29 de junho de 2019

uma história feita para ser reescrita


- Não. Eu acredito que almas ou mentes ou energias semelhantes, como tu quiser chamar, que vibram numa frequência parecida e funcionam no mundo de um jeito parecido, se encontram e se reconhecem. E aí pode ser qualquer coisa. Uma amizade, uma parceria profissional, alguém que te inspira, uma pessoa que tu conhece numa viagem e nunca mais vê de novo. Qualquer coisa. A gente que tem essa necessidade de dar nome.

***

Estávamos sentados no banco do lado de fora. Difícil saber pelo que esperávamos. Pássaros trocavam de galho acima de nossas cabeças e as folhas das árvores sob o sol desenhavam padrões que gostávamos de assistir na calçada.

- Eles mudam sempre.
- Tudo sempre muda.

Conto pra ele do último cara do Tinder com quem saí. Formado em Arquitetura, fazendo mestrado. Gostava de ler também. Fomos num bar da Cidade Baixa. Era ok pra conversar. Foi uma noite boa. Era o segundo com quem eu tentava, mas sei lá, acho que não vai pra frente também. Por que não?, ele perguntou. Qual o problema.

- O problema – eu digo – é que nenhum deles é tu.

As sombras continuam mudando. O vento varre a calçada e as folhas que já caíram dançam com ele. Ele levanta e estende a mão pra mim. O tempo passou.

- Vem, vamos entrar.

***

Te fiz dizer as palavras que eu mais gostaria de pronunciar. Ou talvez quisesse ouvi-las ainda mais do que falar.

Achei que teríamos tempo. Aquele era o único domingo em que as coisas poderiam acontecer e eu achei que teríamos tempo. De sentir a presença um do outro. Entender a pessoa enquanto ela fala e gesticula à nossa frente. Olhar nos olhos que se buscam e ao mesmo tempo se desviam.

- Gosto de sentir o tempo passar.

Não olhando para o relógio ou esperando por alguma coisa. Percebendo as sombras e as cores do dia mudarem. Pouco a pouco. Enquanto nós permanecemos estáticos.

- Estáticos, mas vivos?
- Não sei se precisam ser coisas opostas. Acho que existem certos momentos especiais na vida em que podemos ser estáticos e vivos.

E nesses momentos nos enchemos de universo.

- Me diz, então: qual de nós encontrou o outro primeiro?

***

Houve um tempo antes de nascermos. E houve o tempo em que estávamos vivos sem saber da existência do outro.

- Será que algum dia estivemos no mesmo lugar sem saber? Será que te vi em um dos bares? Ou passei por ti na rua?
- Teria sido diferente?
- Não sei. Teria?
- E isso importa, agora?
- Importa. Porque pra mim não interessa uma versão de existência em que estamos juntos sem poder estar.

Quis saber o que eu faria, nesse caso. Eu reescreveria toda essa história.

- Inventamos o que não existe. Vem comigo.

20 de junho de 2019

o que não existe a gente inventa


Passo as mãos pelo rosto depois de chorar e sinto a pele tão lisa e macia quanto jamais esteve. As lágrimas lavam, literalmente. E é como se levassem com elas as imperfeições e marcas do tempo. Depois de chorar, recomeçamos.

***

Da ordem do previsível: a maior parte do tempo. O caminho até o trabalho, o horário do almoço, a ida ao supermercado, a sessão de terapia, a aula de francês, academia, regar as plantas, almoço de família no domingo, passear com o cachorro, leitura no fim da noite. Conhecemos tanto do futuro antes de vivê-lo.

Da ordem do imprevisível: os detalhes. Janelas em formato de arco, o desenho no verso da placa, o lambe colado no poste, galhos que invadiram a calçada, as luzes que agora iluminam a sacada do terceiro prédio à esquerda. Um ou outro acontecimento que nos derruba. A ausência inesperada. As palavras que eu não poderia ter previsto.

O futuro também pode ser implacável.

***

Vivemos tudo?

Habita na superfície do que acaba certa espera vã pela continuidade. A interrupção abrupta deixa o mundo em suspenso. Foi apenas um imprevisto, um desvio breve.

Amanhã abrirei essas mesmas portas e tudo estará como sempre foi. Como era quando nos despedimos ontem. Chega mais cedo amanhã, pra gente retomar. Beleza, vou chegar. Vê se descansa, bons sonhos.

Um banco sob uma árvore no verde a perder de vista. O sol. O céu. Nuvens rabiscando o azul.

- Que lugar é esse?
- Ué, achei que tu quisesse vir pra cá.
- Eu queria, mas não sei que lugar é.
- Tu é maluca.
- Gostei daqui.
- Gostei também.
- A gente pode ficar, então?
- Mas foi tu que nos trouxe pra cá.
- Quando?
- Ontem.
- Mas tu tem hora pra voltar?
- Eu não. Tu tem?
- Agora não mais.

***

E quando chega sem aviso a gente congela. “Não”. Foi tudo o que eu consegui dizer. Não, não, não. Não é verdade. Para de dizer isso. Não é verdade.

Minha reação exatamente igual à da última vez que ouvira aquelas palavras, sete anos antes. Andando de um lado para o outro sem saber que direção tomar e sentindo crescer por dentro a dor da realidade que em palavras eu ainda queria negar. Não. Não. Não.

Até sentar e chorar. Por todo o tempo que deveríamos ter passado juntos naquela noite. Em todas as outras. Foi um problema em casa, só isso. Amanhã vai estar tudo bem.

***

Talvez essa ausência seja o mais próximo que conseguimos experimentar em vida do conceito de eternidade. Uma ausência eterna, vazio que permanece. O espaço vago que dói e dura – para sempre, enquanto estivermos aqui.

A mesma eternidade que cabe dentro de cada segundo. Nos olhos que agora só vejo quando fecho os meus. Nas palavras que compartilhamos na vigília e nos sonhos de cada um.

Era pra ter sido muito mais. Ou foi exatamente tudo o que poderia ter sido?

***

- E agora?
- A vida segue.
- Queria que seguisse contigo aqui.
- Finge que eu tô aí. Tu sabe o que eu diria.
- Sei. Sei de um monte de coisas que tu diria. Mas não é a mesma coisa.
- Diz pra ti mesma. Prometo que vou estar falando nesses momentos.
- Isso não existe.
- O que não existe a gente inventa.

9 de junho de 2019

às vezes


Às vezes é preciso buscar. Às vezes no caminho de volta para casa. Às vezes durante o expediente ou olhando pela janela do ônibus. Antes de dormir.

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Dificilmente envolve sexo. Nem mesmo beijos. É mais uma cumplicidade. Almas que se reconhecem.

Caminhamos juntos, olhando para a copa das árvores acima de nós. Conversamos. Rimos um com o outro. Discutimos livros e escritos. Sentamos lado a lado, nossas mãos em um carinho leve. Ou de costas um para o outro, escoro mútuo. Lemos. Andamos na beira da praia, os pés na água. Olhamos o mar. Sentimos o vento. Somos o vento. Céu e sal. Pegamos um ônibus. Acordo primeiro e vejo ele dormir. Volto a dormir em seguida. Ou o contrário. Ele levanta e passa o café. Sentamos na varanda para beber. O dia nos enche. Gostamos do cinza.

***

Às vezes quando ele vira o rosto ao me ver e finge que não estou ali. Às vezes quando sorri sem jeito. Às vezes quando me conta uma história qualquer.

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É o mundo dele. E é o meu. E os dois se encontram e dão origem a esse algo indefinido que não sabemos bem onde colocar.

- O que a gente é? – ele me pergunta, olhando para frente.

Eu não sei.

- E o que a gente faz com isso? – eu pergunto, olhando para ele.

Ele também não sabe.

E continua olhando em outra direção. Quando ele busca meus olhos, sou eu quem desvio. Nossos mundos implodiriam nesse encontro.

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Às vezes quando entro no chuveiro e fecho os olhos e inclino a cabeça para a frente e sinto a água caindo sobre os meus ombros. Às vezes ao acordar de um sonho. Às vezes esperando as plantas absorverem a água.

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O prazer de se sentir insignificante diante do mar. A vida é aqui, embora não haja tempo.

Somos infinitos – e existimos sempre como potencialidade de tudo o que não fomos e não seremos. Eu sinto, ou quero imaginar que sinto.

O universo em nós. Viagem com a alma. A água que nos cerca, nos envolve, nos preenche. A essência da existência em três parágrafos.

- Me deixa chegar mais perto.

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Às vezes folheando as páginas de um livro. Às vezes passando os olhos pelas palavras que já escrevi. Às vezes quando sou obrigada aceitar que nada disso é real.

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Todas as vezes.

2 de junho de 2019

me acorda da realidade


Um cenário épico e um guarda-chuva bem grande. Era o que dizia no rótulo da cerveja. De tão alto, o mundo é um lugar que vale a pena.

- Um brinde às almas que vagam sozinhas.

Do alto de uma montanha. Onde mais eu poderia estar?

***

Foi uma dessas cenas improváveis. Não era para a conversa ter acontecido – e de repente ela se desenrolou, bem diante de nós. Não dava pra enxergar o céu. Poderiam ser oito da manhã ou oito da noite. Lembro de tentar abrir uma janela e não conseguir. Quando voltei, ele sorria.

- Gosto das coisas que não são evidentes, que exigem mais do olhar.
- É preciso haver esforço.
- Olha, reconheço essa referência.
- Prestou atenção na leitura, então.
- Sempre presto.
- Eu sei, eu sei.
- É por isso que contigo é tão difícil?
- O quê?
- Porque precisa ter esforço.
- Não tô te entendendo. O que que é difícil comigo?
- Tu entendeu, sim.
- Tá, entendi. Mas tu sabe que não é por isso.
- Eu não sei de nada.
- Já te expliquei.
- Não sei se acredito em ti.
- Por que tu não acreditaria em mim?
- Porque tu nunca me diz as coisas de verdade.
- E tu por acaso perguntou de novo?

***

Eu não tinha perguntado de novo, pensei enquanto sentia o primeiro gole da cerveja. Comprada no mercado do peixe. Na banca de um meio português, meio brasileiro. Era bom falar a minha língua.

- Queres mais alguma coisa? Talvez um peixe para o almoço?
- Não, obrigada. Mas eu volto amanhã, com certeza.
- Serás muito bem-vinda!

Não é preciso sorrir para ter um rosto sorridente. Como o do Pedro, que me vendeu a cerveja. Um rosto que sorri por si e por isso faz a gente lembrar. Me fez lembrar. Dos dias de abrir aquela porta e encontrar o rosto que também era sorriso.

Nem sempre olhava pra mim. Nem sempre podíamos ou conseguíamos falar. Às vezes sentia os olhos às minhas costas. Ou imaginava sentir. E de um jeito ou de outro permanecia o rosto. A despeito de qualquer circunstância.

Eu nunca tinha perguntado de novo. Por quê?

***

O tempo vai curar tudo. Mas e se o tempo for a doença? Não sei, Wim. Não sei. Vendo tudo de tão longe a vida tem ainda menos sentido. Gaivotas sobrevoam o mar acima dos barcos atracados. Uma nuvem baixa se aproxima da cidade ao pé da montanha.

- Eu queria estar contigo.

Digo em voz alta, como se ele pudesse me ouvir. Onde estaria? Com quem? Será que eventualmente ainda pensava em mim? Eu poderia perguntar. Mas há tempo não dissemos nada. Foi preciso atravessar o mundo para tentar apagar o que descobri fazer parte de mim: a lembrança daquele sorriso.

Carregamos memórias e palavras no bolso, como uma chave ou moedas recebidas de troco.

***

Meus óculos embaçam. Ele ri.

- Pelo amor de deus, vamos pra rua.
- Vamos.

Sentamos no banquinho do lado de fora.

- Vou sentir tua falta.
- Eu volto.
- E se não voltar?
- A gente se acha de novo em outro lugar.

***

Pedro estava lá no dia seguinte também. Voltei para almoçar, como disse que voltaria. Repeti a cerveja. A gente tem isso de repetir sensações. Principalmente as que nos fazem voltar.

Comi na beira do mar e fiquei por ali. Duas imensidões cinzas que quase eram uma só. Não é o lugar, é a ausência.

- Queres mais uma? – ouço os passos do Pedro às minhas costas.
- Se tu dividir comigo.
- Não tens de pedir outra vez.

***

Me acorda, eu digo. Estás sonhando? Sonho. É muita realidade lá fora pra gente não sonhar de vez em quando. Como posso te acordar, então? Me acorda da realidade.