26 de outubro de 2013

a madrid dos teus sonhos

Ano depois de ano. Tudo o que aconteceu não daria mais que algumas linhas. Como pode ser assim, milhares de dias que, em livro, não seriam nada além de tempo morto? As esperas na rodoviária, os caminhos até a faculdade e o trabalho, as noites ocas, os dias que são só dias depois de dias, sucessão de nadas. Não é tédio, não é ócio; são todas as coisas que você faz sem saber por quê. As convenções sociais, as obrigações sociais de uma sociedade sem passado, presente ou futuro. Seres humanos que se acreditam no controle de suas vidas, que julgam ter uma vida quando em verdade o que fazem é passar com o tempo, envelhecer rumo a lugar nenhum. Tantos lugares, tantas possibilidades, tantos sonhos - todos potência, em suspenso, porque nunca serão. E como poderia ser diferente?

Talvez por isso não seja feliz. Talvez por isso felicidade, para mim, seja um conceito tão abstrato e impalpável quanto é para outros algo cotidiano, que eles podem sentir e quase tocar todos os dias. Me deixei ser presa nesse modo de vida que alguém decidiu padronizar, ganhe dinheiro e quanto mais melhor; nessa rotina medíocre e vazia, trabalhe, depois vá pra casa e se comporte, não seja diferente. Minha ideia de vida é outra coisa. Não mais ou menos do que isso; diferente. Difícil de imaginar porque ultrapassa a membrana desse microcosmos criado pelo homem.

- O que tu acha, Dani?

O personagem que pensa em qualquer coisa exceto na única em que deveria estar concentrado e é puxado de volta pelo chefe ou pelo colega impertinente. No telão estava a última versão do layout de uma das nossas peças. Acho ótimo, os elementos estão bem dispostos, as cores conversam, talvez pudesse aumentar um pouquinho a fonte, ali no canto direito, isso, mas é detalhe. Todos sorriem, balançam a cabeça e é isso, decidido, podem imprimir. É só dizer o que eles querem ouvir.

São oito horas. E eu me lembro de quando diziam que calma, só piora, e eu chegava a pensar que podia ser pessimismo. Imagina, não deve ser tão ruim assim. Não é. É pior. Todos os dias tentando mostrar a si mesmo e aos outros que você está presente, está fazendo o que precisa fazer e está fazendo direito, você é competente e profissionalmente satisfeito. Ninguém quer por perto alguém que não se encaixe.

*

Parei para comprar cigarros e estava sem dinheiro na carteira. Paguei com o cartão e fui até o caixa retirar. Umas dez pessoas já estavam na fila. Atrás do caixa do meu banco e da pequena imensa fila, ficava um caixa 24 horas. Saí da fila, troquei o cartão e saquei não uns trocados da minha conta, mas o dinheiro da poupança. Porra, ao diabo com esses limites de valor. Praguejei, mas a tela inerte não faria nada por mim.

Você assiste a centenas de filmes, lê centenas de livros e ouve centenas, milhares de músicas. Você imagina como seria sua vida se. Se tivesse nascido em outro no lugar, se fosse outra pessoa, se fosse gay, se fosse hétero, se fosse rico, se fosse pobre, se fosse finlandês ou ucraniano, se tivesse escolhido outro curso, se tivesse vendido o carro, se tivesse pegado o cara do bar, se falasse o que pensa e fizesse o que quer. Mas quando você realmente faz?

O mesmo lugar vazio, a mesma cidade morta.

*

Voltei para Madrid. A Madrid de verdade mais do que a Madrid dos meus sonhos e das minhas lembranças, mas ainda Madrid. Lá estavam todas as plazas, todas as calles, todos os nomes das estações do metrô que eu tanto amava. A cidade podia ter mudado, porque cidades mudam e mudam sempre, mas a sensação era a mesma dos anos atrás. O sentimento de pertença que poucos lugares oferecem sem exigir muito em troca, plenitude, aqui é meu lugar.

Em um seminário de literatura russa, conheci a Ana. A cadeira ao lado dela parecia a única vazia, comentários sobre os palestrantes, livros, escritores, pessoas sem noção que faziam perguntas ainda mais sem noção, se é que isso era possível, e no final ela me chamou para ir com ela e os amigos a uma festa qualquer na noite seguinte. E porque eu normalmente não iria resolvi que iria.

Eram pessoas, como diríamos, geniais. Gente com quem você se diverte sem fazer esforço; os rostos que surgem quando você lembra dos dias bons, das experiências que valeram a pena, das noites inesquecíveis. Ramón e Juan eram gêmeos e donos de um café, Antonio estudava arquitetura, Lena trabalhava em uma floricultura e Ana fazia o mestrado em literatura.

Saímos da casa dos gêmeos, onde começamos a beber, e já chegamos altos ao lugar na festa, uma portinha pequena demais que abria para um lance de escadas até o salão principal da casa. Empolgados, pegamos nossas bebidas e dançamos uma longa sequência de músicas até Lena decidir que precisava ir ao banheiro.

Eu tô completamente bêbada, disse rindo e tentando não cair do banco, em português mesmo, que àquela altura idiomas já não faziam diferença. That makes the two of us, a voz pastosa da Ana respondeu em um inglês carregado de sotaque espanhol. Ficou sorrindo e olhando pra mim, o batom vermelho já desbotando nos lábios. Encarei meu copo por um instante, como se procurasse nele algum conselho, um vá em frente ou pare por aqui, e, quando me voltei, nos beijamos. Paramos. Rimos. E nos beijamos de novo.

Katy Perry de leque e vestidinho curto, I kissed a girl and I liked it, Ana e eu, nossos seios e vestidos, nossas coxas, línguas e cabelos, mutuamente se tocando, exalando prazer.

Bom demais para negar, a música continuava a tocar na minha cabeça. Ana me convidou para ir à casa dela e porque normalmente eu não iria eu fui.

Pele na pele, as carícias maliciosas que arrepiam nossos pelos. Querida, não vamos para nenhum outro lugar, hoje é agora e esta va a ser la mejor noche de su vida.

A manhã é ensolarada e fria. Amanhã é hoje. Vida em toda parte na Madrid dos teus sonhos.

*

É claro que eu vou voltar. Vou voltar porque voltar costuma ser o que resta no final. Estamos sempre voltando, afinal. A vida é voltar, afinal. Mas por enquanto, por enquanto estou aqui. Amanhã é sempre hoje.

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