4 de agosto de 2010

eu ouviria


"Quem guarda seus bebês guarda pedaços de si. Eu acho, eu guardei minha boneca antiga e lembro de um tempo que não lembro de verdade, mas invento."


Estou em uma prateleira, em cima de um pequeno armário. Bem à frente do meu pé esquerdo, jaz um mosquito. E ao meu lado esquerdo fica a porta do quarto que dá para o pátio dos fundos.
Daqui o cenário é sempre o mesmo: a cama, a prateleira com a televisão de plasma, o armário e a porta do quarto. Não há muito que se ver; ou o quarto está vazio, ou ela está sentada sobre a cama assistindo à televisão, ou na cadeira em frente ao notebook, ou simplesmente dormindo. Às vezes aparecem outras pessoas: amigos que vêm beber e fumar, a família, sempre tentando organizar as coisas de uma maneira melhor, o namorado. Mas na maior parte do tempo ela está aqui sozinha, cuidando sozinha da vida de que eu só conheço a parte que se passa neste quarto.
Eu passo todo o meu tempo observando. Não durmo. Tampouco morrerei um dia. Talvez ela se desfaça de mim, me passe adiante como fez seu pai e, antes dele, a mulher que me buscou na loja. Enquanto nada acontece comigo, porém, eu fico aqui, observando atento cada movimento, cada mudança, por mais sutis que possam ser. Não tem grandes altos ou baixos uma vida como a minha: eles se resumem aos altos e baixos de vidas alheias que eu tenho a oportunidade de presenciar dia ou outro. No entanto, digo, é na serenidade e na calmaria que tomam corpo os pensamentos serenos e calmos, dignos de meu cuidado.
Às vezes, ela almoça no quarto. Às vezes, ela tenta estudar, sempre parecendo inconformada com todos aqueles papéis. Às vezes, ela se olha no espelho. Às vezes, ela fala sozinha coisas que nem sempre eu compreendo. Da vida, de pessoas e sentimentos que eu não conheço, de um futuro e de um sentido que ela não consegue enxergar.
Quando ele aparece, eu fico satisfeito. Ela assiste à TV e vai e volta até o banheiro ou a sala enquanto espera, mas quando ele chega ela sorri. Os dois se beijam e riem e brincam um com o outro. É quando eu vejo a felicidade – o que eu imagino ser a felicidade: as rugas que se formam no canto dos olhos deles enquanto em suas bocas se esboçam sorrisos bonitos. São risadas gostosas. E, para quem assiste a tudo parado, melhor do que a felicidade é o som que ela é capaz de fazer.
Outro dia, no entanto, há mais tempo do que essa felicidade, ela fechou as portas do quarto, apagou a luz, deitou-se na cama e chorou. Era uma tarde de final de semana. Era possível ouvir os vizinhos do andar de cima, que conversavam alto e riam ouvindo música gaúcha e sertaneja. Mas ela, aqui, à minha frente, estava sozinha. Eu a via de longe, sereno, no canto do quarto reservado para mim, como em todos os outros dias, e via seus olhos marejarem aos poucos. Então ela afundou o rosto no travesseiro, na tentativa de abafar o som dos soluços e do choro. Estava tão triste. Desesperada. Eu torci para que algo acontecesse, qualquer coisa que fizesse aquela tristeza mais amena. Foi quando o celular tocou. Ela atendeu e, logo depois de desligar, jogou roupas na mochila e foi embora. Os olhos ainda estavam vermelhos quando ela saiu pela porta. Ela ainda sofria com algo que eu nunca saberei o que é – no sentido de que nunca poderei sentir. Mas ao menos estava indo embora. Ao menos o som havia parado. Porque, para quem assiste a tudo parado, pior do que a tristeza é o som que ela é capaz de fazer.

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