Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue.
Quando li essa frase pela primeira vez, e isso foi há pelo menos dez anos, me senti acolhida. O autor há muito já estava morto, mas a ideia de que alguém em algum momento da nossa trajetória infame proferiu essas palavras ainda é uma espécie de conforto. Pensar na solidão como requisito para uma tarefa a ser cumprida é quase uma sensação de poder. Mudar a face do mundo. Cabe a mim, cabe aos solitários espalhados pelo mundo que jamais conhecerei.
Minha vida é igual a tantas outras vidas que trabalham, tentam manter a casa em ordem e equilibrar o que os dias exigem. Molhar as plantas, alimentar o gato, primordialmente não deixar que morram, reabastecer a despensa, não quebrar as taças de vinho que custaram caro. O suficiente para se manter vivo. A gente vai lá, a gente tenta, a gente se atura, não dá certo, a gente desiste, o cara vai embora e eu fico com alguns lençóis pra lavar e uma escova de dentes pra jogar fora. Primeiro era triste, então passou a ser desgastante e hoje não é nada. Perder ninguém perde, no máximo fica tudo igual.
Igual a tudo o que eu sou, porque mais ou menos do que isso já não seria o que eu sou. Nem um extremo nem o outro, nem oito nem oitenta. Porque a vida, do jeito que costuma ser na prática, não diz respeito aos extremos, mas a tudo o que fica entre eles. É nesse miolo que a maioria grosseira das pessoas vive, e é no meio, e não nas pontas, que as coisas acontecem.
Tinha recém chegado de viagem, e umas amigas me chamaram pra beber. Passamos por três bares, seguindo a sequência dos horários de fechamento, até acabar no último, um boteco de cerveja barata que basicamente não tinha hora para fechar. Ainda que nunca mais tenha o mesmo efeito que costumava ter na adolescência, beber é sempre uma promessa boa. De esquecer, de rir sem motivo, dançar, falar o que não se falaria.
E na calçada nós encontramos o Ciro. Ele era bonequeiro, uruguaio, doze anos mais velho e um beijo do tipo que se busca, que encaixa como tem que encaixar, macio, marcante. Conversamos, minhas amigas foram embora, bebemos mais, conversamos mais. No apartamento dele, um conjugado não muito longe de onde eu morava, me apresentou o Gauche, o cachorro mudo que ele pegou na rua. Gauche não latia nem rosnava e por isso era um doce. E educado também, ia e vinha sem a gente precisar pedir. Ciro me mostrou a casa, e eu queria ter gravado o nome da banda que ele botou pra tocar, mas não gravei.
Eu acho meio deprê.
Sério? Eu não achei nem um pouco. Pelo contrário. Muito bom de ouvir.
Ah, que bom que tu gostou. Eu adoro essa banda.
Tem um dos bonecos aí pra eu ver?
Claro, pera aí.
Estava frio, e nós transamos três vezes aquela noite.
Que é isso? Por que tu fez isso? Eu não vou transar contigo sem camisinha, seu idiota.
Já era tarde.
Tu tá brava comigo? Não briga comigo.
Ele tinha quase quarenta anos e era uma criança me pedindo pra não brigar, pra não ir embora. Olhei a madrugada pela sacada do quarto. Fazia ainda mais frio do que eu pensava. A cidade que sempre dormia, longe de tudo o que poderia me fazer viver. Voltei para a cama, ele me esperava com dois cigarros acesos.
Gostosa. Tu é muito gostosa.
Fui juntar o grampo do meu cabelo e senti no chão uma tarraxinha perdida. Ele tinha um beijo impressionantemente bom e um cabelo que pedia para ser bagunçado. Quando amanheceu, fui até a cozinha tremendo de frio, catando minhas roupas pelo caminho. Gauche seguiu cada um dos meus passos e ficou encarando enquanto eu me vestia, como se quisesse falar.
Abre lá pra mim?
O quê? Tu tá indo embora? Tu não vai embora.
Tive vontade de voltar até a cozinha e passar um café bem quente e forte, meus olhos ainda fechando com o sol que entrava pela janela, mas essa era uma intimidade que eu não teria.
Como tu espera que eu te deixe ir embora? Ainda mais assim, fazendo esse cafuné na minha barba.
Ah... Vamo, abre lá pra mim, eu tenho que ir. É sério.
Ciro levantou, vestiu um blusão, uma calça de abrigo, não pensou em fazer café.
Tá vendo isso, Gauche? Ela tá indo embora, dessa maneira totalmente fria e gelada.
Nos beijamos ainda na porta, no elevador, no portão.
Bah, a gente não trocou telefone, né? Me dá um toque, aí depois eu posso te ligar.
Andando até em casa, o sol cegava meus olhos, e poucas vezes eu quis tanto um óculos escuro. O vento frio gelou meus ouvidos até doer, e poucas vezes eu quis tanto um protetor de orelhas. No caminho, lembrei de entrar em uma farmácia.
Oi, eu preciso de uma pílula do dia seguinte, vocês têm?
Temos, claro. E que bom que temos, né? No meu tempo a gente não tinha essa possibilidade, ainda bem que hoje existe.
É, pois é, ainda bem.
Ciro não ligou, como eu sabia que não ligaria. E é estranho, ainda assim. Ter certeza e não conseguir evitar a frustração. Esqueço os rostos, os nomes, as datas, mas levo os vestígios dos homens que não me amaram. Uma névoa, uma lembrança, um sentimento que precisa descansar porque já está acordado há tempo demais. Mas não há jeito de dormir. O amor nos manteve acordados por uma noite.
Quando minha menstruação atrasou, vivi uma mistura confusa de medo e angústia. Imaginei um filho e como eu faria para não tê-lo. Imaginei um bebê, o dinheiro que ele custaria e o dinheiro que eu gastaria para que ele não existisse. Mães aleatórias passavam empurrando suas crianças em carrinhos por mim na rua, e eu tentava descobrir a sensação de ter meus dedos segurados por uma mãozinha tão pequena de alguém saído de dentro de mim. Talvez se chamasse Emílio, Ítalo, Daniel. Talvez Ana ou Antônia.
E eu seria uma boa mãe? Antes disso, eu lá teria capacidade de ser mãe? Não deve haver no mundo mulher que não tenha se perguntado. Pelo menos uma vez. Eu seria uma boa mãe? Me olhei no espelho e não vi nada. Nem mãe nem filha. Só eu, porque qualquer coisa diferente disso não seria eu.
Incrível pensar em todas as coisas que acontecem no mundo. Não há como dimensionar, mas todas acontecem com alguém, quem quer que seja, e acontecem exatamente agora, porque sempre é agora. Passam nove séculos ou nove meses, mas tudo o que acontece acontece agora. Tudo o que realmente acontece acontece a mim. Minha tarefa prossegue.
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