22 de janeiro de 2014

a quadra

Deixei-o no hospital por volta das dez da noite. O irmão estava em uma cirurgia e não tem por que tu passar a noite aqui também, ele me disse. O irmão autista que havia sido atropelado e a namorada que ia pra casa porque trabalhava cedo no dia seguinte. Te ligo antes de dormir, eu disse, qualquer coisa me avisa.

Antes de chegar no táxi, o celular tocou. Onde tu tá? Vem aqui pro Syls, tá todo mundo aqui. E quem é todo mundo dessa vez? No táxi, dei o endereço do bar. Tava todo mundo lá. Os amigos formandos ou quase formandos, os amigos de fora da cidade, uma mesa de degenerados de diferentes espécies.

Tava no hospital, o irmão do meu namorado foi atropelado.
Bah, que merda.

Ele chegou um pouco depois, quando eu já terminava a primeira cerveja. De todo mundo ali, era o único escritor de verdade, com livros publicados fora do país e sucesso razoável. Fez sinal pro garçom pedindo um copo a mais, puxou uma cadeira e sentou na minha frente. E aí, nunca mais tinha te visto. Pois é, como é que tá? Levando, semana que vem vou pra Alemanha. Eu ri e pensei em dizer que quem leva a vida não costuma ter a Alemanha como cenário ou destino, mas me calei.

Não é preciso discorrer sobre uma noite dessas. Todo mundo sabe como acabam as conversas embaladas pelo efeito do álcool, onde terminam os flertes do percurso, disfarçados em meio às risadas sonoras.

Vai pra onde?
Pra casa.
Te acompanho.

Foi questão de uma ou duas quadras. Eram os planos dele e também os meus, uma cerveja a mais e um livro autografado. Faz parte do jogo. Enganar-se, mentir, sorrir de canto, dizer uma coisa sabendo que se diz outra.

O cachorro esperava à porta. Coitado, preciso dar comida pra ele.

Transar com um homem mais velho nunca foi exatamente uma fantasia minha - transar com ele era. O fato de ser mais velho era um adicional. O romantismo sujo trabalhado pelos anos e a consciência do toque, sem carinhos desnecessários. O que corre enquanto estamos um sobre o outro não é um fluxo de pensamentos. Tampouco as narrativas que os povoam. O mundo não precisa acreditar no prazer e não precisa acreditar em orgasmos múltiplos. A corrente que percorre o corpo inteiro, seca a boca, contrai músculos, revira os olhos.

Ele era um desses homens. Da literatura de todos os tipos. Livros e fluidos corporais. Nomes mortos de todos os séculos nos observavam. A luminária era pequena, mas clareava quase todo o quarto. Tons laranja-amarelados que jogavam uma miríade de sombras sobre o chão e as paredes. Apaguei o cigarro e fui até os livros empilhados ao lado da cômoda. Quando levantei, ouvi o clique da câmera.

Porra. Deixa eu ver.
Não vai me obrigar a apagar.
Não, na verdade não.
Não.
Tem um quê de vaidade, saber que tu tem uma foto minha sem roupa.
Eu posso jogar na internet.
Tu não vai fazer isso.
Mas posso fazer.
Bom, mas não tem nada do que eu me envergonhe aí, então.

Quanto tempo leva uma decisão? No espaço de uma quadra, no espaço físico e temporal de uma quadra e uma noite quente de meia estação. As luzes da cidade ao redor, vorazes e mórbidas.

Na calçada, chequei o celular. Ele tem uma foto minha. Uma chamada perdida do meu namorado. Eu dormi com ele. O irmão podia estar bem ou podia ter morrido. Eu transei com ele. Eu não liguei antes de dormir. Merda.

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