30 de junho de 2013

a maldição

E ver como as mesmas pessoas que um dia amamos agora são pessoas que não conhecemos. Luzes piscantes fazem o ambiente oscilar entre luz e sombra enquanto você dança sem saber por quê e eu busco mais uma bebida, o líquido ultrapassa as bordas do copo conforme desvio dos corpos ao redor. Vermelho, verde e branco se alternam enquanto eu viro o rosto à procura de alguém e nossos olhos se batem numa fresta entre outras cabeças, ombros e braços. Risadas começam e terminam enquanto você se aproxima e eu continuamente levo o copo à boca, a química entre nossos corpos começa a fazer sentido. E ver como as mesmas pessoas que não conhecemos agora são pessoas que amamos.

Durante anos e por um pouco mais de tempo percorremos a vida com a sorte dos bem nascidos. O mundo foi feito para nós, e nós velejamos por ele com sede. Gente como nós não conhece a dor ou o vocabulário da maioria. Gente como nós está aqui para tirar do mundo o melhor que ele puder nos dar.

Nas mesas dos cafés de todas as ruas corre em todas as bocas o mesmo burburinho: este é o momento em que nos tornaremos reis. Somos donos dessas ruas, e esta noite é a noite em que tudo pode acontecer. Olhos estranhos olham para nós como se viéssemos de um mundo diferente. São olhos inquisitivos que perguntam sem se mover. Quem são vocês, estranhos, que vêm ocupar o mesmo lugar que nós? Olhamos para eles e sentamos sem dizer palavra. O garçom nos traz o melhor vinho da casa. Nós brindamos o momento: somos felizes.

O asfalto corre sob nossos pés sem que sintamos o atrito. Você me olha com o rosto de quem quer ganhar o mundo e eu sorrio com o sorriso de quem concorda. Nossa vida é aqui e agora. Mas sabemos que a vida que nos vendem é pequena demais para nós. Sabemos que esse sistema não é outra coisa senão a subordinação de todos os aspectos do universo a um deles. Sabemos todas as regras de cor e vamos quebrá-las uma a uma.

Chegamos em casa com passos tropeçados e risadas altas demais para o horário. Na nossa vida a maldição tem  o mesmo nome da rotina. As sombras dos nossos corpos iluminados pelas luzes da noite se movem na parede. Emaranhamos os lençóis e damos um ao outro todo o prazer do mundo. Nossa respiração ofegante sobe pelas paredes e ganha o quarto. Não há nada com que tenhamos de nos preocupar. Somos o espelho em que gostamos de nos enxergar. Você me abraça com os braços de quem pode tudo e eu te beijo com a boca de quem não quer mais nada. Pintamos o mundo com as cores que nos agradam e observamos satisfeitos nossa obra prima.

E ver como as mesmas palavras dispostas entre nós que outrora diziam o que vinham dizer agora não valem qualquer vintém. Assobios vêm de longe enquanto você desce a rua de bicicleta e eu lavo a louça do café, o pó molhado escorre pelo filtro e mancha de marrom as pontas dos meus dedos. Buzinas soam de repente enquanto você tenta frear a bicicleta e eu retorno à sala para ligar o som, o sol mergulha nos vidros da janela e chega ao tapete onde eu deito. Sirenes avisam quem passa na rua enquanto você é colocado em uma maca, enfermeiros rápidos tentam reanimar seu corpo inerte, e eu fecho os olhos inundada pelo sol no tapete. E ver como os mesmos sons que outrora enchiam nossos ouvidos agora são ruídos mudos que nossos ouvidos já não são capazes de ouvir.

16 de junho de 2013

a ficção

Você precisa ouvir para ler. Se você não ouve, você não lê. Você decifra códigos sem registro e apreensão, você ultrapassa parágrafos, você chega ao fim e você não é nada. Você precisa ouvir para ler.

O nome é fiction. E a letra diz what she wanted to be doing: wether reading it or writing. Mas o canto é outro. Nos universos desabitados em que agora habita sua alma: what she wanted to be doing, instead of reading it or writing.

Fazer ficção, viver ficção, ser ficção.

A subida de um morro íngreme de curvas. Esquerda e direita em sucessão como numa espiral de asfalto e calçadas. As casas se empilhavam, umas sobre as outras até o topo do mundo. E o topo do mundo era longe o suficiente para parar pelo caminho e espiar pela janela daquelas casas. Não havia ninguém dentro delas. Mesas postas, louças nas pias, roupas nos varais de casas vazias.

No ponto mais alto, aonde era possível chegar por uma trilha entre as árvores entre as casas, descansavam um deque e a vista para o mar. Não havia ninguém na cidade, imensa aos pés do morro. E lá de cima as ruas eram uma malha indecifrável de caminhos que não chegavam nem saíam. O mundo não tem necessidade de sair nem de chegar, apenas de existir.

O que você faria se pudesse realizar um desejo, qualquer desejo?

Não é difícil ver o futuro. Igual a ver a banda passar. Começo, meio e fim estão todos ali, você viu cada um deles. Mas estava lá?

Todos os diálogos de perguntas sem resposta que tivera não eram capazes de dar conta daquele momento. O desejo de isolamento - já pensou um mundo sem essa gente toda? esse caos - já não tinha o sabor de antes, era agora uma inconsistência perdida em um fluxo incontrolável de pensamentos que não sabiam para onde apontar.

Não era realidade nem ficção. O limbo da existência onde só há cenário e potenciais personagens desaparecidos, engolidos pelo egoísmo de um narrador prepotente. Seu mundo já era outro. Há duas semanas o sol não aparece e tampouco chove. Impossível adivinhar o destino das palavras escritas ou seu efeito, e a vida mudava enquanto escrevia. A arbitrariedade da busca pelo sentido. Porque tudo precisa fazer sentido. Tudo ao nosso redor, todos os fatos e todas as coisas. Busca-se e, se não se encontra, inventa-se.

Não existe isso de escrever sozinho.
Mas agora não tem como voltar.

Começa-se então a preencher o caderno de trás para frente. Subverter a ordem das palavras para subverter a ordem do mundo, que girando em outro sentido se torna outro mundo.

Isso é ficção.
Ou não é.

E o corpo arde como se a ele houvesse sido infligida toda a dor do mundo. De onde vem a dor do mundo? Os socos, chutes, pauladas, cortes e queimaduras que nunca havia sentido agora se faziam doer com a força que antes era só imaginada. Causar dor a alguém, e ao mesmo tempo sentir a mesma dor - é uma construção perspicaz. Se a realidade dói, inventar pode ser um remédio. Mas quando a invenção também dói não há mais caminhos possíveis.

Você fez isso acontecer.
Não, eu não fiz.

A dor vem de não saber de onde ela vem. De onde vêm as palavras, ou de não saber como ordená-las nem como descobrir seu lugar. Atrás de um sentido inexistente, passando por cima de todos os outros sentidos, de todos os outros, anulados, esquecidos. A carne padece. E quando não há um outro em quem se espelhar não há mais nada.

Ler o outro como você mesmo, como a si próprio.

Nessa ausência mortificante de melodia, e a tortura dos devaneios sem fundamento. A solidão outrora sonhada que oprime, aniquila, consome. A nocaute outra vez. Não há senão o amor das pedras, eternas. O fantasma chamado de depois, depois de você. A escrita distrai da condição dos homens, e a certeza de que tudo está ou já foi escrito faz fantasmas os homens que escrevem. Essas palavras não podem ser a verdade, mas você mente também, por que não mentiria?

7 de junho de 2013

o filho

Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue.

Quando li essa frase pela primeira vez, e isso foi há pelo menos dez anos, me senti acolhida. O autor há muito já estava morto, mas a ideia de que alguém em algum momento da nossa trajetória infame proferiu essas palavras ainda é uma espécie de conforto. Pensar na solidão como requisito para uma tarefa a ser cumprida é quase uma sensação de poder. Mudar a face do mundo. Cabe a mim, cabe aos solitários espalhados pelo mundo que jamais conhecerei.

Minha vida é igual a tantas outras vidas que trabalham, tentam manter a casa em ordem e equilibrar o que os dias exigem. Molhar as plantas, alimentar o gato, primordialmente não deixar que morram, reabastecer a despensa, não quebrar as taças de vinho que custaram caro. O suficiente para se manter vivo. A gente vai lá, a gente tenta, a gente se atura, não dá certo, a gente desiste, o cara vai embora e eu fico com alguns lençóis pra lavar e uma escova de dentes pra jogar fora. Primeiro era triste, então passou a ser desgastante e hoje não é nada. Perder ninguém perde, no máximo fica tudo igual.

Igual a tudo o que eu sou, porque mais ou menos do que isso já não seria o que eu sou. Nem um extremo nem o outro, nem oito nem oitenta. Porque a vida, do jeito que costuma ser na prática, não diz respeito aos extremos, mas a tudo o que fica entre eles. É nesse miolo que a maioria grosseira das pessoas vive, e é no meio, e não nas pontas, que as coisas acontecem.

Tinha recém chegado de viagem, e umas amigas me chamaram pra beber. Passamos por três bares, seguindo a sequência dos horários de fechamento, até acabar no último, um boteco de cerveja barata que basicamente não tinha hora para fechar. Ainda que nunca mais tenha o mesmo efeito que costumava ter na adolescência, beber é sempre uma promessa boa. De esquecer, de rir sem motivo, dançar, falar o que não se falaria.

E na calçada nós encontramos o Ciro. Ele era bonequeiro, uruguaio, doze anos mais velho e um beijo do tipo que se busca, que encaixa como tem que encaixar, macio, marcante. Conversamos, minhas amigas foram embora, bebemos mais, conversamos mais. No apartamento dele, um conjugado não muito longe de onde eu morava, me apresentou o Gauche, o cachorro mudo que ele pegou na rua. Gauche não latia nem rosnava e por isso era um doce. E educado também, ia e vinha sem a gente precisar pedir. Ciro me mostrou a casa, e eu queria ter gravado o nome da banda que ele botou pra tocar, mas não gravei.

Eu acho meio deprê.
Sério? Eu não achei nem um pouco. Pelo contrário. Muito bom de ouvir.
Ah, que bom que tu gostou. Eu adoro essa banda.
Tem um dos bonecos aí pra eu ver?
Claro, pera aí.

Estava frio, e nós transamos três vezes aquela noite.

Que é isso? Por que tu fez isso? Eu não vou transar contigo sem camisinha, seu idiota.

Já era tarde.

Tu tá brava comigo? Não briga comigo.

Ele tinha quase quarenta anos e era uma criança me pedindo pra não brigar, pra não ir embora. Olhei a madrugada pela sacada do quarto. Fazia ainda mais frio do que eu pensava. A cidade que sempre dormia, longe de tudo o que poderia me fazer viver. Voltei para a cama, ele me esperava com dois cigarros acesos.

Gostosa. Tu é muito gostosa.

Fui juntar o grampo do meu cabelo e senti no chão uma tarraxinha perdida. Ele tinha um beijo impressionantemente bom e um cabelo que pedia para ser bagunçado. Quando amanheceu, fui até a cozinha tremendo de frio, catando minhas roupas pelo caminho. Gauche seguiu cada um dos meus passos e ficou encarando enquanto eu me vestia, como se quisesse falar.

Abre lá pra mim?
O quê? Tu tá indo embora? Tu não vai embora.

Tive vontade de voltar até a cozinha e passar um café bem quente e forte, meus olhos ainda fechando com o sol que entrava pela janela, mas essa era uma intimidade que eu não teria.

Como tu espera que eu te deixe ir embora? Ainda mais assim, fazendo esse cafuné na minha barba.
Ah... Vamo, abre lá pra mim, eu tenho que ir. É sério.

Ciro levantou, vestiu um blusão, uma calça de abrigo, não pensou em fazer café.

Tá vendo isso, Gauche? Ela tá indo embora, dessa maneira totalmente fria e gelada.

Nos beijamos ainda na porta, no elevador, no portão.

Bah, a gente não trocou telefone, né? Me dá um toque, aí depois eu posso te ligar.

Andando até em casa, o sol cegava meus olhos, e poucas vezes eu quis tanto um óculos escuro. O vento frio gelou meus ouvidos até doer, e poucas vezes eu quis tanto um protetor de orelhas. No caminho, lembrei de entrar em uma farmácia.

Oi, eu preciso de uma pílula do dia seguinte, vocês têm?
Temos, claro. E que bom que temos, né? No meu tempo a gente não tinha essa possibilidade, ainda bem que hoje existe.
É, pois é, ainda bem.

Ciro não ligou, como eu sabia que não ligaria. E é estranho, ainda assim. Ter certeza e não conseguir evitar a frustração. Esqueço os rostos, os nomes, as datas, mas levo os vestígios dos homens que não me amaram. Uma névoa, uma lembrança, um sentimento que precisa descansar porque já está acordado há tempo demais. Mas não há jeito de dormir. O amor nos manteve acordados por uma noite.

Quando minha menstruação atrasou, vivi uma mistura confusa de medo e angústia. Imaginei um filho e como eu faria para não tê-lo. Imaginei um bebê, o dinheiro que ele custaria e o dinheiro que eu gastaria para que ele não existisse. Mães aleatórias passavam empurrando suas crianças em carrinhos por mim na rua, e eu tentava descobrir a sensação de ter meus dedos segurados por uma mãozinha tão pequena de alguém saído de dentro de mim. Talvez se chamasse Emílio, Ítalo, Daniel. Talvez Ana ou Antônia.

E eu seria uma boa mãe? Antes disso, eu lá teria capacidade de ser mãe? Não deve haver no mundo mulher que não tenha se perguntado. Pelo menos uma vez. Eu seria uma boa mãe? Me olhei no espelho e não vi nada. Nem mãe nem filha. Só eu, porque qualquer coisa diferente disso não seria eu.

Incrível pensar em todas as coisas que acontecem no mundo. Não há como dimensionar, mas todas acontecem com alguém, quem quer que seja, e acontecem exatamente agora, porque sempre é agora. Passam nove séculos ou nove meses, mas tudo o que acontece acontece agora. Tudo o que realmente acontece acontece a mim. Minha tarefa prossegue.

1 de junho de 2013

a água

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
Lá é diferente.

*

Viram-se a uns poucos metros de distância, cada um andando em um sentido na calçada, e quando chegaram mais perto Nicolau deu início ao gesto de levantar o braço e desenrolar a corda do cachorro ao mesmo tempo para cumprimentá-la. Não era a primeira vez que um encontro desse tipo acontecia, com os dois passando por aquele trecho da rua todos os dias, mas era a primeira vez que se cumprimentavam.

E aí, como é que tu tá?, Tudo bem, e contigo?, um meio abraço e um beijo e o cachorro pulando nas pernas dela.
Tá lá no jornal ainda?
Não, saí. Tô trabalhando em uma revista agora. Não é muito conhecida, mas é ótimo.
Bah, outro dia – é Camila, né? – outro dia uma Camila me ligou pra marcar uma entrevista. Não era tu, né?
Não, não. Eu sei quem é, mas não era eu, não.
Ah tá, menos mal. Eu não queria parecer rude, mas eu tava muito atucanado.
É, ela comentou comigo. Mas imagina, ela entendeu a situação. E como é que o nome dele?
Era um vira-lata. Tinha o pelo meio bege, mistura de marrom com cinza, uma cor completamente indefinida, com manchinhas mais escuras espalhadas pelas costas. Continuava faceiro, balançando o rabo, entre pular e cheirar os tornozelos da estranha à sua frente.
Ah, é Guapo.
Ah, que nome ótimo! Perfeito pra ele.
Por quê?
Tipo o dono.
Ele sorriu, e ela queria virar, esquecer que a pós-graduação existia e seguir caminhando com ele e Guapo.
Mas então tá. Legal te ver!
Bom te ver também. A gente se fala.

Manhã de outono, o sol mal começando a iluminar a ponta das copas das árvores, o vapor escapando das bocas dos dois, chimarrão na mão. Todo o gauchismo que a situação merecia. Bah, mas então tá, legal te ver e um cachorro chamado Guapo. Assim começou.

*

Ver-se em alguém é diferente de ver a si próprio, num espelho ou em pensamento. É uma imagem terceira de dois rostos ao mesmo tempo, de uma maneira que só é possível em uma tal cumplicidade que não existe todos os dias. São olhos que se entregam de rostos que se conhecem de corpos que se chamam. Um amor sublime que a nem todas as vidas é dado viver.

O mundo não era mais nada enquanto ele dormia ao seu lado. De longe, dava pra ouvir os passos do cachorro e o resto da chuva pingando das árvores na calçada. As peles dos dois, coladas uma na outra, não poderiam ser mais distintas e ainda assim eram a mesma. Os olhos que se abrem lentos pedindo um cigarro, costas que se aconchegam entre travesseiros e peitos nus. O tempo parava naquelas madrugadas de felicidade silenciosa. As horas se estendiam e atrasavam a manhã. Como se a vida enfim se curvasse ao desejo de dois amantes.

O frio que faz no sul convida ao amor e à solidão, que se intercalam em uma sucessão infinita de invernos infelizes e inebriantes. E quando tudo acabou, com a chegada da primavera, ela sabia que a vida cobrava o que havia dado. Nada é de graça, não há extremo sem oposto. Nico se foi como as sombras que desaparecem nos dias nublados; o que fica no lugar não é nada senão a superfície vazia e sem contraste de antes. E voltar a ser o que se era - antes, no passado odioso que todos querem apagar. A vida não é justa com quem não merece justiça.

*

E o que tu vai fazer, se não vai ficar lá?
Sei lá, alguma coisa. Mas eu não gosto deles, eu não me sinto bem lá. Pra brincar, fazer uma piada, rir, essas coisas, sabe?
Claro, faz uma semana que tu começou, essas coisas não acontecem de uma hora pra outra.
É diferente.
O que é diferente?
A PORRA DA MINHA VIDA É DIFERENTE.

Veio o silêncio, um olhar perplexo, expressões que não sabiam o que queriam expressar, cansaço, mágoa, rancor. Não estar apaixonado é como querer carregar água com as mãos. Você pode tentar quantas vezes quiser, mas nunca vai conseguir.