Passava da meia-noite quando chegou, depois de um dia inteiro de
espera no aeroporto para enfim pegar o penúltimo voo disponível. As pessoas
indo de um lado a outro arrastando malas de rodinha, carregando sacolas
de couro, procurando celulares que não paravam de tocar, dando a impressão de que eram importantes, sem ser. Um se sentir executivo, por circular naquelas salas e saguões, incontáveis cadeirinhas azuis, telões de voos atrasados e espera sem fim.
De mochila nas costas e carregando uma mala maior e mais pesada do que em teoria seria permitido não despachar. Olha o tamanho dessas malas, o rapaz-jovem-adulto da fila ao lado anuncia a uma comissária que o ignora sem pestanejar e fecha a tampa do bagageiro. Um cachorro mais à frente e uma criança mais ao fundo e um voo de cinco horas.
De volta, a cidade aguardava com a única recepção que lhe seria possível. As ruas vazias, vagamente iluminadas por luzes mórbidas de necrotério, nenhum sinal de vida noturna, ou de qualquer forma de vida, em parte alguma. As luzes do apartamento, a nova camada de poeira que se formara nos dias em que estivera fora e desfazer a mala, com mais esforço do que naturalidade. Dormir, depois de uma semana em que dormir não passava de uma lembrança de algo que um dia fora possível.
O sábado acordou nublado. Um meio-dia que a abundância sonora da obra dos fundos não permitiu ser meio da tarde. Um dia morto, porque dia-nada. Nada além de deixar o tempo passar entregando-se ao nada. No mesmo canal da TV passavam as mesmas reprises matinais dos mesmos seriados. Pensando em tomar leite com uma fatia de bolo ou biscoitos, voltou da cozinha com uma garrafa de vinho.
Se a memória fosse um dispositivo que pudéssemos controlar, e apagar e armazenar e modificar dados conforme a conveniência, talvez não fosse preciso se alimentar de álcool. Não para esquecer; se beber de fato nos fizesse esquecer a vida – também seria muito fácil. Para não pensar – por algumas horas, nas coisas que disseram, no que não se deram ao trabalho de perceber, na frustração diária, no trabalho vão, no querer outra coisa e outro lugar que vem das entranhas e toma conta de tudo.
Eu sou humana. Repetia como se precisasse repetir para acreditar. Sim, você é um deles. Hostil, preconceituosa, falha, ambígua, tola, insignificante, como todos eles. Estava fora de alcance entender o que quer que precisasse ser entendido enquanto o nível do líquido descia na garrafa. Ali era só o sufocar da dor, como nas músicas bregas de corno. E se fosse por um par de chifres a dor não seria o que era ali.
Merecia um porre. Um porre homérico, como nas legendas de fotos. Mais, um porre solitário. Só sozinhos somos capazes de acabar com dores que são nossas. E nos acessos de raiva, estresse, desilusão e falta de fé na vida, a autoconsciência que vem em uma crise de choro convulsivo. Chorando, lembrava-se de quem era. Em um milésimo de segundo todos os erros e acertos cometidos a vida inteira. Chorando, a consciência de si.
O dia passou e em seu encalço arrastou para o passado também o vinho. Mais uma vez, o inevitável não foi evitado. Antes de se deixar adormecer no sofá, o fundo é solidão, mas a superfície é o inferno, o excerto que a mente viciada já entoava automaticamente. Dormir com a voz que não era sua nas palavras que havia adotado.
O domingo acordou nublado, pouco depois das sete. Mais um dia morto, agora em pleonasmo. Sem ressaca, como se a vida dissesse: sem arrependimentos.
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