Durante anos e por um pouco mais de tempo percorremos a vida com a sorte dos bem nascidos. O mundo foi feito para nós, e nós velejamos por ele com sede. Gente como nós não conhece a dor ou o vocabulário da maioria. Gente como nós está aqui para tirar do mundo o melhor que ele puder nos dar.
Nas mesas dos cafés de todas as ruas corre em todas as bocas o mesmo burburinho: este é o momento em que nos tornaremos reis. Somos donos dessas ruas, e esta noite é a noite em que tudo pode acontecer. Olhos estranhos olham para nós como se viéssemos de um mundo diferente. São olhos inquisitivos que perguntam sem se mover. Quem são vocês, estranhos, que vêm ocupar o mesmo lugar que nós? Olhamos para eles e sentamos sem dizer palavra. O garçom nos traz o melhor vinho da casa. Nós brindamos o momento: somos felizes.
O asfalto corre sob nossos pés sem que sintamos o atrito. Você me olha com o rosto de quem quer ganhar o mundo e eu sorrio com o sorriso de quem concorda. Nossa vida é aqui e agora. Mas sabemos que a vida que nos vendem é pequena demais para nós. Sabemos que esse sistema não é outra coisa senão a subordinação de todos os aspectos do universo a um deles. Sabemos todas as regras de cor e vamos quebrá-las uma a uma.
Chegamos em casa com passos tropeçados e risadas altas demais para o horário. Na nossa vida a maldição tem o mesmo nome da rotina. As sombras dos nossos corpos iluminados pelas luzes da noite se movem na parede. Emaranhamos os lençóis e damos um ao outro todo o prazer do mundo. Nossa respiração ofegante sobe pelas paredes e ganha o quarto. Não há nada com que tenhamos de nos preocupar. Somos o espelho em que gostamos de nos enxergar. Você me abraça com os braços de quem pode tudo e eu te beijo com a boca de quem não quer mais nada. Pintamos o mundo com as cores que nos agradam e observamos satisfeitos nossa obra prima.
E ver como as mesmas palavras dispostas entre nós que outrora diziam o que vinham dizer agora não valem qualquer vintém. Assobios vêm de longe enquanto você desce a rua de bicicleta e eu lavo a louça do café, o pó molhado escorre pelo filtro e mancha de marrom as pontas dos meus dedos. Buzinas soam de repente enquanto você tenta frear a bicicleta e eu retorno à sala para ligar o som, o sol mergulha nos vidros da janela e chega ao tapete onde eu deito. Sirenes avisam quem passa na rua enquanto você é colocado em uma maca, enfermeiros rápidos tentam reanimar seu corpo inerte, e eu fecho os olhos inundada pelo sol no tapete. E ver como os mesmos sons que outrora enchiam nossos ouvidos agora são ruídos mudos que nossos ouvidos já não são capazes de ouvir.
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