7 de fevereiro de 2010

o fogão

O sono, atrasado, agora fazia pesarem suas pálpebras de menina. Um rosto tão macio e inocente não merecia aquelas olheiras. Os olhos azuis e doces não mereciam aquelas lágrimas amargas. Deixou de lado, então, sobre a mesa de centro, o bauzinho de cartas e fotos e atirou-se sobre o sofá como o faria a menina de dez anos que trazia dentro de si. Deitou a cabeça sobre a almofada, cobriu-se com a capa do próprio sofá e deixou-se vencer pelo sono, atrasado. Entregou-se à agradável sensação de apagar, de se livrar do mundo e da vida, mesmo que por um período de que ela sequer poderia sentir o tamanho. Ainda antes de dormir, pôde aspirar o gás, vindo do apartamento da vizinha. A velhinha, beirando os oitenta anos, sempre acordava cedo para cozinhar e assim ia até tarde da noite, mas o fogão já era tão velho, e todos os vizinhos próximos sentiam o cheiro de gás vindo da cozinha dela o dia todo. Ih, esse não tem mais conserto, ela lamentava, mas minha aposentadoria não chega pra um novo, e esses remédios todos cada vez mais caros também, não dá, não. Naquela noite, no entanto, a velhinha não estava mais cozinhando. O filho, de férias, a levara mais cedo para duas semanas em Fortaleza, sabendo do antigo desejo da mãe de conhecer a Dragão do Mar. E os vizinhos acharam graça do fogão da velha, que, mesmo já desligado, ainda espalhava seu cheiro pelo prédio.

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