22 de julho de 2013

a presença

Toda a raiva reprimida, sufocada, anestesiada durante não interessa quanto tempo desferida em golpes no colchão, nas almofadas, com toda a força possível para um corpo deitado, soluçando com o rosto enterrado entre outras almofadas, gritos surdos abafados por essas almofadas para que os vizinhos não ouçam, nem a pessoa na sala. Os olhos vermelhos, mas não era maconha, antes fosse, e ardiam como se queimassem dentro do globo ocular. A dor de forçar a mandíbula sobre o travesseiro. Soltar de qualquer forma o que precisava sair, o sentimento engasgado que impedia a chegada de ar novo aos pulmões. E a mão doía dos socos dados sobre a mesa. Qualquer um diria que é loucura. Essa pessoa claramente tem problemas emocionais e de autocontrole. Autocontrole. Autocontrole. Autocontrole é o cacete. É bonito demonstrar amor e felicidade mas quando se demonstra raiva é falta de controle. São hipócritas e vendem essa ideia ridícula de uma vida bonita e certinha. Raiva. E mesas e almofadas serão socadas, gritos serão dados, cabelos serão arrancados e choros serão ouvidos ou abafados. O gosto salgado das lágrimas. A merda de não estar sozinho. Não pode andar sem roupa, não pode ouvir música alta, não pode gritar, não pode chorar, não pode escolher o canal da TV, não pode ir ao banheiro e deixar a porta aberta, não pode porra nenhuma de tudo o que você fazia antes. Não do mesmo jeito. Não à vontade. Porque ninguém é o que é quando a outra pessoa está presente. Porque a pessoa está ali, na sala. Ou vai chegar a qualquer hora. E por mais que seja só uma presença silenciosa ela desordena tudo aquilo que levou tanto tempo para ser ordenado. Uma rotina. Uma série de hábitos. Uma vida inteira. E já não há mais nada. Só raiva. E o desejo incontrolável de viver nos lugares que não existem. Não estar. Mas não: a vida é aqui e agora, e contra tudo o que se pode querer. São casas e pequenos prédios de tijolo à vista e janelas e portas de madeira não pintada. Espiar para dentro, imaginar aquelas vidas, ansiar pela solidão. A sensação de chegar em casa e sentar no sofá e sentir a paz desse momento porque é o lugar mais aconchegante que poderia existir. Mas a pessoa está lá. E das 24 horas de um dia, das 24 horas de todos os dias, não há mais uma sequer em que a pessoa não esteja lá. No mesmo sofá, na mesma cozinha, na mesma pia do mesmo banheiro, na mesma cama. E toda aquela diligência irritante de quem não se incomoda com outra presença; mais do que isso, de quem gosta dessa presença. De longe o som da voz de quem um dia disse que ninguém quer ficar sozinho. O paradoxo das vontades e desejos que, por escolha própria, nunca iremos satisfazer. Ao lado da pessoa que está sempre ali, que faz o almoço e o café da manhã, que lava a louça e não é capaz de ir embora, a descoberta inevitável: eu não quero mas nasci para ser. E aos poucos o corpo sucumbe ao impulso. E para a pessoa que está sempre ali não poderia haver dia pior, mas seria o dia de alforria. Arrancar da pele uma vida que só existe na superfície, romper o elo da presença contínua que exerce essa força centrífuga viciosa. E deixar para trás todas as marcas de identidade e os vestígios materiais da pessoa que se foi. Não importa onde - para nunca mais voltar.

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