Ela tem a vida que eu queria. É fotógrafa e amiga de outros fotógrafos. Conhece, trabalha com ou é também amiga de músicos, escritores, poetas, artistas. As fotos dela são incríveis e me fazem pensar em como. Como é possível sempre estar lá quando acontecem os momentos que se transformam em fotografias – que se transformam em arte. Ela é a prova, literalmente viva, de tudo o que eu não sou.
O nome dela – Camila Severino – é citado com frequência, e não sou capaz de dizer que o trabalho não mereça a badalação. São fotos em cafés, bares, livrarias, parques, praças, ruas. Lugares e pessoas sempre bonitos. Viagens, encontros, coisas interessantes, e em tudo aquela aura de diversão, de entretenimento, é, eu sou paga pra isso, é assim que ganho a vida. Camila canta também. É linda e feliz.
Outro dia, não há muito, postou uma foto – tirada pelo Leon, ela disse. Leon era Leon Eifler, escritor bem sucedido que eu tivera a chance de entrevistar uma vez e que, dada a bonita mistura de tons de cinza, a câmera olhando diretamente para a expressão leve no rosto dela, certamente era um dos amigos artistas. A foto mostra um apartamento conjugado, a luz do sol entrando pelas janelas. Estavam sozinhos?
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Era uma quinta-feira do começo de dezembro. O calor costumeiro de Porto Alegre que não se envergonha em chegar cedo demais, vestidos e bermudas, braços, ombros e pernas à mostra. Camila trabalhava com uma banda e, em São Paulo, passava os dias entre fotografar os shows e tomar uma cerveja, na companhia de Leon e outros caras. Dois escritores, um poeta, dois fotógrafos, cinco músicos, as namoradas dos que tinham namoradas – esse era o grupo da Camila naquela quinta-feira.
Quanto a mim, estava sentada em uma cadeira, em um fim de noite de turma, no apartamento de uma das meninas. A maior parte dos colegas já havia ido embora, e além dela e do namorado restavam só mais três pessoas. Em outra cadeira, do lado oposto da sala, estava o Beto e no sofá entre nós, o Felipe, com quem eu já havia ficado algumas vezes, algumas semanas antes. Era inteligente, não era feio, ótima companhia e alguém com quem até então eu costumava gostar de conversar. Mas ele gostava de mim.
Minutos antes da sala, nós estávamos na cozinha, um de frente para o outro, e quando o assunto acabou eu gastei um pouco mais de tempo olhando diretamente para ele. E tudo o que havia de instigante no Felipe desapareceu naquela hora. Me olhava como se nunca tivesse visto uma mulher ou como se eu fosse alguma espécie de divindade que tivesse de ser admirada enquanto havia tempo, como se eu pudesse sumir no ar a qualquer instante. A feição do rosto dele não poderia ser mais insuportável de olhar. E não importava o assunto novo que eu trouxesse ou quantas vezes eu virasse de costas e olhasse para outros lugares – a expressão na cara dele continuava a mesma, patética, tosca, abobada. No sofá da sala, ela ainda estava lá, e ele não desviou os olhos de mim enquanto tirou os tênis, depois as meias e começou a mexer nos pés. Do outro lado, o Beto me olhou. Meio rindo, meio embasbacado. Tanto quanto eu.
Eu nunca tinha vivido ou assistido a nada tão repugnante. Felipe destruiu a si mesmo em menos de uma hora e, diante da minha estupidez, conseguiu fazer aquela noite a pior da minha vida. Não dormi. Saí assim que o dia clareou, enojada, sentindo toda a sujeira do mundo no meu corpo, e chegando em casa fui direto para o chuveiro. Lavar e esquecer.
Em São Paulo, Camila, Leon e todos os outros estavam em um dos bares da Augusta. Sentados ao redor de três mesas, bebiam e conversavam. Eu podia ouvir, na foto que registrou a noite, as risadas mais graves dos homens entre as mais agudas das mulheres. As maquiagens e sorrisos bonitos delas. O jeito deles de vesti qualquer coisa e vim. A harmonia que parece transbordar quando pessoas bonitas, educadas, inteligentes e interessantes decidem se reunir.
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Entrevistei Leon meses depois dessa noite, tão desastrosa para mim quanto agradável para Camila.
Ele me recebeu quase como se eu fosse uma amiga. Mesmo sem nunca ter me visto, deu-se o direito de diminuir meu nome, chamando pelo apelido óbvio, uma atitude de quem sabe que, apesar de soar ousado, uma intromissão, trata-se na verdade de um gesto carinhoso. Foi encantador durante todos os minutos da hora que passamos conversando. Trocamos um beijo no rosto na despedida, e do lado de fora, enquanto esperava o motorista do jornal, não pude deixar de pensar no privilégio que ela tinha, possivelmente sem se dar conta.
Durante quase um ano e meio, Camila namorou um dos integrantes da banda de que era fotógrafa. Terminado o namoro, teve início a aproximação com Leon. Quase automaticamente. A amizade, as fotos, os dois no mesmo apartamento. As coisas simplesmente acontecem para ela. Com ela. Na vida dela. A vida que eu queria.
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Estou na cozinha lavando a louça depois do jantar. Na sala, ele assiste a alguma coisa na tv. No momento em que eu termino de lavar o segundo prato e pego a panela de cima do fogão, ele me puxa pela cintura, empurra o registro da torneira e me leva até a sala. A tv está desligada e o som vem agora do rádio, que toca Burning Love. Ele sabe que eu sou uma garota Burning Love muito mais do que Love Me Tender. Minhas mãos ainda molhadas marcam o moletom que ele usa enquanto me conduz para um lado e para o outro antes de começar a me rodar e depois a rodar comigo pela sala. Se não for o único, Leon é um desses poucos homens abençoados e fica extremamente sexy usando abrigo. E ele dançando comigo essa noite, o fato de ter me tirado para dançar enquanto eu lavava a louça – é simplesmente gracioso. Em cada movimento, o meio sorriso todo para mim, os olhos castanhos nos meus. Muito mais do que eu poderia imaginar ou esperar de um sonho.
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A ex-namorada de Leon não mora mais na cidade. Quando li o primeiro livro que ele escreveu, há mais de cinco anos, um detalhe me escapou para só ser notado recentemente: um dos contos foi dedicado a ela. pra Marília. As letras pequenas em itálico, simples e bonitas, logo abaixo do título.
Não sei nada dela, da Marília, além do fato de que se mudou. A história dedicada é viva – ardente – carregada de verossimilhança – e eu imagino o que há de verdade para além daquela ficção. Mas também não sei. O que sei é que quando notei a presença das duas palavras – pra Marília – durante vários minutos não consegui olhar para outra coisa na página. Eu estava longe, minha cabeça mergulhada em devaneios.
Tentei imaginar a sensação de ter um livro ou um conto dedicado a mim. Mas, muito mais do que isso, pensei em como seria se eu tivesse alguém para quem pudesse dedicar uma história. Alguém tão especial que merecesse as que poderiam ser, talvez, minhas melhores palavras. E alguma coisa dentro de mim teme a possibilidade de essa pessoa nunca existir. Do amor não existir para mim.
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Camila é social. De algum modo, atrai as pessoas, acontece, vive. Eu a invejo a cada demonstração que tenho disso. Por mais que eu me debata contra o mundo que me cerca, o meu mundo, todos os meus esforços não surtem qualquer efeito. Eu não consigo me livrar de nada - nem dos lugares, nem das pessoas, nem do trabalho, nem das palavras. É possível que sejamos de tal modo atrelados a um tipo específico de futuro? Alguns de nós vêm ao mundo com a sorte da Camila, outros não e não há nada que se possa fazer a respeito? Eu tendo a acreditar que ainda não fiz o suficiente - que ainda não me debati com a força necessária para romper a bolha ridícula em que estou presa. A Camila é a prova do que eu não sou, mas é também a de que existe a possibilidade. E se eu não acreditar nisso, se um dia eu parar de acreditar nisso, então não haverá mais nada.
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Estou saindo atrasada do apartamento de Leon. De propósito, ele não ativou o despertador na noite anterior, e eu abro os olhos com um susto, uma hora depois do que deveria. Ele acorda com a minha movimentação pelo quarto, juntando e vestindo as roupas ao mesmo tempo em que tento escovar os dentes e pentear os cabelos. Dou uns tapas nele e ele ri, enrolado no edredom. Vem cá, volta pra cama, pede enquanto jogo o celular e a necessaire na bolsa. Me abaixo para dar um beijo de tchau e quando me viro para sair ele fica me puxando pela mão. Não posso, eu digo, não faz isso. Ele me solta, eu jogo outro beijo e sigo para a sala, em direção à porta. Giro a chave, chamo o elevador, abro a porta da rua no hall e paro. Não posso, eu penso. E faço o caminho de volta para ter o corpo inteiro beijado.
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Eu preciso acreditar, eu penso. Ou não haverá mais nada.