19 de dezembro de 2013

o calor

O calor que fazia naquele dia de dezembro era opressor. Como se a massa de ar quente e abafado que se espalhava por toda a cidade, ao entrar em contato com o corpo, pressionasse-o contra si próprio, como quatro paredes que diminuem de tamanho até que não se possa mais se mexer ou respirar. O nariz sangrava ar quente e poluído em excesso, e era preciso andar com um tufo de papel higiênico para que o sangue não escorresse. O calor oprime. Não há senão o movimento mecânico de caminhar e o suor, e a cidade ao redor é um borrão de verão. O incômodo da tagarelice aguda das pessoas esperando para atravessar a rua grudadas às suas costas, deem um passo para trás, ninguém chega antes por um passo.

Você pode se afastar um pouco? Está quente, e tem bastante espaço na calçada.

É bom manter a distância.

E quando o sinal abre e os segundos verdes começam a contar, não há de novo senão o mesmo movimento mecânico outra vez. Enfim se afastar da tagarelice das pessoas grudadas às suas costas. Pareceu uma eternidade. E o carro que vinha pretendia furar o sinal, mas bastava seguir em frente. Um passo depois do outro. Reto rumo a qualquer lugar longe de qualquer lugar. Foi o canto dos pneus em uma freada brusca que só os outros ouviram. Não foi um atropelamento, mas antes tivesse sido.

E se existir uma vontade de morrer? É possível que seja real?

Desejo de não estar, não mais, traduzido pelas batidas insistentes em uma porta que não abre, pela inércia de um corpo que agora é só corpo, na ausência de certeza.

O silêncio, constrangedor, caía sobre a sala como uma onda, preenchendo todos os espaços entre as dezenas de bocas que permaneciam fechadas e olhos que se agitavam nas órbitas procurando um refúgio na cena. Um quê de decepção estampou-se no rosto do homem à frente que, em um só tempo resignado e persistente, como que para punir os semelhantes calados optou por prolongar o sofrimento e seguiu falando. Nada mudou quando a porta foi aberta e todos passaram por ela sabendo que não voltariam.

Você pode me desculpar? Falar não é do meu feitio.

A água quente escorrendo sobre as duas cabeças, percorrendo os corpos colados. De quando em quando, gotas esparsas insistiam em desobedecer o fluxo e correr vagarosas, deslizando por uma bochecha, um ombro, prendendo-se nos pelos do peito de um, demorando-se a descer entre os seios de outra. Silêncio, abraço e silêncio. A sequência de que dependia aquela união era a mesma que separava. Chuveiros são bons porque não deixam ver as lágrimas.

Você pode levar isso? Eu não quero olhar pra isso todos os dias.

É bom não ver.

Na rua, o calor daquele dia de dezembro era opressor. Cada passo, dado pela única intenção de sair do lugar, era um passo morto, e o lugar permanecia o mesmo. Mantinha-se; mantendo sentimentos e também desejos. Na esquina, o aglomerado de esperas. Não foi desatenção o que só os outros ouviram. O barulho surdo, segundos em que o mundo deixou de ser mundo. O sol e o asfalto e o gosto de sangue. Andar, até que não se possa mais se mexer ou respirar.

Você pode sair de perto de mim? Está perto demais.

1 de dezembro de 2013

o erro de imaginação

Sobre como estamos sempre dizendo adeus:
- Adeus.

Se eu pudesse escrever em acordes, e botar no texto os sons que dizem o que não é possível escrever, em palavras invisíveis e sonoras que permitiriam ouvir a quem lê, então talvez eu pudesse escrever sobre como é difícil dizer adeus.

Às vezes é preciso dizer. Que seja assim na vida e nos textos como nas canções é um querer distante, como ilíadas e odisseias. E à medida que a tinta acaba, e não há mais o que dizer ou razões pelas quais continuar, é preciso deixar ir.

Você diz que sou Borges, e para mim o amor não pode ser outra coisa senão o semblante sorridente de Borges. Como abrir mão de algo tão belo? Mas não há resposta possível. Para nós como para nossas perguntas, que então permanecemos: silêncio.

Vendi minha memória para nunca segurar sua mão outra vez. O mundo a levou quase de graça; uns poucos momentos, flashes de alguns meses e nada mais. Em troca, me deixou essa atroz consciência. Nunca seremos outra vez.

Você, que me lê, consegue perceber o que eu não digo?

Me lembro sempre das coisas que gostaria de dizer. E nesses momentos tenho a sensação de que poderia encher todos os livros do mundo. Se chove o barulho já não machuca como antes; e se as palavras não vêm eu sei que há muito que não pode ser escrito. Para algumas sensações - certos conjuntos de sensações, combinados com momentos específicos, atrelados a uma luminosidade, temperatura e humor, ligados a sons e pensamentos passados naquele instante - um instante único no espaço e no tempo - não há correspondência escrita.

São anos de não ditos que um dia serão eternidade. Com você me tornei o que mais odiava. A insegurança de dizer adeus que acumulada fazia de mim um apêndice. Onde está você? Até assumir o último adeus.

Amor é quando as mãos se tocam pela primeira vez, e não os rostos, as bocas ou as línguas. Deixamos nossas taças sobre a mureta para sentir. Poucos beijos são capazes de superar o primeiro. E as mãos se reconhecem porque agora são as mãos de um casal que não é nenhum outro. Um vestido, uma camiseta, óculos e sorrisos, dois.

Um. Você tirou de mim minha capacidade de me apaixonar. Dois. Eu ainda fico feliz por vê-lo feliz.

Quando a vida, aos poucos, vai sendo substituída por outra coisa, é difícil expressar mudanças. Não há mais nada, se um dia houve. Não há o que garanta a certeza, ou qualquer certeza, se não sou a pessoa que imaginei que seria ou se sou exatamente o que imaginei.

Talvez o mundo todo seja um erro de imaginação.

Acordo da vida lendo no inverno. E bem longe de mim escrevo as últimas palavras. Sobre como é difícil dizer adeus. Que seja assim na vida como nas canções. Para sempre sonho, para sempre mentira.

27 de novembro de 2013

o pior

Veio perguntar se eu tinha lido um artigo polêmico publicado naquela semana. Sim, eu li. Achei demais, na verdade, o cara tirar com a cara das pessoas desse jeito. Uma galera ficou ofendida, foi divertido.

As conversas vêm e vão. Um encerra, outro puxa assunto, e os assuntos variam ou se repetem, mas o que fica é o ato do diálogo em si. A comunicação interpessoal mediada por computador. É real? Quando há tempo para pensar na reação que, de outro modo, seria instantânea e não digitada, apagada, pensada, reformulada. O que dissemos é verdade? O que dissemos tem significado real?

Dias antes, até horas antes, eu pensava nele. Como foi o show? Terminou o projeto em que vinha trabalhando? Amenidades, curiosidades amenas a respeito da vida de alguém cuja presença em sua própria vida já não existe ou já não é presença.

Em algum momento do filme, o personagem começa uma fala: "I've got a feeling...". Ao meu lado, ele completa: "that tonight's gonna be a good night". Na última fileira do cinema, em uma noite de sexta-feira, nós rimos baixinho. E aquela risada comum talvez significasse tudo o que não sou capaz de expressar. Os sons do corpo, a felicidade que está em um porque está no outro e vice-versa. Dividir.

Caminhando de volta, nossas mãos se tocam com o movimento para-frente-para-trás dos braços e, quase instantaneamente, como se tivéssemos nos dado conta de algo fora de lugar, seguimos o caminho de mãos dadas. Podia ouvir a respiração dele enquanto falava. Gostava de falar. Éramos puro contraste.

Por mais que você tenha escolhido esperar sempre pelo pior, o pior nunca será tão ruim quanto você precisou imaginar que talvez ele seria.

Talvez não haja mais o que dizer sobre nós. O pior. Talvez sejamos só marcas passadas. Ou o melhor. E pensar nisso me toma atônita enquanto tomo vinho - será? É um som insistente como o ponteiro dos segundos do relógio que está ali tiquetaqueando todo o tempo de todos os dias e poucas vezes é percebido. Você diz que nós somos as pedras onde as ondas estouram e eu quero que sejamos as ondas. Você diz que eu sou sensacional e eu não quero ser sensacional, quero ser sua.

Em algum momento, talvez na volta de uma formatura, talvez na noite em que somos obrigados a decidir como pagar as contas, a vida trata de mostrar que a poesia e o lirismo do amor lido não existem. É carne, é sexo, é prazer e é sentimento, mas não é poético. E procurar na vida essa poesia é desperdício.

Gostaria que tivéssemos nos conhecido agora. Agora: assuntos em comum, mais anos, mais rugas, mais saber o que dizer. Ou não: talvez nuca haja um saber o que dizer. Mas agora: livres de quaisquer que fossem as amarras daquele tempo que, paradoxo, era mais livre. Hoje somos outros e poderíamos ser um para o outro.

Ferro e vinho. É fácil se esconder, é fácil não dizer. O difícil é falar. Queria que tivéssemos nos conhecido agora.

30 de outubro de 2013

a cidade

É engraçado, quando dizem o que você sempre quis ouvir, mas não vem da pessoa esperada e nem você consegue gostar de ter ouvido.

Nos olhos ao redor e nas mãos que não param de teclar – as teclas do teclado, as teclas do telefone, as teclas do celular, todas as teclas – está um futuro devir. Eles me olham, eu olho, e ao nos olharmos sabemos que eu não deveria estar aqui. Esse não é o meu lugar.

O caminho de subidas pelas ruas irregulares de Porto Alegre, sempre tão ruidosa, mesmo quando é silêncio. A máquina de escrever espera, paciente. Então ouço os vizinhos gritando – eles brigam porque deixaram a vida passar sem passar com ela. Caem os prendedores, os pelos e cabelos.

Há meses ensaio um e-mail que nunca enviei. Mentalmente. Me diz, é bom? Vale a pena tentar? Eu tenho chance? Ninguém além de ti poderia dizer. A única possibilidade de Porto Alegre, na única rua possível. Estamos no centro do universo, onde nem Deus seria capaz de estar. Me diz, é bom?

Ando distraída porque gostaria de nunca chegar. Meus destinos nunca são. E passos arrastados, cabelos voando, olhos escondidos atrás de óculos escuros, indo e esperando não chegar. Porque nós nunca estamos onde gostaríamos de estar, ou somos o que gostaríamos de ser. É sempre outro lugar.

No norte do continente, mas sou latina. No sul, mas longe. Nossos ombros carregam agora um mundo pesado demais. O filete de sangue que escorre da testa, como lágrima vermelha, tingindo o caminho até a lateral da mandíbula, até pousar sobre o branco da camiseta. Para onde vamos depois de Porto Alegre? Quando enfim vencermos essa cidade, para onde iremos?

Todas as árvores não dão conta do ar que eu preciso. As ruas não dão conta do espaço e a língua que falamos aqui não é capaz de dizer o que eu quero. Nas calçadas tortas ficam as marcas de passos infinitos. Todos os dias aqui a cada dia mais longe. O tempo estende a distância entre o que sou e o que sou obrigada a ser.

Escrevo o que preciso para sobreviver. E manter a sanidade em uma cidade sem vida. Tuas mãos me chamam sempre que me lembro delas. Teu rosto ao lado da janela. Mas não há nada além do vidro. Nosso mundo é aqui dentro.

Me diz, é bom?

26 de outubro de 2013

a madrid dos teus sonhos

Ano depois de ano. Tudo o que aconteceu não daria mais que algumas linhas. Como pode ser assim, milhares de dias que, em livro, não seriam nada além de tempo morto? As esperas na rodoviária, os caminhos até a faculdade e o trabalho, as noites ocas, os dias que são só dias depois de dias, sucessão de nadas. Não é tédio, não é ócio; são todas as coisas que você faz sem saber por quê. As convenções sociais, as obrigações sociais de uma sociedade sem passado, presente ou futuro. Seres humanos que se acreditam no controle de suas vidas, que julgam ter uma vida quando em verdade o que fazem é passar com o tempo, envelhecer rumo a lugar nenhum. Tantos lugares, tantas possibilidades, tantos sonhos - todos potência, em suspenso, porque nunca serão. E como poderia ser diferente?

Talvez por isso não seja feliz. Talvez por isso felicidade, para mim, seja um conceito tão abstrato e impalpável quanto é para outros algo cotidiano, que eles podem sentir e quase tocar todos os dias. Me deixei ser presa nesse modo de vida que alguém decidiu padronizar, ganhe dinheiro e quanto mais melhor; nessa rotina medíocre e vazia, trabalhe, depois vá pra casa e se comporte, não seja diferente. Minha ideia de vida é outra coisa. Não mais ou menos do que isso; diferente. Difícil de imaginar porque ultrapassa a membrana desse microcosmos criado pelo homem.

- O que tu acha, Dani?

O personagem que pensa em qualquer coisa exceto na única em que deveria estar concentrado e é puxado de volta pelo chefe ou pelo colega impertinente. No telão estava a última versão do layout de uma das nossas peças. Acho ótimo, os elementos estão bem dispostos, as cores conversam, talvez pudesse aumentar um pouquinho a fonte, ali no canto direito, isso, mas é detalhe. Todos sorriem, balançam a cabeça e é isso, decidido, podem imprimir. É só dizer o que eles querem ouvir.

São oito horas. E eu me lembro de quando diziam que calma, só piora, e eu chegava a pensar que podia ser pessimismo. Imagina, não deve ser tão ruim assim. Não é. É pior. Todos os dias tentando mostrar a si mesmo e aos outros que você está presente, está fazendo o que precisa fazer e está fazendo direito, você é competente e profissionalmente satisfeito. Ninguém quer por perto alguém que não se encaixe.

*

Parei para comprar cigarros e estava sem dinheiro na carteira. Paguei com o cartão e fui até o caixa retirar. Umas dez pessoas já estavam na fila. Atrás do caixa do meu banco e da pequena imensa fila, ficava um caixa 24 horas. Saí da fila, troquei o cartão e saquei não uns trocados da minha conta, mas o dinheiro da poupança. Porra, ao diabo com esses limites de valor. Praguejei, mas a tela inerte não faria nada por mim.

Você assiste a centenas de filmes, lê centenas de livros e ouve centenas, milhares de músicas. Você imagina como seria sua vida se. Se tivesse nascido em outro no lugar, se fosse outra pessoa, se fosse gay, se fosse hétero, se fosse rico, se fosse pobre, se fosse finlandês ou ucraniano, se tivesse escolhido outro curso, se tivesse vendido o carro, se tivesse pegado o cara do bar, se falasse o que pensa e fizesse o que quer. Mas quando você realmente faz?

O mesmo lugar vazio, a mesma cidade morta.

*

Voltei para Madrid. A Madrid de verdade mais do que a Madrid dos meus sonhos e das minhas lembranças, mas ainda Madrid. Lá estavam todas as plazas, todas as calles, todos os nomes das estações do metrô que eu tanto amava. A cidade podia ter mudado, porque cidades mudam e mudam sempre, mas a sensação era a mesma dos anos atrás. O sentimento de pertença que poucos lugares oferecem sem exigir muito em troca, plenitude, aqui é meu lugar.

Em um seminário de literatura russa, conheci a Ana. A cadeira ao lado dela parecia a única vazia, comentários sobre os palestrantes, livros, escritores, pessoas sem noção que faziam perguntas ainda mais sem noção, se é que isso era possível, e no final ela me chamou para ir com ela e os amigos a uma festa qualquer na noite seguinte. E porque eu normalmente não iria resolvi que iria.

Eram pessoas, como diríamos, geniais. Gente com quem você se diverte sem fazer esforço; os rostos que surgem quando você lembra dos dias bons, das experiências que valeram a pena, das noites inesquecíveis. Ramón e Juan eram gêmeos e donos de um café, Antonio estudava arquitetura, Lena trabalhava em uma floricultura e Ana fazia o mestrado em literatura.

Saímos da casa dos gêmeos, onde começamos a beber, e já chegamos altos ao lugar na festa, uma portinha pequena demais que abria para um lance de escadas até o salão principal da casa. Empolgados, pegamos nossas bebidas e dançamos uma longa sequência de músicas até Lena decidir que precisava ir ao banheiro.

Eu tô completamente bêbada, disse rindo e tentando não cair do banco, em português mesmo, que àquela altura idiomas já não faziam diferença. That makes the two of us, a voz pastosa da Ana respondeu em um inglês carregado de sotaque espanhol. Ficou sorrindo e olhando pra mim, o batom vermelho já desbotando nos lábios. Encarei meu copo por um instante, como se procurasse nele algum conselho, um vá em frente ou pare por aqui, e, quando me voltei, nos beijamos. Paramos. Rimos. E nos beijamos de novo.

Katy Perry de leque e vestidinho curto, I kissed a girl and I liked it, Ana e eu, nossos seios e vestidos, nossas coxas, línguas e cabelos, mutuamente se tocando, exalando prazer.

Bom demais para negar, a música continuava a tocar na minha cabeça. Ana me convidou para ir à casa dela e porque normalmente eu não iria eu fui.

Pele na pele, as carícias maliciosas que arrepiam nossos pelos. Querida, não vamos para nenhum outro lugar, hoje é agora e esta va a ser la mejor noche de su vida.

A manhã é ensolarada e fria. Amanhã é hoje. Vida em toda parte na Madrid dos teus sonhos.

*

É claro que eu vou voltar. Vou voltar porque voltar costuma ser o que resta no final. Estamos sempre voltando, afinal. A vida é voltar, afinal. Mas por enquanto, por enquanto estou aqui. Amanhã é sempre hoje.

14 de outubro de 2013

o porre

Passava da meia-noite quando chegou, depois de um dia inteiro de espera no aeroporto para enfim pegar o penúltimo voo disponível. As pessoas indo de um lado a outro arrastando malas de rodinha, carregando sacolas de couro, procurando celulares que não paravam de tocar, dando a impressão de que eram importantes, sem ser. Um se sentir executivo, por circular naquelas salas e saguões, incontáveis cadeirinhas azuis, telões de voos atrasados e espera sem fim.

De mochila nas costas e carregando uma mala maior e mais pesada do que em teoria seria permitido não despachar. Olha o tamanho dessas malas, o rapaz-jovem-adulto da fila ao lado anuncia a uma comissária que o ignora sem pestanejar e fecha a tampa do bagageiro. Um cachorro mais à frente e uma criança mais ao fundo e um voo de cinco horas.

De volta, a cidade aguardava com a única recepção que lhe seria possível. As ruas vazias, vagamente iluminadas por luzes mórbidas de necrotério, nenhum sinal de vida noturna, ou de qualquer forma de vida, em parte alguma. As luzes do apartamento, a nova camada de poeira que se formara nos dias em que estivera fora e desfazer a mala, com mais esforço do que naturalidade. Dormir, depois de uma semana em que dormir não passava de uma lembrança de algo que um dia fora possível.

O sábado acordou nublado. Um meio-dia que a abundância sonora da obra dos fundos não permitiu ser meio da tarde. Um dia morto, porque dia-nada. Nada além de deixar o tempo passar entregando-se ao nada. No mesmo canal da TV passavam as mesmas reprises matinais dos mesmos seriados. Pensando em tomar leite com uma fatia de bolo ou biscoitos, voltou da cozinha com uma garrafa de vinho. 

Se a memória fosse um dispositivo que pudéssemos controlar, e apagar e armazenar e modificar dados conforme a conveniência, talvez não fosse preciso se alimentar de álcool. Não para esquecer; se beber de fato nos fizesse esquecer a vida – também seria muito fácil. Para não pensar – por algumas horas, nas coisas que disseram, no que não se deram ao trabalho de perceber, na frustração diária, no trabalho vão, no querer outra coisa e outro lugar que vem das entranhas e toma conta de tudo.

Eu sou humana. Repetia como se precisasse repetir para acreditar. Sim, você é um deles. Hostil, preconceituosa, falha, ambígua, tola, insignificante, como todos eles. Estava fora de alcance entender o que quer que precisasse ser entendido enquanto o nível do líquido descia na garrafa. Ali era só o sufocar da dor, como nas músicas bregas de corno. E se fosse por um par de chifres a dor não seria o que era ali.

Merecia um porre. Um porre homérico, como nas legendas de fotos. Mais, um porre solitário. Só sozinhos somos capazes de acabar com dores que são nossas. E nos acessos de raiva, estresse, desilusão e falta de fé na vida, a autoconsciência que vem em uma crise de choro convulsivo. Chorando, lembrava-se de quem era. Em um milésimo de segundo todos os erros e acertos cometidos a vida inteira. Chorando, a consciência de si.

O dia passou e em seu encalço arrastou para o passado também o vinho. Mais uma vez, o inevitável não foi evitado. Antes de se deixar adormecer no sofá, o fundo é solidão, mas a superfície é o inferno, o excerto que a mente viciada já entoava automaticamente. Dormir com a voz que não era sua nas palavras que havia adotado.

O domingo acordou nublado, pouco depois das sete. Mais um dia morto, agora em pleonasmo. Sem ressaca, como se a vida dissesse: sem arrependimentos.

1 de outubro de 2013

a imagem

Sonhei que tinha um trabalho novo. Sonhei com uma praça circular, pequena e coberta de areia e com árvores e redes, onde acontecia a melhor festa de carnaval da região. Sonhei que era noite e estava infeliz. Sonhei que sentava para chorar no meio fio e ele me oferecia um cigarro. Sonhei então que não conseguia encontrá-lo, enquanto toda a gente dançava ao redor da fogueira acesa no centro da pracinha. Sonhei que me atrasava para o trabalho novo depois de ter esquecido e ido até o trabalho antigo. Sonhei que ele tocava minha mão. Sonhei que esperava impaciente que as pessoas ao redor saíssem e nós ficássemos sozinhos. Sonhei que ele sorria.

Acordo todos os dias com a boca seca e um gosto amargo. Palavras são sonhos que não deram certo, sonhos são narrativas não escritas. Sinto sede e preciso beber água. Não durmo sem um copo d'água ao lado da cama, preciso conferir o despertador algumas vezes, tapetes tortos e respingos ao redor da pia me incomodam profundamente e o verão é algo que eu gostaria de poder evitar. E nada disso importa quando acordo. E o dia diz, mesmo sem que eu abra as cortinas, é um sonho, é tudo mentira. É difícil preferir estar acordado quando se está dormindo.

Qualquer alegria vem com um gosto agridoce. E a vida está ao avesso quando, caminhando, é sonho. Ouço vozes que opõem sonho e realidade, como se dissociáveis. O sonho inventado e a realidade vivida, uma trincheira ou um abismo, linhas paralelas. Se os dias forem sonhos, o que será o resto?

Eu poderia dizer por quê. Ou poderia mentir. Eu poderia dizer qualquer coisa, menos a verdade.

Há uma imagem que não sei se sonhada, imaginada ou real. Um conceito inominável que une sonho, imaginação e realidade, talvez seja essa a natureza de tudo. E daquela imagem: um instante, fração, fragmento, fotografia. O carro ia passando, e o rosto no sol, suado, cansado, sorria procurando as chaves em frente à porta do prédio.

- Qual é a rua? Essa?
- Isso, a outra.

Deve haver um registro em algum lugar. No livro de alguém. Um retrato de aparência ferida. O sagrado e o profano, o prazer e a dor. O que posso dizer quando estou ao lado dele?

Aquele livro, e agora não lembro quando foi que falou dele, se num e-mail, numa entrevista, na volta do bar. Eu li, e há muito tempo que não lia algo tão intrigante - e que me dissesse tanto, e que me movesse tanto. Ou talvez eu já tenha lido com o olhar direcionado, porque foi indicação tua. Mas não importa. Queria dizer que é difícil dizer. Pra pessoas que mal se conhecem, poucas vezes se falaram. Mas pra mim - eu sei - há algo muito mais forte. Um laço invisível, de uma relação impalpável, de palavras lidas e escritas, de sentimentos compartilhados, das histórias que contamos. Divido contigo essa consciência e necessidade, esse escrever tão difícil de definir. Não sei de que forma: eu te amo.

Um amor que não existe. O rosto que eu procuro, todas as noites em todas as ruas. Objeto de um sonho, nunca sujeito de uma vida.

Eles dançam, braços percorrendo costas, cinturas e quadris. As mãos tocam os corpos, que balançam ritmados, numa sintonia própria que foge à corrente do mundo. Eles sorriem e olham um para o outro, ao mesmo tempo ofegantes e incansáveis. Há ternura e felicidade em um casal que dança, e toda a música do mundo não parece suficiente para a dança que eles dançam.

Sonhei com a vida e acordei. Sonhei com ele, como se o tivesse amado.

1 de setembro de 2013

a primeira frase

A primeira frase não existe. Antes da primeira maiúscula do primeiro parágrafo não há nada e depois dela outro mundo ganha forma. É o ponto de partida de algo muito maior, e por isso não é nada. A sentença bate no pensamento que cospe em palavras: tudo vai virar uma coisa só.

Tudo vai virar uma coisa só.

Conheço de cor o trajeto do ônibus: as curvas, umas mais acentuadas, e é preciso firmar o corpo para não encostar na pessoa da poltrona ao lado, as sinalizações que obrigam o veículo desajeitado a parar, o intervalo aproximado entre elas, as conversões, as subidas e descidas da estrada. São duas horas, às vezes duas horas e meia, de um caminho repetido à exaustão que já não traz qualquer surpresa. As paisagens, também sei de cor. De coração, na origem do termo, que o inglês sabiamente não trocou. Sei onde estou sem precisar abrir as cortinas, sem precisar abrir os olhos.

A mesma viagem. No começo tinha o gosto das novidades. Entrar no ônibus significava estar à mercê de inumeráveis possibilidades desconhecidas - qualquer um poderia sentar na poltrona ao lado. E de alma aberta ao acaso acabei conhecendo tantas pessoas, tão diferentes entre si quando eu delas. Um homem de sobretudo que falou sobre como é incrível que sejamos sete bilhões e nenhuma impressão digital seja igual a outra. Um tatuador com os braços fechados, alargador na orelha, piercing no supercílio e uma filhinha de cinco anos com quem troquei de lugar para que pudessem sentar lado a lado. Uma dona de loja de uma das principais avenidas da cidade. Um soldado do Amazonas interessado em casamento. Um rapaz do interior que sempre pegava o ônibus às segundas de manhã cedo com a mesma jaqueta de couro preto.

Eu costumava ocupar meu assento na expectativa de quem conheceria, à espera de uma nova história que por algumas horas penetraria a minha. Não demorou muito, porém, para toda a falsa mágica se desfazer. Com o tempo, o corpo envelhece, as cores desbotam, os sapatos perdem o verniz. Eu era, então, uma ranzinza em corpo jovem, que se aboletava na poltrona, puxava as cortinas, virava as costas para o resto do ônibus e do mundo, fechava os olhos e dormia, tentava ou fingia.

No último dia do último mês, cheguei às sete da manhã. Eram sete da manhã, mas a escuridão era tamanha que poderiam ser sete da noite. No horizonte, um barco cruzou o rio até desaparecer de vista. Quando começou a clarear, o céu mesclava o azul com nuvens cinzas, como se listrado. Não havia nada ali que me prendesse, absolutamente nada que me fizesse ficar e no entanto nada que me fizesse ir, nada que insinuasse em mim os movimentos decisivos de ir embora. Fui e voltei e não poderia ser mais infeliz por voltar. Na cidade que é a personificação de prisão, atraso e infelicidade. Na cidade onde tudo o que você vê são os outros lugares em que poderia estar.

Parei de tentar há meses. Outra vez no ônibus, fechei as cortinas e me escorei, da maneira mais confortável que o estofado da poltrona permitiu. Sem prestar atenção nas pessoas que aos poucos entravam e se acomodavam, tirei um chiclete da mochila, pensando em refrões. Dos refrões da vida, os momentos de explosão de felicidade a que todos se entregam de prontidão. Os refrões, que dificilmente são a primeira frase ou a primeira estrofe. Estão no meio, onde a vida deveria acontecer.

E eu pensava nos refrões quando um homem ocupou a outra poltrona. Mais velho, mas jovem. Trazia a barba levemente espessa, uma mochila preta e um livro gasto. Não consigo ver o título nem sou capaz olhar diretamente para ele, que depois de sentar procura a página em que havia parado. O ônibus sacudia pela estrada, e quase uma hora já havia ficado para trás quando percebi o movimento dos olhos, que àquela altura já não estavam nas páginas do livro e fixavam a minha direção.

Se eu virar, e olhar nos olhos dele, então o que vai ser?

Sempre haverá refrões. Em todas as buscas diárias por nós mesmos. E se nos buscamos é porque ainda não nos temos e estamos atrás do que acreditamos que devemos ser. Milhares de anos vividos em nostalgia e esperança do que não será, porque nada pode ser. Tudo apenas é. Foi a primeira frase, foram os refrões e foi tudo o que no fim vai virar uma coisa só.

27 de julho de 2013

a sombra

Olho minhas mãos. Estão secas e envelhecidas. Os dedos compridos levemente nodosos que se encaixam em um conjunto já não tão belo. Pequenas manchas se espalham pelo dorso, e as veias aparentes não ajudam. As mãos denunciam os anos mais do que qualquer parte do corpo.

O indicador e o dedo médio, gelados, prendem um cigarro pela metade, e o resto é inerte. O ar gélido da manhã bate na superfície das minhas mãos e rosto e por ela consegue penetrar todo o meu corpo. O vento sopra preguiçoso, mas é o bastante para reavivar o frio há muito esquecido.

Paris ao meu redor segue sua rotina de dias cinzas, e a praça em que estou é esparsamente ocupada. Além de mim, um mendigo sentado ao lado de um carrinho de supermercado e uma senhora com um livro. Ocasionalmente, mulheres e homens em trajes esportivos passam correndo, uma mãe com carrinho de bebê, pessoas indo em direção à estação do metrô.

Em certos dias cinzas do inverno, a cidade é um convite ao frio. E fumar em Paris nesses dias é realizar a própria imaginação. Deixar-se consumir pelas temperaturas geladas do inverno europeu em um misto de satisfação e sofrimento, puro masoquismo. O frio e o cinza acolhem os que sabem se deixar acolher. Aprendi a língua e os hábitos dos franceses e, por repugná-los, fiquei.

No meio da praça, um chafariz desativado ocupa o centro de um desnível circular contornado pelo assento de pedra onde estou. Acendo outro cigarro, pensando com desgosto nos anos que deixei a vida levar de graça. Pego o caderno no bolso interno do sobretudo e começo a escrever. Era jovem o suficiente quando descobri que escrever era mais do que rabiscar palavras no papel, e mesmo assim essa descoberta levou mais tempo do que eu gostaria. Quase tudo levou mais tempo do que eu gostaria. Escrevo para remediar a depressão e os problemas existenciais e para lembrar que existo. Para provar a mim mesmo minha própria existência.

E enquanto escrevo senta à minha frente, do outro lado da fonte, uma mulher de meia idade. Usa óculos, tem cabelos castanhos curtos e uma manta vermelha para proteger o pescoço. Ela fica parada por alguns minutos, olhando para o que pode ser qualquer lugar mas é o nada, até que começa a revirar a bolsa. Tira um caderno e um livro que começa a folhear e, quando aparentemente encontra a página que procurava, abre o caderno para escrever.

Não sei nada sobre essa mulher que escolheu o mesmo lugar que eu para fazer a mesma coisa. Ela fala inglês no celular sem qualquer traço da língua local, e quais caminhos a trouxeram para cá eu não sei. Ela era jovem quando descobriu que não poderia viver sem as palavras, escolheu a profissão errada, fez muitas coisas de que não se orgulha ou sente saudade, desperdiçou chances ao longo dos anos e por medo de ficar sozinha rodeada pelos rostos conhecidos que faziam parte de sua vida escolheu a solidão em um país odioso.

Nossas mãos contam histórias. E enquanto ela escreve o que só posso imaginar eu escrevo sobre dias que por acaso me vieram à memória, através da imagem de uma desconhecida. Finais de semana adolescentes em uma cidade e um país que há muito não são mais meus. Companhias duvidosas com quem percorria a noite e ia a lugares ainda mais duvidosos. Apagar em banheiros de estranhos, atravessar a cidade e chegar em casa pela manhã com a sensação plena que só tempos como aqueles poderiam proporcionar: felicidade. Todos esses dias são marcas de um passado tão distante do que eu sou agora que é difícil mesmo repassá-los em pensamento - puxar da memória algo que possivelmente nem esteja mais lá. A vida nos leva a direções que nunca poderemos adivinhar, mas o passado é fixo. Está lá para recordar tudo o que já fomos, o que já vivemos - sempre no passado.

Se passado, presente ou futuro. Há muitos momentos em que não acredito no presente, os segundos que vivemos já passaram ou ainda estão por vir, nunca acontecem no presente, e há muitos outros em que não acredito em nada que não o presente. Sentado na pedra gelada, ignorando o frio, fecho e abro os olhos: para enxergar o lugar onde o único encontro possível seja com o presente. Nem memórias falsas nem aspirações inúteis, apenas o aqui e agora.

A mulher retira da bolsa um fone de ouvido que conecta ao celular modernoso em seu colo e então continua a escrever. Imagino a solidão que sinto. E imagino a vida da mulher como costumo imaginar as vidas por trás das janelas iluminadas à noite, apartamentos de donos sem rosto de vidas sem traços palpáveis. Imaginar é negar, mesmo que apenas em nossa mente, o aqui e agora em que estamos. A transformação de qualquer estado de coisas supõe não apenas um ato de vontade, mas também essa força negativa da imaginação.

Li essas palavras há tantos anos que não sou capaz de contar, mas não poderia concordar mais. E cá estou, outra vez negando e fugindo do meu próprio presente. Como a vida inteira, fingindo uma vida enquanto ela durar. Há coisas que escapam e há coisas que permanecem. Minha covardia fugitiva, meu medo encoberto por arrogância forjada.

A mulher contorna o chafariz e passa por mim. Alguns passos adiante, deixa cair a caneta, que rola até próximo de onde estou, e sou obrigado a levantar para alcançá-la. Enquanto a entrego e ouço de volta um "merci" desajeitado, noto as mãos dela. Nossas mãos contam histórias. E as rugas no dorso de ambas não nos deixam mentir. Nossas mãos são iguais, como nossas histórias, que mesmo alheias uma à outra são a mesma. Pontas de um emaranhado de galhos que por um instante se tocaram ao sabor de uma brisa passageira.

Ela segue adiante, e eu volto ao meu caderno sobre a pedra fria. Em minha cabeça, dançam fantasias: um dia meus cadernos serão lidos por aqueles curiosos, sedentos de conhecer a vida de um escritor morto, sem saber que nenhuma vida alheia é plenamente alcançável. Acredito em infinitas séries de tempos que se tocam em momentos dispersos. E essa trama de tempos - que se aproximam, se distanciam, se dividem ou se ignoram - abrange todas as possibilidades.

Para prosseguir é preciso desaparecer. Eu escolhi onde estar, e, sentado na praça cujo nome desconheço, sou apenas uma sombra de mim mesmo.

22 de julho de 2013

a presença

Toda a raiva reprimida, sufocada, anestesiada durante não interessa quanto tempo desferida em golpes no colchão, nas almofadas, com toda a força possível para um corpo deitado, soluçando com o rosto enterrado entre outras almofadas, gritos surdos abafados por essas almofadas para que os vizinhos não ouçam, nem a pessoa na sala. Os olhos vermelhos, mas não era maconha, antes fosse, e ardiam como se queimassem dentro do globo ocular. A dor de forçar a mandíbula sobre o travesseiro. Soltar de qualquer forma o que precisava sair, o sentimento engasgado que impedia a chegada de ar novo aos pulmões. E a mão doía dos socos dados sobre a mesa. Qualquer um diria que é loucura. Essa pessoa claramente tem problemas emocionais e de autocontrole. Autocontrole. Autocontrole. Autocontrole é o cacete. É bonito demonstrar amor e felicidade mas quando se demonstra raiva é falta de controle. São hipócritas e vendem essa ideia ridícula de uma vida bonita e certinha. Raiva. E mesas e almofadas serão socadas, gritos serão dados, cabelos serão arrancados e choros serão ouvidos ou abafados. O gosto salgado das lágrimas. A merda de não estar sozinho. Não pode andar sem roupa, não pode ouvir música alta, não pode gritar, não pode chorar, não pode escolher o canal da TV, não pode ir ao banheiro e deixar a porta aberta, não pode porra nenhuma de tudo o que você fazia antes. Não do mesmo jeito. Não à vontade. Porque ninguém é o que é quando a outra pessoa está presente. Porque a pessoa está ali, na sala. Ou vai chegar a qualquer hora. E por mais que seja só uma presença silenciosa ela desordena tudo aquilo que levou tanto tempo para ser ordenado. Uma rotina. Uma série de hábitos. Uma vida inteira. E já não há mais nada. Só raiva. E o desejo incontrolável de viver nos lugares que não existem. Não estar. Mas não: a vida é aqui e agora, e contra tudo o que se pode querer. São casas e pequenos prédios de tijolo à vista e janelas e portas de madeira não pintada. Espiar para dentro, imaginar aquelas vidas, ansiar pela solidão. A sensação de chegar em casa e sentar no sofá e sentir a paz desse momento porque é o lugar mais aconchegante que poderia existir. Mas a pessoa está lá. E das 24 horas de um dia, das 24 horas de todos os dias, não há mais uma sequer em que a pessoa não esteja lá. No mesmo sofá, na mesma cozinha, na mesma pia do mesmo banheiro, na mesma cama. E toda aquela diligência irritante de quem não se incomoda com outra presença; mais do que isso, de quem gosta dessa presença. De longe o som da voz de quem um dia disse que ninguém quer ficar sozinho. O paradoxo das vontades e desejos que, por escolha própria, nunca iremos satisfazer. Ao lado da pessoa que está sempre ali, que faz o almoço e o café da manhã, que lava a louça e não é capaz de ir embora, a descoberta inevitável: eu não quero mas nasci para ser. E aos poucos o corpo sucumbe ao impulso. E para a pessoa que está sempre ali não poderia haver dia pior, mas seria o dia de alforria. Arrancar da pele uma vida que só existe na superfície, romper o elo da presença contínua que exerce essa força centrífuga viciosa. E deixar para trás todas as marcas de identidade e os vestígios materiais da pessoa que se foi. Não importa onde - para nunca mais voltar.

30 de junho de 2013

a maldição

E ver como as mesmas pessoas que um dia amamos agora são pessoas que não conhecemos. Luzes piscantes fazem o ambiente oscilar entre luz e sombra enquanto você dança sem saber por quê e eu busco mais uma bebida, o líquido ultrapassa as bordas do copo conforme desvio dos corpos ao redor. Vermelho, verde e branco se alternam enquanto eu viro o rosto à procura de alguém e nossos olhos se batem numa fresta entre outras cabeças, ombros e braços. Risadas começam e terminam enquanto você se aproxima e eu continuamente levo o copo à boca, a química entre nossos corpos começa a fazer sentido. E ver como as mesmas pessoas que não conhecemos agora são pessoas que amamos.

Durante anos e por um pouco mais de tempo percorremos a vida com a sorte dos bem nascidos. O mundo foi feito para nós, e nós velejamos por ele com sede. Gente como nós não conhece a dor ou o vocabulário da maioria. Gente como nós está aqui para tirar do mundo o melhor que ele puder nos dar.

Nas mesas dos cafés de todas as ruas corre em todas as bocas o mesmo burburinho: este é o momento em que nos tornaremos reis. Somos donos dessas ruas, e esta noite é a noite em que tudo pode acontecer. Olhos estranhos olham para nós como se viéssemos de um mundo diferente. São olhos inquisitivos que perguntam sem se mover. Quem são vocês, estranhos, que vêm ocupar o mesmo lugar que nós? Olhamos para eles e sentamos sem dizer palavra. O garçom nos traz o melhor vinho da casa. Nós brindamos o momento: somos felizes.

O asfalto corre sob nossos pés sem que sintamos o atrito. Você me olha com o rosto de quem quer ganhar o mundo e eu sorrio com o sorriso de quem concorda. Nossa vida é aqui e agora. Mas sabemos que a vida que nos vendem é pequena demais para nós. Sabemos que esse sistema não é outra coisa senão a subordinação de todos os aspectos do universo a um deles. Sabemos todas as regras de cor e vamos quebrá-las uma a uma.

Chegamos em casa com passos tropeçados e risadas altas demais para o horário. Na nossa vida a maldição tem  o mesmo nome da rotina. As sombras dos nossos corpos iluminados pelas luzes da noite se movem na parede. Emaranhamos os lençóis e damos um ao outro todo o prazer do mundo. Nossa respiração ofegante sobe pelas paredes e ganha o quarto. Não há nada com que tenhamos de nos preocupar. Somos o espelho em que gostamos de nos enxergar. Você me abraça com os braços de quem pode tudo e eu te beijo com a boca de quem não quer mais nada. Pintamos o mundo com as cores que nos agradam e observamos satisfeitos nossa obra prima.

E ver como as mesmas palavras dispostas entre nós que outrora diziam o que vinham dizer agora não valem qualquer vintém. Assobios vêm de longe enquanto você desce a rua de bicicleta e eu lavo a louça do café, o pó molhado escorre pelo filtro e mancha de marrom as pontas dos meus dedos. Buzinas soam de repente enquanto você tenta frear a bicicleta e eu retorno à sala para ligar o som, o sol mergulha nos vidros da janela e chega ao tapete onde eu deito. Sirenes avisam quem passa na rua enquanto você é colocado em uma maca, enfermeiros rápidos tentam reanimar seu corpo inerte, e eu fecho os olhos inundada pelo sol no tapete. E ver como os mesmos sons que outrora enchiam nossos ouvidos agora são ruídos mudos que nossos ouvidos já não são capazes de ouvir.

16 de junho de 2013

a ficção

Você precisa ouvir para ler. Se você não ouve, você não lê. Você decifra códigos sem registro e apreensão, você ultrapassa parágrafos, você chega ao fim e você não é nada. Você precisa ouvir para ler.

O nome é fiction. E a letra diz what she wanted to be doing: wether reading it or writing. Mas o canto é outro. Nos universos desabitados em que agora habita sua alma: what she wanted to be doing, instead of reading it or writing.

Fazer ficção, viver ficção, ser ficção.

A subida de um morro íngreme de curvas. Esquerda e direita em sucessão como numa espiral de asfalto e calçadas. As casas se empilhavam, umas sobre as outras até o topo do mundo. E o topo do mundo era longe o suficiente para parar pelo caminho e espiar pela janela daquelas casas. Não havia ninguém dentro delas. Mesas postas, louças nas pias, roupas nos varais de casas vazias.

No ponto mais alto, aonde era possível chegar por uma trilha entre as árvores entre as casas, descansavam um deque e a vista para o mar. Não havia ninguém na cidade, imensa aos pés do morro. E lá de cima as ruas eram uma malha indecifrável de caminhos que não chegavam nem saíam. O mundo não tem necessidade de sair nem de chegar, apenas de existir.

O que você faria se pudesse realizar um desejo, qualquer desejo?

Não é difícil ver o futuro. Igual a ver a banda passar. Começo, meio e fim estão todos ali, você viu cada um deles. Mas estava lá?

Todos os diálogos de perguntas sem resposta que tivera não eram capazes de dar conta daquele momento. O desejo de isolamento - já pensou um mundo sem essa gente toda? esse caos - já não tinha o sabor de antes, era agora uma inconsistência perdida em um fluxo incontrolável de pensamentos que não sabiam para onde apontar.

Não era realidade nem ficção. O limbo da existência onde só há cenário e potenciais personagens desaparecidos, engolidos pelo egoísmo de um narrador prepotente. Seu mundo já era outro. Há duas semanas o sol não aparece e tampouco chove. Impossível adivinhar o destino das palavras escritas ou seu efeito, e a vida mudava enquanto escrevia. A arbitrariedade da busca pelo sentido. Porque tudo precisa fazer sentido. Tudo ao nosso redor, todos os fatos e todas as coisas. Busca-se e, se não se encontra, inventa-se.

Não existe isso de escrever sozinho.
Mas agora não tem como voltar.

Começa-se então a preencher o caderno de trás para frente. Subverter a ordem das palavras para subverter a ordem do mundo, que girando em outro sentido se torna outro mundo.

Isso é ficção.
Ou não é.

E o corpo arde como se a ele houvesse sido infligida toda a dor do mundo. De onde vem a dor do mundo? Os socos, chutes, pauladas, cortes e queimaduras que nunca havia sentido agora se faziam doer com a força que antes era só imaginada. Causar dor a alguém, e ao mesmo tempo sentir a mesma dor - é uma construção perspicaz. Se a realidade dói, inventar pode ser um remédio. Mas quando a invenção também dói não há mais caminhos possíveis.

Você fez isso acontecer.
Não, eu não fiz.

A dor vem de não saber de onde ela vem. De onde vêm as palavras, ou de não saber como ordená-las nem como descobrir seu lugar. Atrás de um sentido inexistente, passando por cima de todos os outros sentidos, de todos os outros, anulados, esquecidos. A carne padece. E quando não há um outro em quem se espelhar não há mais nada.

Ler o outro como você mesmo, como a si próprio.

Nessa ausência mortificante de melodia, e a tortura dos devaneios sem fundamento. A solidão outrora sonhada que oprime, aniquila, consome. A nocaute outra vez. Não há senão o amor das pedras, eternas. O fantasma chamado de depois, depois de você. A escrita distrai da condição dos homens, e a certeza de que tudo está ou já foi escrito faz fantasmas os homens que escrevem. Essas palavras não podem ser a verdade, mas você mente também, por que não mentiria?

7 de junho de 2013

o filho

Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue.

Quando li essa frase pela primeira vez, e isso foi há pelo menos dez anos, me senti acolhida. O autor há muito já estava morto, mas a ideia de que alguém em algum momento da nossa trajetória infame proferiu essas palavras ainda é uma espécie de conforto. Pensar na solidão como requisito para uma tarefa a ser cumprida é quase uma sensação de poder. Mudar a face do mundo. Cabe a mim, cabe aos solitários espalhados pelo mundo que jamais conhecerei.

Minha vida é igual a tantas outras vidas que trabalham, tentam manter a casa em ordem e equilibrar o que os dias exigem. Molhar as plantas, alimentar o gato, primordialmente não deixar que morram, reabastecer a despensa, não quebrar as taças de vinho que custaram caro. O suficiente para se manter vivo. A gente vai lá, a gente tenta, a gente se atura, não dá certo, a gente desiste, o cara vai embora e eu fico com alguns lençóis pra lavar e uma escova de dentes pra jogar fora. Primeiro era triste, então passou a ser desgastante e hoje não é nada. Perder ninguém perde, no máximo fica tudo igual.

Igual a tudo o que eu sou, porque mais ou menos do que isso já não seria o que eu sou. Nem um extremo nem o outro, nem oito nem oitenta. Porque a vida, do jeito que costuma ser na prática, não diz respeito aos extremos, mas a tudo o que fica entre eles. É nesse miolo que a maioria grosseira das pessoas vive, e é no meio, e não nas pontas, que as coisas acontecem.

Tinha recém chegado de viagem, e umas amigas me chamaram pra beber. Passamos por três bares, seguindo a sequência dos horários de fechamento, até acabar no último, um boteco de cerveja barata que basicamente não tinha hora para fechar. Ainda que nunca mais tenha o mesmo efeito que costumava ter na adolescência, beber é sempre uma promessa boa. De esquecer, de rir sem motivo, dançar, falar o que não se falaria.

E na calçada nós encontramos o Ciro. Ele era bonequeiro, uruguaio, doze anos mais velho e um beijo do tipo que se busca, que encaixa como tem que encaixar, macio, marcante. Conversamos, minhas amigas foram embora, bebemos mais, conversamos mais. No apartamento dele, um conjugado não muito longe de onde eu morava, me apresentou o Gauche, o cachorro mudo que ele pegou na rua. Gauche não latia nem rosnava e por isso era um doce. E educado também, ia e vinha sem a gente precisar pedir. Ciro me mostrou a casa, e eu queria ter gravado o nome da banda que ele botou pra tocar, mas não gravei.

Eu acho meio deprê.
Sério? Eu não achei nem um pouco. Pelo contrário. Muito bom de ouvir.
Ah, que bom que tu gostou. Eu adoro essa banda.
Tem um dos bonecos aí pra eu ver?
Claro, pera aí.

Estava frio, e nós transamos três vezes aquela noite.

Que é isso? Por que tu fez isso? Eu não vou transar contigo sem camisinha, seu idiota.

Já era tarde.

Tu tá brava comigo? Não briga comigo.

Ele tinha quase quarenta anos e era uma criança me pedindo pra não brigar, pra não ir embora. Olhei a madrugada pela sacada do quarto. Fazia ainda mais frio do que eu pensava. A cidade que sempre dormia, longe de tudo o que poderia me fazer viver. Voltei para a cama, ele me esperava com dois cigarros acesos.

Gostosa. Tu é muito gostosa.

Fui juntar o grampo do meu cabelo e senti no chão uma tarraxinha perdida. Ele tinha um beijo impressionantemente bom e um cabelo que pedia para ser bagunçado. Quando amanheceu, fui até a cozinha tremendo de frio, catando minhas roupas pelo caminho. Gauche seguiu cada um dos meus passos e ficou encarando enquanto eu me vestia, como se quisesse falar.

Abre lá pra mim?
O quê? Tu tá indo embora? Tu não vai embora.

Tive vontade de voltar até a cozinha e passar um café bem quente e forte, meus olhos ainda fechando com o sol que entrava pela janela, mas essa era uma intimidade que eu não teria.

Como tu espera que eu te deixe ir embora? Ainda mais assim, fazendo esse cafuné na minha barba.
Ah... Vamo, abre lá pra mim, eu tenho que ir. É sério.

Ciro levantou, vestiu um blusão, uma calça de abrigo, não pensou em fazer café.

Tá vendo isso, Gauche? Ela tá indo embora, dessa maneira totalmente fria e gelada.

Nos beijamos ainda na porta, no elevador, no portão.

Bah, a gente não trocou telefone, né? Me dá um toque, aí depois eu posso te ligar.

Andando até em casa, o sol cegava meus olhos, e poucas vezes eu quis tanto um óculos escuro. O vento frio gelou meus ouvidos até doer, e poucas vezes eu quis tanto um protetor de orelhas. No caminho, lembrei de entrar em uma farmácia.

Oi, eu preciso de uma pílula do dia seguinte, vocês têm?
Temos, claro. E que bom que temos, né? No meu tempo a gente não tinha essa possibilidade, ainda bem que hoje existe.
É, pois é, ainda bem.

Ciro não ligou, como eu sabia que não ligaria. E é estranho, ainda assim. Ter certeza e não conseguir evitar a frustração. Esqueço os rostos, os nomes, as datas, mas levo os vestígios dos homens que não me amaram. Uma névoa, uma lembrança, um sentimento que precisa descansar porque já está acordado há tempo demais. Mas não há jeito de dormir. O amor nos manteve acordados por uma noite.

Quando minha menstruação atrasou, vivi uma mistura confusa de medo e angústia. Imaginei um filho e como eu faria para não tê-lo. Imaginei um bebê, o dinheiro que ele custaria e o dinheiro que eu gastaria para que ele não existisse. Mães aleatórias passavam empurrando suas crianças em carrinhos por mim na rua, e eu tentava descobrir a sensação de ter meus dedos segurados por uma mãozinha tão pequena de alguém saído de dentro de mim. Talvez se chamasse Emílio, Ítalo, Daniel. Talvez Ana ou Antônia.

E eu seria uma boa mãe? Antes disso, eu lá teria capacidade de ser mãe? Não deve haver no mundo mulher que não tenha se perguntado. Pelo menos uma vez. Eu seria uma boa mãe? Me olhei no espelho e não vi nada. Nem mãe nem filha. Só eu, porque qualquer coisa diferente disso não seria eu.

Incrível pensar em todas as coisas que acontecem no mundo. Não há como dimensionar, mas todas acontecem com alguém, quem quer que seja, e acontecem exatamente agora, porque sempre é agora. Passam nove séculos ou nove meses, mas tudo o que acontece acontece agora. Tudo o que realmente acontece acontece a mim. Minha tarefa prossegue.

1 de junho de 2013

a água

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
Lá é diferente.

*

Viram-se a uns poucos metros de distância, cada um andando em um sentido na calçada, e quando chegaram mais perto Nicolau deu início ao gesto de levantar o braço e desenrolar a corda do cachorro ao mesmo tempo para cumprimentá-la. Não era a primeira vez que um encontro desse tipo acontecia, com os dois passando por aquele trecho da rua todos os dias, mas era a primeira vez que se cumprimentavam.

E aí, como é que tu tá?, Tudo bem, e contigo?, um meio abraço e um beijo e o cachorro pulando nas pernas dela.
Tá lá no jornal ainda?
Não, saí. Tô trabalhando em uma revista agora. Não é muito conhecida, mas é ótimo.
Bah, outro dia – é Camila, né? – outro dia uma Camila me ligou pra marcar uma entrevista. Não era tu, né?
Não, não. Eu sei quem é, mas não era eu, não.
Ah tá, menos mal. Eu não queria parecer rude, mas eu tava muito atucanado.
É, ela comentou comigo. Mas imagina, ela entendeu a situação. E como é que o nome dele?
Era um vira-lata. Tinha o pelo meio bege, mistura de marrom com cinza, uma cor completamente indefinida, com manchinhas mais escuras espalhadas pelas costas. Continuava faceiro, balançando o rabo, entre pular e cheirar os tornozelos da estranha à sua frente.
Ah, é Guapo.
Ah, que nome ótimo! Perfeito pra ele.
Por quê?
Tipo o dono.
Ele sorriu, e ela queria virar, esquecer que a pós-graduação existia e seguir caminhando com ele e Guapo.
Mas então tá. Legal te ver!
Bom te ver também. A gente se fala.

Manhã de outono, o sol mal começando a iluminar a ponta das copas das árvores, o vapor escapando das bocas dos dois, chimarrão na mão. Todo o gauchismo que a situação merecia. Bah, mas então tá, legal te ver e um cachorro chamado Guapo. Assim começou.

*

Ver-se em alguém é diferente de ver a si próprio, num espelho ou em pensamento. É uma imagem terceira de dois rostos ao mesmo tempo, de uma maneira que só é possível em uma tal cumplicidade que não existe todos os dias. São olhos que se entregam de rostos que se conhecem de corpos que se chamam. Um amor sublime que a nem todas as vidas é dado viver.

O mundo não era mais nada enquanto ele dormia ao seu lado. De longe, dava pra ouvir os passos do cachorro e o resto da chuva pingando das árvores na calçada. As peles dos dois, coladas uma na outra, não poderiam ser mais distintas e ainda assim eram a mesma. Os olhos que se abrem lentos pedindo um cigarro, costas que se aconchegam entre travesseiros e peitos nus. O tempo parava naquelas madrugadas de felicidade silenciosa. As horas se estendiam e atrasavam a manhã. Como se a vida enfim se curvasse ao desejo de dois amantes.

O frio que faz no sul convida ao amor e à solidão, que se intercalam em uma sucessão infinita de invernos infelizes e inebriantes. E quando tudo acabou, com a chegada da primavera, ela sabia que a vida cobrava o que havia dado. Nada é de graça, não há extremo sem oposto. Nico se foi como as sombras que desaparecem nos dias nublados; o que fica no lugar não é nada senão a superfície vazia e sem contraste de antes. E voltar a ser o que se era - antes, no passado odioso que todos querem apagar. A vida não é justa com quem não merece justiça.

*

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
A PORRA DA MINHA VIDA É DIFERENTE.

Veio o silêncio, um olhar perplexo, expressões que não sabiam o que queriam expressar, cansaço, mágoa, rancor. Não estar apaixonado é como querer carregar água com as mãos. Você pode tentar quantas vezes quiser, mas nunca vai conseguir.

22 de maio de 2013

o metrô

E o que fazer com as palavras acumuladas?
É uma cidade viva. Há gente na rua a todo momento, indo e vindo, uns com pressa outros com o andar de quem não precisa se preocupar com o tempo, talvez nem tragam relógios no pulso. Mais convidativas que as milhares de lojas postas lado a lado nas ruas estreitas, as praças, espaçosas e espalhadas, chamam os transeuntes. Há sempre uma praça entre o próximo amontoado de prédios. E algumas ficam tão escondidas que surpreendem quando finalmente descobertas, aqueles passos a mais à esquerda, um corredor suspeito que parece não levar a lugar nenhum e lá está. Os bancos em todas as quadras, as árvores em todas as ruas, os nomes bonitos das estações de metrô, também espalhadas, também sempre próximas.
O próximo trem na Estação Sol. Sol na cidade. E, longe do sol, andar de metrô é inexistir por alguns minutos. Uma viagem de metrô é um intervalo no tempo. Sentados, passageiros fora do mundo entre a estação de origem e a de destino. É ali, no ponto em que céu, terra, deuses e mortais se encontram. Quando se deixa de existir e se existe para o nada. Há uma música contínua que marca a passagem do tempo, que leva em direção ao futuro, como a vida deve ser. Não por acaso nenhuma vida volta atrás para viver de novo. E quando a música silencia, e o tempo perde o ritmo que antes possuía, e a perspectiva já é outra ou igualmente se perdeu, onde o mundo parou é impossível saber.
Visivelmente, ninguém espera descobrir nada. Essas figuras sentadas, elas não estão ali de verdade. Mas trazem no rosto aquele desejo calado: eu não espero mais nada, mas por favor que algo aconteça. Como quando entra, numa estação qualquer, o homem de preto que distribui fitas de todas as cores aos passageiros. Em vez de palavras, fitas coloridas: vermelhas, azuis, rosas, verdes, amarelas, roxas, laranjas. Ele me olha nos olhos e me sorri um sorriso de silêncio.
Então o trem passa sob uma montanha de águas cristalinas que escorrem em uma cascata infinita. Cruzando a montanha, é possível ver pelas janelas outras diversas janelas, no interior das quais estão mesas vazias com taças de vinho abandonadas pela metade. Não há ninguém. Todos já foram embora ou talvez nunca tenham existido.
O problema do tempo é que o tempo passa. Foge com todas as coisas que poderiam ficar, que poderiam ser. Mas nenhuma história jamais será o que poderia ter sido. O homem não compreende o tempo, que num repente cria ilhas onde nenhuma ilha seria capaz de existir.
Preciso de tudo tão mais de perto, me ouço dizer, venha para casa. Maravilhosa como qualquer outra jamais será, a cidade surge outra vez no fim das escadas da mesma estação do sol. E o sol está lá também. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno.

17 de março de 2013

a mentira

Coincidentemente ou não, os cabelos são cortados todo início de ano. E por vezes no inverno também. O cansaço de seis meses que não corresponderam a qualquer expectativa que se pudesse ter caem no chão de algum salão, tufos de cabelo morto. O vento bate na nuca desprotegida do frio, a pele se eriça em calafrios, sentir frio. O calor nos mata nos meses de verão e o frio no meio do ano nos lembra de que ainda estamos vivos. Ainda. Na direção contrária a tudo o que se esperava de nós. E o frio no pescoço é só a confirmação de que sobrevivemos contra nossa vontade.

É? Tu não gosta deles? Mesmo se eu cantar essa música pra ti?

Por algum tempo, você deixa toda essa merda de lado. Esquece que faz isso todos os dias, ignora que terá de voltar mais cedo ou mais tarde. Amanhã é só uma promessa. E é - será sempre. Uma promessa de vida nova, diferente, de frequentar outros lugares, de fazer outras coisas, de construir uma vida social que se sustente por mais de uma semana, de alegria, de satisfação pela pessoa que se é. Todo começo de ano. O gosto inconfundível da expectativa, mas em março tudo se mostra só retomada. Voltamos. E não temos nada.


Ele costumava ser meu namorado. Dizia que era pelo menos, sei lá, pros outros. Mas não era. Não do jeito que eu queria que fosse. A gente nunca tirou uma foto, porra. Sério. Não tem nenhuma. De nós dois juntos. E na verdade nem de nós dois juntos nem de nada que diga algo daquele tempo. Sabe do que eu tô falando? Sei lá, de algo que a gente tenha feito, de algum lugar a que a gente tenha ido, qualquer coisa. Mas não tem nada. E eu sou sincera, não sei por que uma foto seria tão importante. Digo, tu pode argumentar perguntando porque eu preciso de uma foto, eu não preciso de uma foto pra lembrar ou pra saber que em algum momento nós existimos juntos. E é verdade. A questão é que uma foto seria a prova de que a gente foi um casal normal. É. Deve ser por isso que não existe nenhuma, mesmo. 

Antes era diferente. A sensação do tempo passando agora é diferente: agora não é a passagem do tempo simplesmente, é a certeza de que agora se trata de um tempo sem chance de ser recuperado. Se o curso de francês ou de alemão não for feito agora, não poderá ser feito ano que vem. Se as coisas não forem feitas agora, é provável não sejam feitas nunca. Porque não haverá tempo e há cada vez menos tempo. Já não tínhamos nada antes, mas antes tínhamos tempo.


Não, é que não tinha isso, sabe? A gente não falava muito. Digo, a gente falava, óbvio. A gente conversava muito, às vezes até demais. Praticamente sobre qualquer coisa que tu puder imaginar, eu acho. Mas não sobre nós. Sabe? Era meio como se fosse um assunto proibido. Não tinha DR nem nada disso. Talvez por isso fosse tão bom, mas talvez por isso também tenha dado tudo errado depois, não sei. É difícil saber quando não se fala, né. E aí fica essa sensação de pendência, de uma coisa que foi interrompida e não que acabou de verdade. Mesmo que se saiba que acabou, a sensação nunca vai poder ser essa.

Voltar é dar de cara com os passados que se gostaria de apagar. Ou de alterar por completo. Outros rostos frequentariam a sua casa, o seu rosto no espelho seria outro, haveria uma estação de metrô a duas quadras do seu prédio, você gostaria do que vive, as pessoas saberiam quem você é. Voltar é continuar contando mentiras. Todos os dias. Mas viver mentiras já é outra coisa: você não sabe se vive uma mentira porque mente sobre sua vida ou se porque inventa uma que não existe quando ninguém está olhando.


Uma vez ele chegou lá em casa meio acabado, assim, dava pra ver no rosto dele. Ele entrou e se jogou na cama, e quando eu cheguei perto vi que ele tava com os olhos vermelhos. Disse que tinha brigado feio com os pais e os irmãos em casa e aí tinha chorado muito. De raiva, de tudo. O que eu sabia exatamente como era, porque acontecia comigo com mais frequência do que eu queria admitir. Mas foi rápido, em questão de minutos tava tudo bem, e a gente tava lá, preparando a janta, os dois sorrindo. Já não me lembro muito bem das coisas. São flashes de memórias de momentos. Nossa vida secreta a dois.


É uma droga na maior parte do tempo, não tem por que negar isso. Não é feio, não diminui ninguém. A vida é uma farsa, vamos, diga. Você é uma farsa. Sempre chega um tempo em que quase tudo ao seu redor, a matéria de que sua vida é feita, se é que se pode chamar de matéria, é formada de lembranças, sensações, desejos realizados ou reprimidos, tudo o que não é concreto. Cada dia é futuro e depois passado e você não sabe bem como precisar quando deixa de ser um para ser outro. Você é futuro e é passado, mas nunca é presente. Somos todos fragmentos.

Eu não sei se ele gosta de mim. Se gosta mesmo, sabe, de verdade. Se ele pensa em mim, se às vezes sente falta da gente, se ele tem vontade de estar comigo. De estar, não de ficar. Não sei mesmo. Quer dizer, eu não consigo acreditar que seja possível uma pessoa se sentir em relação a outra da maneira como eu me senti e isso ser uma coisa só, que só eu tenha sentido, que só eu tenha percebido. Não é assim. Gosto de pensar que é o tempo. Que tudo foi por causa do tempo. Que a gente se conheceu em momentos diferentes, de desejos diferentes, e que o tempo que passou desde então e que continua passando é o tempo que a gente precisa. O tempo que vai levar pra gente se resolver. O tempo necessário pra voltar.

É tudo mentira. E tudo é mentira. Cada palavra escrita ou falada. Você que lê ou fala: não acredite em nada. É verdade.

1 de março de 2013

o amor

Só mais uma convenção, como tudo na vida, como tudo em sociedade, a sociedade é uma obrigação, ninguém vive em sociedade porque quer. Faz sentido. Mas não. As pessoas, nossos colegas, nossos amigos, essa noite, esse momento, isso é bom, não é? Mas ele não disse que era ruim, ele só disse que é uma obrigação. Uma parte de mim é assim, o inferno são os outros, e outra parte de mim é assim: o inferno sou eu.
Ele costumava ser uma boa companhia. Sabia rir, sabia conversar, sabia não se levar a sério. O problema é que sabia não me levar a sério também. Um poste, um apêndice, um avestruz a tiracolo. Como se não pudesse falar. Minha boca ensaiava as palavras, mas se sobravam palavras faltavam razões para dizê-las. Como é possível que eu ainda queira dizer algo? Nunca tive uma resposta, nós nunca conversamos. Mas sempre há o que dizer. Me liga, quero saber como foi teu dia, dizer boa noite. Quanto mais as pessoas me ignoram mais eu vou lá e falo com elas. O fim. Mas eu quero fazer uma coisa antes que o mundo acabe. Não, agora já passou, não acaba mais. Mas acaba um dia.
E eu me sentia ridícula quando pensava nisso, quando ia lá falar com ele. E também me sentia ridícula quando pensava na gente dançando. Tentava imaginar como seria, porque além de nunca conversar nós também nunca dançamos, e sentia vergonha e me sentia ridícula. Ele exercia esse tipo de força sobre mim, essa sensação de ser ridícula. Extremamente ridícula. Talvez por causa da postura, meio distante, meio independente, meio te-amo-mas-não-me-importo. Ele sempre disse que nunca soube com aquele tipo de situação, que nunca ia saber lidar. O que é uma tremenda idiotice, porque a questão nunca foi saber ou não saber. Ele nunca quis. E mesmo assim eu me sentia ridícula. Minha imagem no espelho no fundo do bar, meu rosto não atraente, o balanço arrítmico e desengonçado do meu corpo – patético, um desastre em forma de ser humano. É isso o que você é.
Quantas vezes tu já amou? pergunta o cinquentão fora de forma bebendo cerveja em taça de vinho. Não sei, eu digo. Não, tu sabe, sim, no fundo a gente sempre sabe. Como eu posso saber? Eu posso conhecer alguém hoje ou daqui a um mês e me apaixonar e descobrir que antes não era nada. Não, a gente sabe quando ama. A gente sente. Um velho completamente aleatório. Que depois de dez minutos começou a me deixar cada vez mais desconfortável, parado ali, de pé do lado da minha mesa, bêbado, falando sobre o amor perdido da vida dele. Que se dane o seu amor perdido, senhor, eu não dou a mínima. E que diferença faz quantas vezes eu amei se em nenhuma delas eu fui amada. Vou dizer de novo, senhor: eu não dou a mínima.
Existe uma falha fatal por trás dessa lógica do amor. Esse nosso amor. Ou será o amor que eu já tive? Mas não existe verdade, existem percepções. Catorze bilhões de olhos de diferentes lugares olhando para o mesmo lugar. E nenhum deles é capaz de ver o que eu vejo e eu não sou capaz de ver o que eles veem. Eu minto todos os dias. A beleza da solidão não se deixa ver assim, fácil. Demora. E enquanto isso eu me olho pelos olhos dos outros e não vejo nada. Mas como possivelmente alguém pode esperar enxergar alguma coisa sem se demorar? Vão dizer que a vida está passando por você porque não entendem a necessidade de contemplar. E que isso leva tempo.
Nós nunca conversamos, nunca dançamos e também não queremos crescer. Talvez porque chegue com os primeiros respiros da vida adulta a certeza do que antes era só uma desconfiança. Outras vidas podem valer mais a pena. Essa, só com amor. Sem amor, você não é nada, está fadado ao fracasso. O fundo é solidão, mas a superfície é o inferno.

23 de janeiro de 2013

o personagem

Qualquer pessoa pode julgar que sua vida e suas histórias merecem ser contadas e então contá-las, ainda que só para si. E eis uma mentira. Se outros vão ler, é o outro lado da mesma moeda. Há um mistério por trás das intenções que movem as palavras, e os escritores a escrevê-las, mas a vaidade de ser lido nunca foi contestada. Por que inventar uma história quando a vida e a realidade são mais fantasiosas? Por que viver a realidade quando o universo da ficção só depende de ser devidamente explorado para se tornar real?

***

Entrou no ônibus. Sua vez finalmente chegara, entregou a passagem ao funcionário e agora estava sentado em uma janela do fundo. Você não sabe exatamente aonde vai, mas não importa, porque estaremos juntos. Se fizesse um pouco de força, ainda poderia ouvir as palavras. Longes, e agora não queriam dizer mais nada, mas o problema com certas palavras é que uma vez ditas.
E você nunca mais se recupera.
O quê?
O homem sentado ao lado olhava com expressão confusa.
Nada, só pensei alto.
Coisa estranha pra se pensar em voz alta.
É, pode crer.

A paisagem corria pela janela. Mudava a cada metro e no entanto era sempre a mesma.

Qual o sentido de optar pela saudade? Um sentimento que se nutre por algo que se deseja reviver, por alguém que se deseja rever. E existindo essa possibilidade – por que optar pela saudade? Era mesmo possível sentir saudade de uma pessoa e não querer vê-la de novo?

***

A Verônica era eclética. Do gosto musical ao que ela fazia para se sustentar, quase tudo seguia uma desuniformidade sem precedentes. Era estudante de administração, mas trabalhou com fotografia, design gráfico e produção e edição de vídeo até optar por ser modelo, mudar-se para o Japão e voltar ao Brasil meses depois decidida a ser atriz. Foi aí que se conheceram, em uma festa da produtora para a qual ela trabalhara e que ensaiava fazer um filme para o romance que ele havia escrito. Um livro de guri, como dizem.
Bah, tu! Eu adorei teus livros!
Não era a primeira e nem seria a última a dizer isso. Das meninas deslumbradas. Jovens. Estudantes de jornalismo que o procuravam para entrevistas, adolescentes que queriam um autógrafo e uma foto, encantadas com o homem mais velho com semblante e cabeça de guri. E ele tinha uma natureza gentil e modesta, tratava todas com respeito, até interesse, o meio sorriso contornado pela barba enquanto os olhos buscavam os olhos delas. Tão fácil se apaixonar.
E Verônica surgiu na festa como mais uma dessas meninas. Já tinha 23 anos, só três a menos do que ele, mas estava ali, boba e deslumbrada, com um ar infantil que beirava o ridículo e o fazia se sentir cansado antes mesmo de precisar abrir a boca. Na época, ela ainda mantinha o cabelo liso, escorrido e meio sem corte típico das modelos, mas era inevitavelmente linda: o rosto entre oval e triangular, a pele branca, perolada, o sorriso, as curvas que ela simultaneamente escondia e mostrava sob o vestido preto reto.
Que bom, obrigado. O mais importante são os leitores.
Ela sorriu de volta, e nesse momento já não era infantil: olhava nos olhos dele sem desviar, sabia exatamente o que queria.

Verônica gostava de dizer que aprendera a ler cedo, aos três ou quatro anos, e que tivera a primeira crise existencial já aos dez, idade com que a maioria de nós, reles mortais, sequer sabe o significado dessas duas palavras. Sempre fui um pouco precoce, dizia. Tinha ânsia de fazer tudo e de fazer tudo logo; quando decidiu ser atriz, carreira que viria a seguir definitivamente, e começou a trabalhar na área, ainda não completara 25 anos. E ele nunca sentiu atração por mulheres assim, aqui e agora, com pressa de sair e de chegar, o desejo de viver tudo o quanto antes. Havia coisas, e não eram poucas, que exigiam certo tempo. Em alguns casos até lentidão. Mas mesmo nisso Verônica era diferente. Ele enxergava nela o doce da sede juvenil: a vontade, a ausência de medo, tentar o novo e o diferente, não se preocupar em quebrar a cara no caso de dar errado. Ela era corajosa, intensa em tudo o que fazia. 
Em meio ao vulcão de vontades e sentimentos que era a personalidade daquela mulher, ele viria a descobrir mais tarde, havia algo de dúbio. Uma lacuna sob o ímpeto de fazer tudo a deixava sem a base sólida de que precisaria para se sustentar. Entre todos os traços marcantes e bem definidos que ela ostentava, um borrão de incerteza em contraste, paradoxalmente, com as impressionantes segurança e autoconfiança que ela estampava no rosto. O espaço onde se encontravam as hesitações que ela escondia mas de que jamais se veria livre. O que denunciava sua humanidade e, como ser humano, sua falibilidade de caráter e todos os receios e ambiguidades que temia.

Antes mesmo de começarem a namorar, não muito tempo depois da festa da produtora, ele já estava completamente apaixonado. Sentia prazer em ouvi-la, o tom animado da voz nem grave nem aguda demais discorrendo sobre os assuntos que surgiam. Observava com cuidado os traços do corpo dela, o contorno do rosto, a delicadeza das mãos brancas de dedos finos. Os seios eram quase perfeitamente simétricos, e quando ela usava uma blusa mais aberta, deixando à mostra as omoplatas  poderia olhar para ela o dia todo. Entre os gostos desconexos, os lugares-comuns e as excentricidades, tudo na Verônica parecia completar sua existência na medida exata. Como em todos os amores, a vida ganhou um sentido a mais. A felicidade de fazê-la feliz, o gosto ímpar de amar e ser amado, busca humana, eterna e quantas vezes tola. 
Vê-la acordar, o hálito matinal, olhos ainda pesados, rosto e cabelos amassados pelo travesseiro, e ainda assim continuava linda. O jeito como gesticulava ao discutir, argumentando em defesa de seus pontos de vista, quase inflexível. Ela se irritava, enérgica, sentia gana de sacudi-lo, enquanto ele falava pausadamente, sem se alterar, sabendo que a irritaria ainda mais.
Deixa de ser boba.
Ela permanecia imóvel.
Deixa de ser boba, eu disse.
E a puxava pela blusa ou pelos bolsos da calça até que ela finalmente cedesse.

***

O chacoalhar do ônibus costumava ter o efeito de um sonífero, e ele era capaz de dormir poucos minutos depois de embarcar, mas embora estivesse cansado e com sono não queria dormir agora. Apoiou o rosto na mão direita e se pôs a observar pela janela os terrenos que iam passando depressa, as casinhas de beira de estrada que de fora pareciam extremamente aconchegantes. Às vezes não passavam tão depressa quanto poderiam.
Tu não tá no teu melhor dia, né?
Ele olhou para o homem que agora tinha uma expressão mais curiosa e complacente do que confusa.
É.
E não é de falar também.
É.
O homem não diz nada.
Não, é só que tô aqui pensando, lembrando umas coisas que eu tinha que resolver.
Ah, sei.
Um pouco perplexo, ele vira o rosto para encará-lo.
É mulher, né?
Ele não responde. Um dos maiores clichês dos relacionamentos modernos. Origem de todas as dores e de toda a sensação de que elas nunca acabarão.
Ela entrou completamente na minha vida.

***

Desde o início ela se envolveu com o filme. Participava das reuniões, discutia com o roteirista e o diretor, dava sugestões, fazia críticas. Quando iniciaram os testes com os atores, ela estava lá também, o tempo todo. Não foi difícil encontrar um intérprete para o Julio; não eram incomuns atores dispostos a interpretar um jovem adulto frustrado, enfurnado num quarto e sala no centro de Porto Alegre. E Marcelo, eleito para o papel, era a encarnação do personagem projetada diante deles. O mesmo tom de voz melancólico e arrastado, a expressão de quem não tem qualquer perspectiva que considere decente e/ou viável, do cara que se sente estagnado, preso no próprio corpo. A Roberta, em compensação, era complicada. Tinha traços mais específicos, incluindo o caminhar e a maneira de se postar. Não era qualquer garota. Testes foram e vieram, um ou outro nome possível, mas ninguém estava completamente satisfeito.
Não é que sejam de todo más, mas nenhuma entrou de verdade. A gente precisava de uma guria exatamente que nem tu... Fernando, o diretor, comentou com Verônica enquanto remexia em um calhamaço, aparentemente sem se dar conta da ideia que lançara.
Então eu faço o teste. Porque eu quero ser atriz.

Era a cara dela. Se jogar numa experiência nova, algo que nunca havia tentado antes, que talvez sequer houvesse pensado em tentar – que talvez sequer fosse capaz de fazer , mas que na hora pareceu uma boa ideia. Não havia um “mas pode não dar certo, e se der errado...”. Ela não tinha medo. Fizeram o teste no dia seguinte, e era ela. Ele não poderia ter sonhado com a existência da Verônica quando criou sua personagem, mas as duas eram a mesma pessoa, e a ficção ganhou vida a poucos passos de distância. Como toda a história. Eles estavam fazendo um filme, e ver a mulher que ele amava no papel da mulher que havia idealizado era ver a mulher que havia idealizado se tornando real. Diante dos olhos de todos, diante dos olhos dele.

***

Eu escrevi há quase dez anos já. Foi meu primeiro romance. Basicamente é a história de um escritor que não deu certo e sobrevivia de traduções aqui e ali. Morava num apartamentinho de merda no centro e um dia conhece essa modelo e se envolve com ela. Os dois trancados lá. No verão de Porto Alegre. Até o dia em que acaba. Acontece com escritores novos. Põem mais da própria vida num livro do que deveriam e depois se arrependem. E a Roberta era a mulher que eu imaginava e queria pra mim naquele tempo, uma personificação.
E tu encontrou ela na tua namorada.
É, de certa forma.
De certa forma?
Até o dia em que acabou.

O ônibus contornava uma lagoa imensa. A água reluzia no dia ensolarado sem nuvens. Sente vontade de nadar. O corpo molhado, braçada após braçada, as ondas estourando na praia, ir e voltar para esquecer. O infortúnio da memória sã. Você jamais esquece. Imagens e sons esparsos que estarão presentes enquanto durar a consciência. As vozes dos dois discutindo depois de um dia de filmagem já na reta final, ela rindo com Marcelo no set, os dois juntos na cama em uma das cenas de sexo.

***

As ideias que tinham para essa ou aquela cena, as brincadeiras nos bastidores, os erros de gravação, as noites viradas, todos os dias de trabalho – quase injusto chamar de trabalho. Ele via Verônica na pele de Roberta na frente das câmeras e depois a via em seu próprio papel, o corpo ao lado do dele, usando não mais que os brincos que às vezes esquecia de tirar. Segurava o cigarro de um jeito macio, fumava olhando para o teto, percorrendo com os olhos o caminho da fumaça, desenhando círculos imaginários. Era impossível adivinhar o que ela pensava nesses momentos. E nesses tanto quanto nos outros.
Numa noite, ela falou do Marcelo. Perguntou se ele achava que o outro estava representando bem o papel. 
Sim. Acho que ele tá muito bem, na verdade. Mas por quê? Tu acha que não?
Não, não. Acho ele ótimo. Só tava pensando se tu concordava.

Ele conversava muito com Marcelo. Não demorou para se tornarem amigos. Ganharam liberdade e intimidade um com o outro e mesmo fora do set eventualmente gastavam tempo falando sobre o protagonista. Um devia ser o outro. O Julio é meio perdido. Ele tem que mostrar isso na cara, o desânimo, a falta de perspectiva. Ele não acredita. A barba malfeita, ele se largou. E com a Roberta é assim, é forte, carnal, mas tem uma melancolia. Existe uma dor ali. 
E o Marcelo incorporou conversas e instruções. Nos intervalos, observava o jovem escritor de longe, o jeito como acariciava e tratava Verônica, assimilando trejeitos, cacoetes e expressões. Ele sabia onde olhar para enxergar seu personagem. Sabia quem estava interpretando e o que fazer para ser igual e para ser melhor. Foi além, apropriou-se do que havia de melhor em criatura e criador. E assumiu com Verônica uma postura irresistível: elegante, viril, cavalheiro. Entoava a voz ao falar e deixou aflorar o senso de humor que já lhe era próprio e agradava a todos. Passou a estampar um sorriso preciso e a olhar com suavidade e interesse ao mesmo tempo. Os três saíam juntos, iam beber na Cidade Baixa, riam muito. Marcelo puxava a cadeira para Verônica sentar e, no aniversário dela, mandou um buquê de flores acompanhado de um cartão cujo conteúdo ela não quis dividir.
É bobagem, nada demais.
Os dias se seguiam uns aos outros, folhas arrancadas do calendário. A medida com que o filme se encaminhava para o fim era a mesma que os unia e separava. A melancolia dele, o sorriso galante do outro, a curiosidade nos olhos dela.

***

Bah, sacanagem, hein.
Ele leva o olhar em direção à janela e permanece em silêncio.
E ela nem pensou duas vezes?
Mantém a expressão resignada, sem sequer mover os olhos.
E ela lá tinha o que pensar?

O ônibus não estava lotado, mas sem dúvida havia mais lugares ocupados que vazios. Depois de quase três horas de viagem, a maioria dos passageiros dormia. Alguns ouviam música ou liam, outros apenas  se mantinham sentados, olhando para a poltrona da frente. Entre origem e destino, existiam uma existência inerte. Se alguém perguntasse, talvez nenhum desses passageiros diria que ele estava realmente ali. Talvez nem o homem sentado ao seu lado. Talvez ele mesmo duvidasse, não tivesse consciência de estar de fato presente. Não a consciência do próprio corpo, das roupas que vestia, do que passava do lado de fora ou do homem sentado na poltrona à sua direita. Era a dor que ainda era capaz de sentir. Sabia que estava ali, sabia que estava vivo. Talvez uma vida. Daquelas em que a felicidade não fosse o jogo na prateleira mais alta. Adiando os dias que seriam dele por absolutamente nada que valha o que eles valeriam. E sentir ao pé do ouvido o passar das coisas que já ouvira. Saudade, é a palavra que ele não queria dizer.
Olha uma última vez para o homem, agora visivelmente compadecido, visivelmente sem saber o que dizer, visivelmente desejando não estar ali e não ter puxado conversa. 

Quando quem me interpreta é uma versão melhor de mim.