1 de junho de 2013

a água

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
Lá é diferente.

*

Viram-se a uns poucos metros de distância, cada um andando em um sentido na calçada, e quando chegaram mais perto Nicolau deu início ao gesto de levantar o braço e desenrolar a corda do cachorro ao mesmo tempo para cumprimentá-la. Não era a primeira vez que um encontro desse tipo acontecia, com os dois passando por aquele trecho da rua todos os dias, mas era a primeira vez que se cumprimentavam.

E aí, como é que tu tá?, Tudo bem, e contigo?, um meio abraço e um beijo e o cachorro pulando nas pernas dela.
Tá lá no jornal ainda?
Não, saí. Tô trabalhando em uma revista agora. Não é muito conhecida, mas é ótimo.
Bah, outro dia – é Camila, né? – outro dia uma Camila me ligou pra marcar uma entrevista. Não era tu, né?
Não, não. Eu sei quem é, mas não era eu, não.
Ah tá, menos mal. Eu não queria parecer rude, mas eu tava muito atucanado.
É, ela comentou comigo. Mas imagina, ela entendeu a situação. E como é que o nome dele?
Era um vira-lata. Tinha o pelo meio bege, mistura de marrom com cinza, uma cor completamente indefinida, com manchinhas mais escuras espalhadas pelas costas. Continuava faceiro, balançando o rabo, entre pular e cheirar os tornozelos da estranha à sua frente.
Ah, é Guapo.
Ah, que nome ótimo! Perfeito pra ele.
Por quê?
Tipo o dono.
Ele sorriu, e ela queria virar, esquecer que a pós-graduação existia e seguir caminhando com ele e Guapo.
Mas então tá. Legal te ver!
Bom te ver também. A gente se fala.

Manhã de outono, o sol mal começando a iluminar a ponta das copas das árvores, o vapor escapando das bocas dos dois, chimarrão na mão. Todo o gauchismo que a situação merecia. Bah, mas então tá, legal te ver e um cachorro chamado Guapo. Assim começou.

*

Ver-se em alguém é diferente de ver a si próprio, num espelho ou em pensamento. É uma imagem terceira de dois rostos ao mesmo tempo, de uma maneira que só é possível em uma tal cumplicidade que não existe todos os dias. São olhos que se entregam de rostos que se conhecem de corpos que se chamam. Um amor sublime que a nem todas as vidas é dado viver.

O mundo não era mais nada enquanto ele dormia ao seu lado. De longe, dava pra ouvir os passos do cachorro e o resto da chuva pingando das árvores na calçada. As peles dos dois, coladas uma na outra, não poderiam ser mais distintas e ainda assim eram a mesma. Os olhos que se abrem lentos pedindo um cigarro, costas que se aconchegam entre travesseiros e peitos nus. O tempo parava naquelas madrugadas de felicidade silenciosa. As horas se estendiam e atrasavam a manhã. Como se a vida enfim se curvasse ao desejo de dois amantes.

O frio que faz no sul convida ao amor e à solidão, que se intercalam em uma sucessão infinita de invernos infelizes e inebriantes. E quando tudo acabou, com a chegada da primavera, ela sabia que a vida cobrava o que havia dado. Nada é de graça, não há extremo sem oposto. Nico se foi como as sombras que desaparecem nos dias nublados; o que fica no lugar não é nada senão a superfície vazia e sem contraste de antes. E voltar a ser o que se era - antes, no passado odioso que todos querem apagar. A vida não é justa com quem não merece justiça.

*

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
A PORRA DA MINHA VIDA É DIFERENTE.

Veio o silêncio, um olhar perplexo, expressões que não sabiam o que queriam expressar, cansaço, mágoa, rancor. Não estar apaixonado é como querer carregar água com as mãos. Você pode tentar quantas vezes quiser, mas nunca vai conseguir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário