As chamas que subiam e a fumaça, levando ao céu nossas memórias em uma noite gelada de verão.
Crianças, nós atirávamos com a espingarda de um velho avô. Nunca chegamos a acertar o centro. Andávamos no balanço da árvore. Juntávamos pinhão. Andávamos a cavalo, e a Sucata, nossa égua preta, talvez já estivesse cansada de nos carregar. Nos dias de chuva, jogávamos carta ou sujávamos as mangas das camisetas colorindo folhas em branco. Quando nenhum dos avós olhava, pulávamos a cerca da lavoura e corríamos livres no potreiro. Porque tudo nos chegava maior do que era de fato, o verde gasto daquela grama parecia não ter fim. Os problemas do mundo não nos atingiam, e nossas pipas sacolejando ao vento satisfaziam nosso desejo de voar e voavam nossas fantasias infantis.
Década e meia depois, já não há balanço, pipa ou avós que nos implorem para pegar o casaco ou sair do sereno. Há só a grande fogueira e nós, sentados em seu redor, nossos laços de sangue vencendo o tempo.
Os cabelos brancos agora são dos nossos pais. E nós, nós agora somos mais altos e o mundo parece menor.
Meus primos atiram mais grinfas na fogueira, e as chamas já passam de nossas cabeças. As faíscas soltam-se e se espalham ao sabor do vento. Faz frio demais para uma noite de dezembro. Ao sul de todos os trópicos, sangue latino esquenta nossas almas. Estouramos o primeiro champanhe antes da hora e nos pomos a olhar o fogo, deixando o álcool subir e falar por nós.
Faltam dez minutos.
Dez minutos pode ser muito tempo.
Se vocês soubessem agora que só têm dez minutos de vida, o que vocês fariam? Tipo, o que vocês nunca fizeram que seria possível fazer em dez minutos?
Gritaria até a garganta doer.
Contaria um segredo.
Eu diria que amo vocês e que esse lugar, que é mágico, é o único lugar possível para essa noite.
Vizinhos ao redor antecipam foguetes. A véspera de Ano-Novo vai se acabando, respira os últimos minutos. Vaga-lumes piscam à nossa volta. O céu estrelado nos deixa ver constelações. De voz embargada e nostálgica, trazemos ao fogo o que mais lembramos de nossos pais e avós. Os pais, irmãos, eram iguais. O tio gostava de caipirinha. A tia também. Teu pai assava os melhores churrascos. A mãe de vocês era muito brava. O vô ficava tamborilando os dedos na poltrona durante os comerciais da novela. Na hora de bamo já se fumo. E a vó, que fazia a melhor massa com galinha de todos os tempos.
Sete minutos.
Ainda temos duas garrafas.
Estoura mais uma aí logo, sem chance de deixar o serviço incompleto.
Mais foguetes nos vizinhos, gritos ansiosos por outro novo ano de promessas velhas. É vida que se renova. O mundo ainda não vai acabar.
Começo a gritar. Toda a força que consigo reunir na voz, todo o ar que sou capaz de puxar dos pulmões. Os primos me acompanham. E gritamos e imaginamos até onde nossos gritos poderiam ser ouvidos. Gritos de sul, carregados de uma mistura de sotaques de quem viveu em tantas partes que já se perde nas contas.
E o teu segredo?
Eu nunca quis sair daqui.
Um silêncio de poucos segundos diz mais do que qualquer um de nós poderia.
Tudo bem. Agora estamos de volta.
Mais cinco minutos, abrimos a última garrafa. Mesmo na noite fria a letargia do verão nos atinge. Como nas tardes intermináveis na varanda, de beber chimarrão e assistir às cores do céu.
São poucos momentos na vida os capazes de definir uma pessoa; noites como aquela fazem de nós o que somos. Nossas três vidas jovens, unidas por laços familiares que se formaram e geraram descendência ao longo de séculos, estavam enraizadas naquele chão e ali ficariam para sempre. Escutamos as contagens regressivas que começavam nas casas vizinhas. Dez! Nove! Oito! Olho nos olhos dos meus primos: estão sorrindo. Sete! Seis! Cinco! Damos as mãos e nos aproximamos do fogo. Quatro! Três! Dois
Gritos, brindes e foguetes preenchem o mundo enquanto nossos corpos ardem. Nossa dívida está paga.
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