceber que demoraria uma vida. No fundo, ainda
tenho vontade de continuar. Não sei o que faria com o caderno depois. Muita coisa
é assim na minha vida: tenho vontade de fazer, sem saber muito bem por ou para
quê. Uso marcadores de página – a ideia era ter um de cada viagem que já fiz,
mas não aconteceu. Posso ler a qualquer hora, em qualquer lugar, com uma guerra
ao meu redor, mas só escrevo sozinha. De preferência à noite. Preciso do
silêncio e da solidão. Da sensação de vazio que só é possível nesses momentos.
Há uns anos, cheguei a testar acordar cedo, escrever antes
de começar o dia. Durou três meses, e até que foi muito. Minha escrita, enfim, é solitária e noturna.
Na praia até que varia, porque lá é possível conseguir silêncio e distância
durante o dia também. A distância elimina os vínculos. Lá, não sinto tua falta.
20 de abril de 2019
me diz
- nenhuma certeza das coisas que não são palpáveis
- ao mesmo tempo, que certezas me dão as coisas que posso
tocar?
- não posso dizer que existem
- es más mio lo que sueño que lo que toco
- perdi a conta dos dias, das chegadas, de tudo
- o tempo já não me importa
- nunca adiantou se importar com o tempo
- mas é tempo demais
- represando palavras
- até quando?
- a vida inteira eu falei sozinha
- uma língua que ninguém entende
- uma língua que ninguém entende
- tu quer me ouvir?
- eu quero muito te ouvir
- qual o teu medo?
- porque eu hoje em dia só tenho medos inúteis
- e raiva também
- raiva de absolutamente tudo
- e raiva também
- raiva de absolutamente tudo
- quantas vozes habitam em nós?
- desde quando habitar se tornou um verbo?
- a gente bem sabe
- e é inútil saber
- eu não sei de nada
- bem gostaria de saber
- eu não sei de nada
- bem gostaria de saber
- me diz
- o que tu sente?
- eu deveria sentir?
- tu sente alguma coisa?
- eu deveria sentir?
- tu sente alguma coisa?
- gostaria de ter vivido em outro tempo
- porque esse que me cabe – não vale nenhum segundo
- porque esse que me cabe – não vale nenhum segundo
11 de abril de 2019
até que só reste pele
O corte do vestido também ajuda. Esses em que a cintura não
é alta nem baixa demais. Prendo o cabelo. Desço os braços devagar, passando as
mãos pelo corpo. Elas se detêm sempre no mesmo ponto.
Escuto o café fervendo no bule. O gosto das coisas que
passaram do ponto. Não por descuido: às vezes é preciso.
***
- Invejo demais essa tua vista.
Os carros pequenos lá embaixo. As texturas dos prédios,
janelas acesas. E todo aquele céu. Como uma janela pequena daquelas era capaz
de emoldurar tanto céu?
Falar da vista da janela era escancarar qualquer porta. Só
não vê quem não quer.
- Quer conhecer?
***
- Ei-la!
- Gente. É muito céu!
Posso sentir meus olhos brilhando. Como se quisessem ser
maiores do que a janela, mais do que o próprio mundo, abarcar tudo. Fico
olhando para o céu por uns instantes, sentindo a presença dele alguns passos
atrás de mim. O que será que ele pensa, me vendo de costas? E não se aproxima
por não saber como ou por ainda querer manter alguma distância?
Ainda.
Me viro e vou até a
frente da estante. Os livros bagunçados, uns sobre os outros. Porque são
tirados e devolvidos com frequência. Folheados. Vividos. Meus olhos param sobre
um Proust.
- Posso pegar?
- Claro! Pode mexer à vontade.
É aquele momento. Exatamente aquele momento. O limiar de
tudo que está prestes a acontecer. Os últimos instantes em que ainda é possível
desistir: podemos olhar nos olhos um do outro, entender que foi uma escolha
errada e sem dizer nada acabar o que não começou. Ou podemos falar um pouco
sobre o livro que tirei da prateleira, às vezes olho para as páginas, às vezes
para o rosto dele, ele pega o livro das minhas mãos, folheia em busca de uma
passagem específica e me devolve com o indicador no início de um parágrafo,
“aqui, lê a partir daqui”, eu começo a ler, nós dois em silêncio, de frente um
para o outro, dessa vez mais perto, ele me observando ler, chego ao fim do
trecho que ele apontou, engulo, “nossa”, não consigo dizer mais do que isso,
“foda, né? O cara é muito bom”, eu deixo o livro sobre o batente da janela,
olho mais uma vez para o céu e quando volto a olhar pra ele é porque sinto as
duas mãos na minha cintura, uma de cada lado.
***
Sinto a mão dele subir pelas minhas costas e se encaixar na
nuca, por baixo dos cabelos. Levo a mão que apoiava o rosto dele para o mesmo lugar. Deslizo para cima e para baixo,
fazendo um pouco de força, puxando de leve os cabelos. Arranho as costas dele, a mão
dele desce pelo meu vestido. Desvio meus lábios dos dele e começo a
beijar o pescoço. Respirando com mais força. Coloco a língua na orelha
dele, mordo de leve. Ele chupa meu pescoço. Respirações sonoras e mãos que querem abrir calças, subir por baixo de vestidos, atravessar todos os tecidos.
Até que só reste pele.
Até que só reste pele.
***
Tomamos o café que ele acabou de passar sentados na beira
daquela janela. Nossos joelhos se tocam no centro da cena. O dia é cinza e
sopra um vento mais frio. Prenúncio de outono.
- Planos? – eu pergunto.
- Nada. Só ficar lendo aí, acho.
- Coisa boa.
Bebemos mais um pouco do café em silêncio. Percebo ele
olhando para mim, mas quando viro o rosto para olhar de volta ele baixa os
olhos num susto. Dou um sorriso, mais pra mim mesma do que pra ele. Ele se
escora de costas para a janela e diz, olhando para as próprias mãos, mais para
si mesmo do que para mim:
- Posso te emprestar algum livro, se tu tiver a fim de
ficar.
***
Que arranjo é esse?, tenho vontade de perguntar. Onde no
mundo esse amor vai se encaixar? Pode mentir, desde que seja verdade.
4 de abril de 2019
uma história feita para fazer sentido
A dinâmica das coisas.
Nunca mais tinha visto um chiado na tv. E ali estava. Não
fazia qualquer ruído, na verdade, mas a profusão de pixels hipnotizante e incômoda dançava na tela. Eu não entendo por que ligo a tv.
Lá fora, escuridão. Há horas a noite venceu o que restara do
dia. Me deito na grama para olhar o céu. Poderíamos fazer isso juntos, não? É
uma coisa que poderíamos fazer juntos. E senti tua falta, mesmo que tu nunca
tenha estado aqui de verdade.
É assim, então? Sentir falta do que nunca existiu?
***
A dinâmica das coisas é essa oscilação de ritmo. Às vezes
quero tudo, às vezes não quero nada. Dias de ser do mundo, dias de desaparecer.
As coisas acontecem sem que eu faça parte delas. Mesmo
quando estou lá. Porque aquela não sou eu. É uma versão feita para eles, a
partir deles.
Quem somos só existe para nós. E quem somos nós só somos
quando estamos sós.
***
Eu canso fácil das coisas. Das pessoas. Na maioria das
vezes não dá tempo de criar um laço. De de repente ser importante pra alguém.
Porque eu nunca tenho interesse o suficiente pra ficar. Ou pra tentar. Não que
eu não goste das pessoas – eu gosto. Mas eu nunca sou alguém que vai fazer
parte da vida delas. É só enquanto as circunstâncias forem essas de
proximidade. Senão acaba. Porque eu não consigo fazer essa função da
manutenção. A não ser quando é uma daquelas pessoas que sabe-se lá por que eu
entendo que, meu deus, preciso manter essa pessoa na minha vida. E em 100% dos
casos essa não parece uma vontade recíproca. É ridículo, em suma. Por isso que
no fim o melhor é ficar sozinha. Não dá trabalho.
***
Só que ninguém entende direito. E eu dificilmente encontro
pessoas que compartilhem isso comigo, com quem eu possa falar a respeito. Sobre
um monte de coisas. Querer viver numa cabana no meio do mato ou numa casinha de
madeira na beira de uma praia vazia. Acho bem difícil estimar quantas pessoas
já conheci na vida. Mas conto nos dedos as que dividem ou dividiram comigo pelo
menos um desses interesses mais profundos. A sensação é de que todo mundo vive
“do outro lado”. Às vezes eu entro nesse outro lado, passo um tempo por lá,
bons momentos, mas em algum momento inevitavelmente preciso voltar. O absoluto
não pertencimento a um espaço onde a maioria se sente tão bem, o eterno não se
encaixar. E a gente passa a vida tentando. Mesmo. Mas ninguém entende a menos
que sinta também.
***
Qual é a tua, afinal?, eu quero
perguntar. Me ajuda porque se tu não disser fica difícil entender. De saber o
que fazer. Fico aqui tentando descobrir se vale a pena ou não dizer as coisas
que tenho vontade. Se ainda dá pra tentar ou se é melhor desapegar. Sempre
tateando. No escuro. Pisando em ovos. Tentando não escorregar. E pra quê? Nem
eu sei exatamente. Porque ficou essa coisa, assim. Não quero conversa, mas
ei, como vão as coisas.
***
Penso nas constelações que poderíamos mostrar um ao outro. E
nas que poderíamos criar. Uma cadente que teria nos levado ao espaço: eu sei,
tu sabe. Nosso jogo é de palavras. O mundo é tudo o que temos, mas nunca foi
nosso de verdade.
28 de março de 2019
ônibus
Eu queria acreditar que sim, as palavras mudariam
tudo.
Parou aí, daquela vez. E lá
se foram dois meses. E aconteceu exatamente assim – as palavras mudaram tudo.
Foram ditas, ganharam vida, ganharam o mundo. Mudaram tudo.
Só esqueci que não
necessariamente elas mudariam tudo da maneira como eu gostaria. E aconteceu
exatamente assim.
***
Tem aquelas coisas todas
de viajar de ônibus – não ter muita escolha quanto ao horário da viagem ou quem
vai sentar do lado. De repente a rodoviária nem vende mais passagens e é
preciso ir até a cidade vizinha. Com outro ônibus. Nenhum poder de escolha, mas
sempre a mesma expectativa: três horas para ler, dormir ou pensar. Três horas
inteiras.
Não sei se era uma
montanha. Não domino os critérios de classificação geográfica. Mas fiquei
pensando que a menina que eu fui não caberia em si de felicidade com tanto mato
no pátio dos fundos. Porque era o que eu mais gostava. Brincar no mato. Nem me
ofendo quando as pessoas dizem, “bicho do mato”. Sempre fui.
E do outro lado a lagoa.
Imagina aquela lagoa nos fundos de casa. Algumas das casinhas tinham um pequeno
píer. Os barcos atracados. Crianças ali nadando. Imagina. “Mãe, terminei o
tema, vou pra lagoa”. Que sonho.
É sempre assim que começa. Quando começo a sonhar acordada.
Se um dia eu tomar uma
decisão, dessas pra mudar tudo, vai ser a de morar perto do mar. Sentar na
varanda de frente pra água. Dar uns passos e estar ali.
***
As palavras.
Me disse tudo aquilo.
Alguém realmente me disse aquelas palavras.
Tenho a tendência de
achar que não é nada demais. Não é tão bom assim. Ninguém prestaria atenção. E
quando alguém elogia deve ser por educação.
Será que posso ter esse
tipo de impacto nas pessoas?
Bom, eu tive. E as
palavras ganharam vida. Escrever – conceder o sopro da vida. Tudo mudou.
***
E Marte? Qual vai ser a
primeira geração a ver alguém em Marte? Imagina o Bowie. Mas, pensando bem, que
bom ele não estar aqui pra ver isso. A fantasia da vida em Marte se baseava
justamente no fato de que não seria a nossa. Porque essa existência e essa raça
merecem o fracasso ao qual estão fadadas. E num futuro já vislumbrável
estaremos destruindo outros planetas além do nosso. Que sucesso.
Acabar com um planeta.
Pensa na magnitude disso. Inviabilizar a vida não em uma cidade, no entorno de
um rio, em uma região específica de conflitos, mas em um planeta inteiro. A
espécie que vai causar a própria extinção. Quem mais seria capaz disso?
E enquanto não chegamos
lá ficamos aqui, literalmente se matando. Por dinheiro. Porque uns
acreditam em Deus e outros não. Por quem
transa com quem. Por crenças e visões. Esquerda, direita. É de uma mediocridade, de uma estupidez.
Tem o que
valha a pena, mas no fim das contas é isso: a gente merece acabar. E bom seria
se isso acontecesse antes de estragarmos todo o resto.
***
Tudo mudou porque me
disse o que disse e sumiu. Não que antes fosse uma presença constante ou alguém
que de fato fizesse parte da minha vida. Não era. Mas na minha cabeça o efeito
seria justamente o oposto – nos aproximaríamos. Que outro traço em comum
poderia unir mais duas pessoas?
É específico demais. É
raro demais.
E ainda assim foi o que
aconteceu: o pouco contato de repente era nenhum contato, as respostas mais ou
menos evasivas se tornaram respostas de uma palavra só, sem mais como foi o fim de semana ou como estão as coisas.
Depois da enxurrada que
fez meu coração disparar – nada.
***
Esses dias passaram e
deixaram uma atmosfera estranha. Uma energia diferente no ar. Quando foi que eu
comecei a prestar atenção nessas coisas? A de fato ser capaz de sentir uma
“energia diferente no ar”? Essa sensação que às vezes surge, sem motivo, sem
explicação. Out of the blue, mesmo.
Adoro essa expressão. Teria a ver com o céu?
De repente no meio da leitura estou lendo frases soltas. Sem unir o
conjunto em uma narrativa com sentido. Porque me lembrei do vazio que ficou lá, à minha espera.
Voltar é sempre estranho. Nenhuma outra palavra.
18 de março de 2019
não nesses dias
Como, à revelia do que sabemos, prevalece essa sensação de que a vida só existe no lugar onde estamos. O sol nasce e se põe para nós. É dia ou noite. Inverno, verão. Chove ou faz sol. Mas sempre onde estamos. O resto do mundo – a cidade vizinha – existe numa espécie de imaginário paralelo. É, mas não é. Não nos toca. Não nos pertence o que não nos alcança.
Não cabe a nós, o mundo. É demais.
As folhas dessa árvore têm uma cor e uma textura impossíveis. É um tom de verde como tantos outros que reluzem ao sol e no entanto de todas as árvores que me cercam é dela que não consigo tirar os olhos. É a árvore da minha imaginação quando penso em desenhar uma árvore. Que bom não fazer tanto tempo desde a última vez em que desenhei uma árvore.
A gente cresce e fica assim: imbecis. Todos nós. Não merecemos o mundo, como espécie.
Tem um canário amarelo que aparece de vez em quando. Um canário amarelo na árvore da minha imaginação. Como funcionam as pessoas que têm coragem de manter pássaros em gaiolas?
Ele está ali, cantando. Vento. Tanto que a rede chega a balançar de leve. Estou prestes a virar a página e me dou conta de que não lembro uma linha sequer. É literal, mas bem poderia ser uma metáfora. Sempre acontece. No sentido literal e no metafórico. Pensamentos que começam a jorrar de todos os lados, pensamentos que eu nem sabia que era capaz de pensar. E não param. Mas também nunca se completam. Um pedaço de uma ideia. Duas ou três frases soltas. A lembrança do ralo do tanque que preciso arrumar. A entrevista que acabei de confirmar. A pessoa com quem gostaria de falar sobre tudo isso. A pessoa que eu gostaria de ouvir. Todos os dias.
Os vizinhos dos fundos e a batalha pelo som mais alto. As mesmas músicas em ordem diferente. O dia inteiro. Não sei se leem ou não. Se dormem. E só consigo pensar nisso como sintoma da incapacidade de toda uma geração de ficar em silêncio. De ouvir os próprios pensamentos. É medo?
Porque dá uma ansiedade. De repente pensar em tudo. Inclusive tudo em que não se gostaria de pensar.
O canário voou. Outros dois passarinhos se molham na pequena poça que a mangueira formou na grama. Devo aceitar? Tudo parece tão distante. Irreal. É o que acontece. Com as coisas e com as pessoas. Quando estamos distantes. Será que também pensa no que estou fazendo agora? Enquanto eu penso. Uma presença leve que ilumina tudo. Soou como uma despedida. Vamos nos ver de novo?
O que vou dizer na entrevista? Não existe botão de voltar. Arquivar. Deletar. É a vida, acontecendo de novo. Mas não nesses dias. Não era para acontecer nada nesses dias.
Um mar tão inquieto que só o próprio mar poderia acalmar.
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