22 de agosto de 2012

as roupas

Conheci a Alice pela internet. Descobrimos mais tarde, ela via o meu perfil, eu via o dela e éramos stalkers inveterados um do outro sem saber. Depois de trocar algumas mensagens intervaladas, porque os horários não batiam e mesmo nas férias nunca estávamos online ao mesmo tempo, conseguimos conversar pela primeira vez e foram mais de dez horas. Ela era incrível, e tudo o que disse me mostrou uma pessoa ainda melhor do que a que eu havia imaginado. Parecia ter as medidas exatas de solidão e bom humor, de tristeza e ironia. Não se levava a sério, e só por isso tinha todos os méritos. Nunca ficou claro para mim como e por que nos demos tão bem, de onde vinha tudo aquilo o que tínhamos para dizer um ao outro. Mas era fácil falar por trás de uma tela, e foi quando ela me ligou pela primeira vez, numa madrugada, poucas horas depois de ter se despedido na internet, a voz de um rosto que eu ansiava por ver, e nos falamos por quase duas horas, e ela disse meu nome, foi aí que eu percebi que tínhamos começado um relacionamento.

Morava sozinha, e nos encontramos no apartamento dela. Toquei o interfone e logo depois a enxerguei atravessando o hall, de vestido longo verde e sapatos floridos. Os cabelos castanhos, longos e ondulados, eram ainda mais bonitos pessoalmente e o sorriso – ela sorria e algo dizia que alguém com aquele sorriso não merecia sofrer. E eu descobriria, mais tarde, ao vê-la rindo das minhas piadas infames, a melhor das felicidades que já havia experimentado até então.

Passei a viver no apartamento dela tanto quanto na minha própria casa. Era fácil: eu encontrava alguns amigos para beber e lá pelas tantas lembrava que o prédio não ficava longe e ligava avisando, “abre pra mim?”. Ou saía do trabalho e, com preguiça de ir até em casa, ia para lá outra vez, e nós jantávamos e passávamos a noite juntos. Ela não chegou a me dar as chaves, mas eu tinha roupas no armário e uma escova de dentes no banheiro. Vagabundo, matava aulas de manhã, porque ela tinha a melhor cama e o melhor sofá, mas esperava ao meio-dia com almoço. Fazia meus trabalhos lá. Minha mãe ligava para lá quando não conseguia falar comigo no celular. Meus amigos iam lá. Era o nosso canto, afinal.

Uma noite, alugamos Where the Wild Things Are.
“Mas a gente não precisa ir até a locadora, eu baixo aqui rapidinho.”
“Gosto de ver filme na tv.”
Estava escorada no meu peito, o filme acabou e ela continuou em silêncio. Assim que terminei de perguntar o que havia achado, percebi que ela estava chorando e na mesma hora ela levantou do sofá tapando os olhos com uma das mãos e foi para o quarto.
“O que foi? É por causa do filme?”
Conforme me aproximo, ela se encolhe e vira de costas e esconde o rosto de mim. Estendo meu braço ao redor dela, puxando-a para sentar comigo na cama.
“Calma, não precisa chorar, pequena. Por que tu tá chorando?”
Ela retoma o ritmo da respiração e faz uma pausa comprida.
“É porque eu sei que vai acabar.”
Eu a abraço forte e digo que não. Está tudo bem, é bobagem dela pensar nisso.
“Seca esses olhinhos.”
E em questão de dez minutos estamos na cozinha procurando algo para comer. Agindo como se nada houvesse acontecido.

Eu nunca soube como me comportar em um relacionamento. Como e quando estar presente, como responder e corresponder ao carinho – como gostar, em suma. Mas a Alice lidava bem com esses e todos os meus outros defeitos, e é provável que eu estivesse feliz com ela justamente por isso. Porque eu acreditava que ela era o meu tipo de mulher, alguém independente e que não se apegava a tolices como eu ou um relacionamento.

E, ao contrário de mim, ela sabia bem o que queria e fazia o que tinha de fazer. Virava noites terminando os projetos da faculdade se fosse preciso, trabalhava num escritório famoso, não deixava de ir às aulas por bobagem. E ao mesmo tempo era minha companheira em quase tudo. Bebia comigo, não tinha as frescuras de dividir xis ou pegar táxi, gostava dos filmes que eu gostava e das músicas que eu ouvia. Viajávamos juntos, nos dois sentidos, e ela fazia eu me sentir bem. Eu estava feliz, talvez como nunca antes, e se aquela noite não tivesse acontecido possivelmente nada teria mudado.

Depois que a vi chorando por medo de me perder – porque ela ‘sabia que ia acabar’ –, nunca mais consegui vê-la do mesmo jeito que via antes. Alice passou a ser só uma menina. Uma guriazinha boba que ficava feliz por eu chegar sem avisar, que abria um sorriso idiota quando me via e fazia uma cara triste quando eu ia embora, que chorava pela possibilidade de eu não voltar. Cada mensagem que ela mandava era motivo para um suspiro de tédio e ah, que saco, e eu comecei a esnobá-la e quase não ia mais para o apartamento. Sabia que ela estava sofrendo e não me incomodava.

Um dia, quando entrei em casa, minha mãe contou que havia ligado para ela. Meu celular estava desligado, e ela pensou que eu pudesse estar lá. Disse que a Alice estava estranha no telefone, perguntou se tinha acontecido alguma coisa, eu respondi que não sabia, fazia um tempo que não nos víamos, e ela achou prudente que eu fosse até lá, só para ver se a menina estava bem. Era tarde e, ao contrário de alguns meses antes, a ideia de atravessar a cidade para ver a Alice não me agradava. Fui na manhã seguinte. Bati, ninguém atendeu e, já pensando que “bom, ela não está em casa”, girei a maçaneta e a porta abriu. Alice estava dormindo no sofá, e em cima da mesa eu vi um potinho vazio.

“Ah, mas era só o que me faltava”, cheguei a dizer em voz alta, com raiva, antes de começar a sacudi-la e chamar o nome dela. Acordou meio desnorteada e levou uns segundos para entender a situação e me reconhecer na penumbra.
“É isso mesmo? Tu vai tentar te matar agora, é?”, perguntei em tom de deboche.
Ela levantou e ficou me olhando séria. Tive vontade de rir.
“Ah, Alice. Quem te viu e quem te vê, né.”
Eu conseguia sentir os olhos verdes em cima de mim, devorando e consumindo. Ela mexeu o rosto por um instante e quando voltamos a nos encarar eu enxerguei o sorriso da primeira vez que nos vimos.
“Some daqui.”
E minhas roupas ficaram lá. 

19 de agosto de 2012

o álbum

A foto enquadra uma praia quase vazia, de ondas tranquilas e morros ao fundo. O sol está alto e uma nuvem grande se espalha pelo céu. De um lado, a faixa de areia estreita deixa ver os ilhotes da beira e do outro é só o mar. Consigo te imaginar por trás disso, segurando a câmera, de pés descalços, camiseta branca e uma bermuda qualquer.

Mudar pela vontade de nadar, e não poderia haver lugar melhor, porque piscinas não são nada perto do mar. A imensidão azul até o fim. E mergulhar, literalmente ou não, como se as ondas pudessem levar as dores para longe do continente, como se no momento em que se bota o pé na água a vida ficasse na areia.

Olha para mim sério, escorado na parede, a cabeça levemente inclinada. A barba, grande, cobre o queixo e parte das laterais do rosto. Ele sabe o que faz. Não é como os meninos que deixam crescer de qualquer jeito e acreditam ter mais cara de homem por isso. E a diferença é sutil e tão clara ao mesmo tempo: alguma coisa no semblante, na maneira como ele sustenta o rosto. Quando a barba não suja ou estraga a face, esses são os homens.

Não é como se eu fosse uma deslumbrada, que nunca ouviu palavras bem ditas ou que se apaixona por frases bonitas, que nunca esteve frente a frente com quem vale a pena. Mas naquela tarde eu encontrei um eco para o que existe de melhor em mim. Quem acredita na mesma coisa e da mesma maneira e sabe que, sem trazer a imaginação à realidade, a vida seria outra, pobre e vazia.

Segurava o bebê no colo não sem jeito, mas um tanto compenetrado, como se virar o rosto pudesse causar um desastre, e aquela coisinha, que cabia inteira nas duas mãos, poderia se partir ao menor descuido. Olhava para ele, os dois de olhos fechados, e a mãozinha pequena e rosada tocava a barba logo acima.

Como não notar o silêncio? Eu me acostumei a passar dias e até semanas sem falar, mas quando existe alguém que, em uma ocasião, quebra essa rotina, é impossível não perceber. Só pode ser por isso que algumas pessoas prezam tanto a solidão: porque quando ela é quebrada, mesmo que só por uns momentos, fica difícil voltar.

Um pedaço de céu ao fundo e os morros a perder de vista. O verde e a paz e o vazio que às vezes faltam. Um lugar para viver. E não ser nada além do que somos - só nós e nós mesmos. E na outra o perfil em meio à sombra, em preto e branco. Talvez olhando pela janela, talvez encarando o nada. O rosto dele é a personificação do carinho e olhar para o rosto dele é estar em outro lugar.

Tu nunca vai ser mais bonito do que agora. Nós nunca mais estaremos aqui.
E nessas fotos te amo tanto que não sou capaz de dizer.

15 de agosto de 2012

o romance e a poesia

Nasceu numa tarde gostosa de novembro, um mês antes do início do verão. Os pais estavam casados há pouco menos de dois anos e haviam construído a segunda casa de um bairro afastado do centro. Sob o colchão da cama do quarto de hóspedes, desenhos feitos pelo pai em papel pardo revelavam cenas íntimas do início do casamento. Quando havia romance e poesia em lavar a louça depois do almoço no sábado, lustrar o chão ou cuidar do jardim.
Nas imagens filmadas, a mãe a empurrava no balanço da varanda, o pai dançava com ela no colo sob o móbile de palhacinhos estrategicamente pendurado no bar, ela sorria sonolenta no cadeirão, "que malvado esse pai, né, não me bota pra dormir".
Às vezes maltratava as bonecas.
Não que fosse uma criança malvada, mas a maldade atraía. Porque, ao infligir o mal, também era capaz de salvar e, assim, de ser útil de alguma forma. E as bonecas e os amigos imaginários tinham nela uma amiga, alguém em quem podiam confiar, com quem podiam conversar. Tudo o que as pessoas não eram.
Secretamente gostava dos brinquedos de menino. Em especial os carrinhos. E com frequência roubava do irmão o kit de explorador, composto por bússola, binóculo, mapa, lupa, caderno de anotações, ferramentas em geral. Os meninos é que sabiam brincar.
Os livros e os intermináveis passeios de bicicleta vieram depois. Quando explorar o quintal, o porão, o sótão e os terrenos baldios conversando com quem não existia deixou de fazer sentido para preencher as horas livres. Saía com a mochila: os livros, o discman, a água, diário e caneta. Pedalava atrás dos lugares escondidos, os terrenos vazios, as praças e parques que ninguém parecia frequentar, e do conforto de não ser vista nem encontrada. E com o tempo já não adiantava ir mais longe, porque a cidade se esgotara.
Vai a bicicleta, ficam os livros, chegam o computador, o primeiro porre e a vida noturna.
A primeira noite em que ela e as amigas saíram foi uma das últimas do Ferreiro. O bar do pessoal que queria se divertir, beber e ouvir música pagando pouco. Crianças e pré-adolescentes marginalizados esperavam ano a ano pelo dia em que finalmente cresceriam e poderiam passar uma noite lá. O bar fechou, mas a noite sempre encontra um meio. Outros lugares vieram, e voltar para casa de madrugada ou esperar o dia começar na rua não era mais estranho.
Com o primeiro namorado, chegou a primeira mentira. E depois dele a primeira vez em que se apaixonou, por um cara mais velho, que já tinha namorada. Havia crescido, enfim, e descobriu não o que era amar, mas o que era sofrer por alguém que se julga amar. Era mentira, não amor, e histórias semelhantes se seguiram àquela. Como a noite, a dor também encontra um meio.
Mudou, pintou o cabelo, entrou na faculdade. Cansada dos homens, ficou com meninas. Meninas é que sabiam viver, e beijá-las tinha um gosto bom. Mas, mais do que beijos, era enganação, também era mentira, e ela trocou ambos, homens e mulheres, por um punhado decente de paz.
Formada, mas sem vontade, foi trabalhar em uma livraria. Nem grande nem pequena, com um café-lojinha no fundo e diversas estantes espalhadas no resto do espaço. Entre os livros, a vida era mais fácil, mais prazerosa, e tinha aquele gosto de romance e poesia. Era bom estar de volta.
Os dois casamentos sem sucesso, que acabaram por uma separação e um acidente fatal, fizeram-na aceitar que morreria sozinha. Em segredo, manteve o desejo de adotar. "O que há de errado em amar uma criança que já existe?" Vê-la crescer, educá-la na medida do possível, passar adiante os livros empilhados no chão do escritório. Encarando o reflexo no espelho, porém, sabia que não poderia ser boa mãe. Pele ainda jovem para a idade, cabelos macios e vivos - mas o corpo bonito escondia desordem. Cobria em curvas a confusão, o pessimismo e a falta de vontade que em algum momento criam raízes nas pessoas para quem nada deu certo, escolhidas a dedo entre a massa que as cerca.
Aos 77 anos, com dores agora físicas e um cansaço bem diferente do da juventude, já tinha aturado a vida. Mais do que seria saudável, mais do que poderia querer. Morreu dormindo, depois de errar a dose e os remédios. Sem romance nem poesia.

7 de agosto de 2012

os dois pratos

Estava sentada com os pés apoiados sobre o porta-luvas. O vento na cara, os cabelos castanhos espetados que não paravam de balançar, para trás, para a frente, para os lados. Àquela altura, saíamos de Tramandaí, depois de já termos passado por Capão da Canoa, Atlântida, Xangri-Lá e Imbé. "As praias sem graça", como ela dizia, porque conhecia cada uma quase tão bem quanto sua cidade natal.
Helena teve uma infância praiana. Com casa em uma prainha próxima de Capão Novo, não era difícil que a família circulasse entre as praias vizinhas, subindo ou descendo no mapa ao longo do verão. Ela cresceu odiando o litoral, sendo arrastada até a areia pelos pais todos os dias enquanto durassem as férias, e hoje não havia lugar em que gostasse mais de estar. "O pedaço de chão que separa a gente do horizonte", disse uma vez. E diante daquelas palavras o resto da humanidade de repente era pobre e medíocre.
Uma semana antes, alugamos o carro que naquela hora eu dirigia pela Paraguassu e que nos levaria a Cidreira. De férias por tempo indeterminado - ela porque mandava no próprio trabalho, eu porque tecnicamente não tinha nenhum -, decidimos, em detrimento de conhecer algum paraíso tropical, viajar de carro pelas praias do estado. Até Cassino, que ela queria conhecer desde a adolescência, quando leu os livros do André Takeda.
- Dan, a gente não trouxe o outro porta-cds? - perguntou meio decepcionada depois de mexer no porta-luvas e não pegar nada.
Me chamava de Dan.
E falava "a gente".
Nós éramos eu e ela, mas também éramos nós. Éramos "a gente".
- Sim, eu peguei! Mas acho que ficou na mochila. A do notebook.
E ela salta para o banco de trás e levanta a aba protetora do porta-malas para procurar. Linda.

*

No ano retrasado foi o aniversário de 90 anos da avó dela. A família - os irmãos da mãe, mais primos, mulheres e maridos - combinou um churrasco num sábado à noite. Quando é que tu vai trazer teu namorado pra gente conhecer? Hein, Heleninha? Eu quero saber quem é esse cara, ela ficava dizendo, debochada, imitando a avó e os tios.
- É sério, é horrível quando eles tão todos juntos.
- Não tem problema, com toda família é assim.
- Com a tua não.
E eu me lembro de como ela gostava dos finais de semana que passávamos na casa dos meus pais. Ajudava minha mãe antes e depois do almoço, conversava com todo mundo, e não importava se meus irmãos, primos ou tios eventualmente estivessem também - ela ria gostoso, com vontade. Gostava de estar lá, de ser parte daqueles momentos.
- Não importa, eu vou junto - reformulo minha frase. 
Ela sorri e me beija.
- Depois não diz que eu não avisei.

Dona Evani não parecia ter mais de 70 anos. Querida, extremamente ativa, me tratou quase como um novo neto. "Não quer mais, ô Daniel?", perguntou sobre cada um dos pratos - só a carne rendeu dois ou três questionamentos - e mais a sobremesa. O problema eram mesmo os tios. Que pareciam ser pessoas altamente bem educadas, mas juntos, bebendo, falando alto - dava para entender a falta de boa vontade da Helena. Ela nos encontrou refúgio com o marido de uma tia, um alemão que falava com quem quisesse ou entendesse só em inglês. Era um sujeito sisudo, calado e que, de tão mal-humorado, acabou sendo a pessoa mais acolhedora da garagem. Como Helena, ele não gostava das reuniões familiares, e nossa conversa regada a salsichões deu vida a algumas risadas dignas.

- Viu, acabou. Não foi tão insuportável assim, vai.
- Não?
- Só um pouquinho?
E nós rimos, comentando sobre o comportamento das pessoas enquanto caminhávamos em direção ao pub próximo à casa dela.
- Chega deles, quero beber e falar de coisas legais.
- Assim seja.

*

Essa era a Helena. Tão simples e fácil que era difícil entender. 
Às vezes descobria uma música na internet e deixava repetir por horas para depois nunca voltar a ouvir. O mesmo valia para os livros. Salvo algumas exceções, ela costumava se entusiasmar com o que lia, e enquanto não terminasse a leitura não falava de outra coisa, e por vezes ficava só folheando, olhando as páginas, os trechos sublinhados, vidrada, e quando finalmente terminava de ler - o livro ia para a prateleira, provavelmente para não sair outra vez. Era um jogo de contrastes que me intrigava; o prazer e a felicidade que ela sentia com os livros de que gostava e o desprendimento quase total que vinha em seguida. "Faço assim com os homens também", dizia para me provocar, rindo na minha cara de um jeito carinhosamente maldoso.
Ela me conhecia - sabia sempre onde eu gostaria de estar e sabia o que eu gostava de ouvir. 

*

Nossas discussões eram diminutas, por bobagens eventuais, e não passavam de briguinhas passageiras que nós esquecíamos em questão de minutos. Tudo bem, talvez horas. Ela tinha uma raiva contida que impedia qualquer um de nós de sair quebrando coisas pela casa, gritando disparates de que nos arrependeríamos depois. Mas um dia aconteceu.
Eu estava lendo, esperando ela chegar para jantarmos juntos.
Parou perto da mesa e ficou me olhando, estática.
- Que foi?
- Acho que eu tô grávida.
- Oi?
Ela não fala nada.
- É sério?
- Não sei, já passou quase uma semana e nada.
- Tá, mas e o teu anticoncepcional?
Pergunta estúpida.
- Eu esqueci um dia. Mas foi só uma vez - ela se justifica, provavelmente notando a alteração no meu rosto - A gente nem transou aquele dia.
- Ah, Helena, por favor. Até eu sei que não quer dizer nada. Por que tu não me avisou? Tu tinha que ter me avisado. Tem camisinha no quarto, porra!
Ela já não me olhava. Tinha virado de costas, apoiada na mesa.
- Tá, Daniel. Tá bom.
Daniel.
- O que a gente faz agora?
- Não sei.
- E como assim tu acha que tá grávida? Tu tá ou não tá?
- Não sei, porra! Não fiz o teste ainda.
Foi a primeira vez que ela gritou comigo. E hoje, pensando melhor, acho que foi também a primeira vez que a ouvi gritar de fato.
- Ah, que ótimo!
- É. É ótimo mesmo.
Passou reto por mim e se trancou no quarto para sair uma hora depois com uma mochila.
- Onde é que tu vai? Helena!
Corro atrás dela nas escadas, gritando para ela esperar, até conseguir segurar a alça da mochila entre o segundo andar e o térreo.
- Espera, porra!
- Me solta! Idiota - ela grita outra vez, me empurrando contra a parede.
- Onde é que tu vai?
- Eu vou pra casa! Me deixa em paz - e bate a porta.
"Aqui é a tua casa", eu quero dizer. Mas não digo. E deixo ela ir.

Voltou pouco menos de uma semana depois. Foi um susto, e o atraso na menstruação pode ter sido de fundo emocional ou por algum desequilíbrio dos hormônios, ela já fez uns exames. Eu me desculpo por ter sido tão imbecil, digo que a amo, que aqueles dias foram horríveis, que se eu fosse ter um filho só poderia ser com ela. Ela me olha por um momento, séria, a franja cobrindo a metade direita da testa. "É, deu pra ver." Mas mostra um sorrisinho quase escondido na expressão doce de ironia, e então eu sei que está tudo bem.

*

Quando eu a traí, em uma viagem, com uma amiga que trabalhava em uma rádio, não tive a menor chance. Ela soube no momento em que me viu entrar, eu sei. Ficou me olhando, como se esperasse eu confessar. Eu não disse nada e tentei agir normalmente pelo resto do dia, até que à noite, quando terminamos de comer, ela foi direta o suficiente para eu não conseguir evitar.
- E aí, quando é que tu vai me contar o que aconteceu na viagem?

Ela saiu de casa. E o nosso apartamento voltou a ser meu de novo. E eu sabia que dessa vez não seriam só alguns dias, que dessa vez eu tinha passado dos limites. De qualquer um que pudesse haver e mesmo dos que a gente pudesse criar. Durante semanas ela não me atendeu, não quis falar comigo. Eu consegui que o síndico do prédio dela me deixasse entrar e não saí mais de lá. Durante dias ela passou por mim como se eu não estivesse ali. Eu estava quase sem esperanças na madrugada em que a porta abriu, e ela saiu, sentou no chão do meu lado e chorou. Era a primeira vez que eu a via chorar. Chorar de verdade, não por um filme. Não dizia nada, só chorava. E eu queria abraçá-la e apertá-la bem forte contra o meu peito e pedir que me perdoasse, mas não sabia se devia, se ela deixaria. Aos poucos foi parando e, quando as lágrimas cessaram por completo, os olhos vermelhos ainda úmidos, "tu tem que fazer essa barba, né". E aí foi a minha vez. E aos soluços eu enterrei o rosto no ombro dela.

*

Quando ela me traiu é que foi um choque. Em momento nenhum eu imaginei que pudesse acontecer, que a possibilidade sempre existiu, estava ali o tempo todo. Foi com um cara que ela conheceu no trabalho, me contou. Almoçaram e passaram algumas tardes juntos discutindo detalhes do projeto - Helena era arquiteta -, e em uma dessas tardes aconteceu, "não foi planejado, eu não queria".
Foi quando eu percebi que, afinal, ela podia errar tanto quanto eu. Era uma de nós. Humana como eu. Toda como eu.
Mas foi um sofrimento seco, silencioso. Doeu mais trair e ver a dor nos olhos dela do que o contrário. E acho que para ela também, o que pela lógica anularia nossa dor, mas sabemos que não é assim. Helena não conseguia me encarar e saiu de casa outra vez.
- Tu não vai me querer aqui por enquanto, né?
Eu não queria.

*

Recomeçamos dois, talvez três meses depois. Eu nunca acreditei nos "tempos", e é possível que continue não acreditando, mas funcionou com a gente. Nós sofremos, e respiramos, e pensamos, e sentimos a saudade e a distância, e voltamos a ser a gente.
- Eu te amo - ela disse.
Daquela única vez, a cabeça escorada para trás no sofá, virada na minha direção, e eu vou guardar a imagem para sempre ou enquanto tiver memória.
Eu já não a via como namorada. Helena era minha mulher. Morávamos juntos e, tanto quanto ou mais do que a cama, dividíamos a vida um com o outro.

*

Estamos jantando, e entre uma garfada e outra da minha tentativa de risoto, entre um gole e outro do vinho, ela me conta sobre o novo projeto em que está trabalhando, para uma livraria que vai abrir no bairro.
A campainha toca, mas eu não quero atender.
- Daniel?
O irmão dela. Eu abro a porta.
- Oi.
- Ainda?
Ele vê os dois pratos na mesa.
- Tu precisa acordar.
Mas eu não quero acordar. Em todas as nossas mentiras houve verdade.