Pense nos carros.
Pense em um modelo de carro.
Pense em quantos deles há em uma cidade.
Pense em todos os carros de uma cidade.
Pense no barulho dos motores desses carros.
Pense nas buzinas.
Pense que em cada um desses carros ouve-se algo diferente.
Pense em todas essas músicas tocando ao mesmo tempo.
Pense nas pessoas que conversam ou gritam umas com as outras dentro dos carros.
Pense em quantas pessoas dentro de carros existem em uma cidade.
Pense nas vozes falando sem parar ao mesmo tempo.
Pense nos motores de todos os carros fazendo barulho ao mesmo tempo e ao mesmo tempo em que as pessoas dentro desses carros falam enquanto ouvem música.
Pense na confluência de todos esses sons.
Pense nas bocas se movendo, pense na fumaça que sai pelo escapamento, pense no calor.
Pense nas cores do semáforo, pense no som de uma freada, pense no som de uma batida.
Pense nos gritos.
Pense no caos.
Pense que essa é a nossa vida.
Eu nunca parei para pensar.
Na vida que já foi, na vida que existe, na vida que poderia ser, na vida que será. Talvez realmente não exista um homem que não seja, em todos os momentos, tudo o que foi e tudo o que será. Talvez nós sejamos mesmo donos da eternidade. Nós só não sabemos disso.
Meu coração nunca vai ser o lugar de ninguém. Imaginei que encontraria a felicidade quando encontrasse companhia. Encontrei diferentes companhias em diferentes momentos e descobri que era mentira. Em companhia e infeliz, imaginei que era a pessoa errada, sem saber que não existem pessoas certas e pessoas erradas. Sem companhia e infeliz, imaginei então que encontraria a felicidade quando eu fosse só eu - sem ausências, sem vazios, sem tristeza. Consegui e descobri que isso também era falso. Quis ainda acreditar que fosse coisa da minha cabeça, como
costumava ser tantas vezes, e depois eu sentia em mim toda a imbecilidade humana – mas a
gente sabe quando não é, quando é pra valer, quando acabou de verdade,
mesmo que no ano seguinte a gente volte a tentar, não, não dá certo,
acabou.
Amei tudo com o triste amor que inspiram as pessoas que não nos amam, com o triste amor que inspiram, nas pessoas que não nos amam, os fracassos, as doenças, as manias. Chorar até sentir dor de cabeça, dor nos olhos, dor no corpo inteiro, até não aguentar mais, até desmaiar sobre a cama na esperança de que desfalecer amenize a dor, mas acordar não vai ser melhor. Chove todos os dias e quando o sol aparece as cores continuam as mesmas. O que eu era morreu ali, tarde da primavera. A atenção e o carinho das pequenas paixões momentâneas agora não são o bastante, não me fazem abrir braços e sorriso e achar a vida linda
outra vez. A vida nunca foi linda.
Mais rotina, menos novidade. Ser dá trabalho. Nos delegaram a função de existir, mas existir é demais. É muito. Além ou aquém. Os vizinhos sempre têm algo a dizer, eles falam das seis da manhã às dez da noite, levam a ao pé da letra o horário do silêncio. Não importa os bilhetes que deixam - eles deixam bilhetes nas paredes do corredor porque não falam com os outros. Andam em círculos, felizes.
Meu pai não avisou para não mexer com essas coisas. Ele disse que ninguém quer ficar sozinho, é melhor ter alguém, é isso que faz a gente feliz. Eu caí nessa e dormi e agora não consigo acordar. Não consigo amar e amo. Não quero amar e amo. E se tivesse dado certo? O amor. O que teria sido de nós?
Pense nos casais.
Pense em quantos casais há em uma cidade.
Pense nas mãos dadas, nos beijos, nos sorrisos.
Pense nas risadas e nos cobertores divididos, nos presentes de Natal, no conforto do silêncio.
Pense nas línguas se tocando, nos movimentos de braços, pernas, mãos, bocas.
Pense nas línguas na orelha, nos arrepios sem aviso.
Pense em todos esses casais transando ao mesmo tempo.
Pense nos sons que eles fazem.
Pense nos corpos tão próximos que um está dentro do outro.
Pense no depois.
Pense no cigarro depois do sexo.
Pense nas brigas, nas mulheres que atiram vasos nas paredes, nos homens que dizem que elas são vadias.
Pense em um relacionamento que termina.
Pense nos casais que tentam de novo.
Pense nas lágrimas.
Pense na raiva.
Pense no amor.
Eu nunca parei para pensar.
No amor que já foi, no amor que existe, no amor que poderia ser, no amor que nunca será. E se tivesse dado certo? Há uma solidão terrível em um que faz planos
para dois. Qualquer coisa impronunciável, que as palavras não descrevem. Morar juntos, a cinco, dez anos daqui. Ou agora. Nós teríamos livros e cds em pilhas numa praia longe dos carros. Café. Gastaríamos o tempo e o dinheiro que fossem necessários para encontrar um sofá decente. Redes na varanda. Cozinharíamos
juntos. O mar. Andaríamos até um lugar que nos
satisfizesse e então nos deixaríamos ficar. Enxergaríamos o que somos no outro. Eu nunca parei para pensar, mas nunca vou ter um carro.
29 de outubro de 2012
17 de outubro de 2012
a lanchonete
Entraram na lanchonete e escolheram uma mesa no fundo. Lanchonete e restaurante. O buffet pequeno na entrada, dezenas de mesas lado a lado, paredes sem cor – e por certo havia uma cor nas paredes, mas daquelas impossíveis, se bege ou se um dia já foi branco, e qualquer que fosse o caso agora era suja, sem nome, e até certa altura as paredes eram azulejadas, e havia ainda, no mesmo nível dos rostos das pessoas sentadas, uma faixa de espelho de ponta a ponta, ninguém olhava realmente para a cor das paredes. Era uma lanchonete barata, grande, e por ser barata e grande estava sempre movimentada, sempre cheia, os garçons na dança incessante entre as mesas, as bandejas eram extensões de seus braços. O melhor do cardápio, que os clientes quase não requisitavam mais, porque clientela fiel sabe como as coisas funcionam, era o xis. Não importava muito o sabor. E foi pelo xis que foram até lá àquela hora, já passava da uma da manhã, outra graciosidade do lugar. Era começo de inverno, fim de outono, se é que existe diferença, e poucas coisas na vida poderiam ter o sabor daquela combinação, caminhar na noite agradavelmente fria e comer um xis de madrugada.
“Tá com fome de quê? De xis, meio xis? Eu tô com fome de xis bacon.” Ela bem sabia que não existia essa de meio xis, meio xis é frescura. Se a fome não é suficiente, pede outra coisa. A dinâmica da alimentação. Três refeições por dia ou refeições de três em três horas. O café da manhã é a mais importante, não, o almoço, nem pensar, a janta. Comida pesada à noite dá pesadelo. Mentira. Feijoada. Lasanha. Churrasco. Carne vermelha e mal passada. O boi pendurado na árvore pelas patas traseiras, a cabeça para baixo, balançando bem de leve. Ele não sabe o que está acontecendo e pode estar olhando para a grama ou para o céu ou para as pernas dos homens ao seu redor quando vem a primeira paulada. E de dentro da casa, "tapa os ouvidos", só se ouvem os guinchos, urros, não são mais mugidos. A cabeça decepada no chão, o corpo sem cabeça ainda pendurado, sangue gotejando sobre a grama, vermelho no verde.
“Um xis bacon e um xis galinha.” A ruína no meio de duas fatias de pão. A vida era boa.
Outro casal, outro casal igualmente jovem, outro casal igualmente sem dinheiro, ocupava uma mesa mais à frente. Como eles, dois numa mesa para quatro. As contas nunca fecham na vida real. Sobra ou falta, os dois que são um, o um que ocupa o espaço de dois, os dez que não valem um, matemática imprecisa, e talvez se não tentassem ajustá-la com toda essa veemência burra a vida poderia funcionar. O casal, o casal da outra mesa, não conversava alto. Pareciam falar amigavelmente, e embora a menina chorasse, os olhos levemente vermelhos, uma lágrima mansa escorrendo, ela tinha talvez o semblante mais tranquilo que alguém naquela situação poderia ter.
“Eles tão terminando”, ele disse.
“Como tu sabe?”
“É só olhar. E ele tá botando o cabelo dela pra trás, tirando a lágrima.”
“Mas ela pode estar chorando por outro motivo.”
“Mas não tá.”
“Como tu sabe?”
“Eu sei.”
E ele sabia. Homens sempre sabem. Não porque sejam mais espertos ou mais sensíveis, eles simplesmente sabem. Nem toda consciência tem ou pede explicação. Tirar os cabelos da frente do rosto de uma menina que chora. Secar as lágrimas dela. Beijá-la na testa. Pouca coisa pode ser pior do que um beijo na testa.
“Ela é bonita.”
Comemoravam involuntariamente um mês de namoro. Um xis bacon, um xis galinha e suco de laranja. O começo e o fim na mesma madrugada, na mesma lanchonete, a duas mesas de distância. Havia certa medida de poesia naquilo tudo. Bobagem isso de poesia, bobagem isso de namoro. Eles não se sentiam à vontade com a palavra. Não houve um pedido, porque pedidos de namoro são bestas. Ninguém quer ou não quer namorar; namora-se. Mas ela era a namorada, ele era o namorado. Já passava da hora de se pensar em algo melhor. Tampouco contavam os dias. Pior do que namoro, talvez só mesmo aniversário de namoro. O que eles têm na cabeça, afinal?
O outro casal levantou. Saíram de mãos dadas. Ele percebeu enquanto ela acompanhava os dois com o olhar. Sabia o que ela pensava porque pensava a mesma coisa.
Ela ajusta a coluna à cadeira.
“Qual o sentido de pensar nisso agora?”
“Ué, tu não pensou?”
“Pensei, claro, mas justamente por isso. Qual o sentido de pensar em como vai terminar quando recém se começou?”
“Não sei. Qual tu acha que é?”
“Nenhum. Boa coisa é que não pode ser.”
“Não é nada, né? Quer dizer, quando acontecer vai acontecer, mas por enquanto não é nada.”
“É.”
“Como tu acha que vai ser?”
“Acho que tu vai ser um boçal e sumir.”
“Eu acho que tu vai ser uma neurótica que vai me fazer ser um boçal e sumir.”
“Tu vai me dar motivos pra ser neurótica.”
“Porque tu vai me cobrar.”
“Cobrar o quê?”
“Atenção, que eu seja mais presente.”
“Tu não vai ser presente?”
“Não.”
“E se a gente terminar agora?”
“Agora?”
“Tá com fome de quê? De xis, meio xis? Eu tô com fome de xis bacon.” Ela bem sabia que não existia essa de meio xis, meio xis é frescura. Se a fome não é suficiente, pede outra coisa. A dinâmica da alimentação. Três refeições por dia ou refeições de três em três horas. O café da manhã é a mais importante, não, o almoço, nem pensar, a janta. Comida pesada à noite dá pesadelo. Mentira. Feijoada. Lasanha. Churrasco. Carne vermelha e mal passada. O boi pendurado na árvore pelas patas traseiras, a cabeça para baixo, balançando bem de leve. Ele não sabe o que está acontecendo e pode estar olhando para a grama ou para o céu ou para as pernas dos homens ao seu redor quando vem a primeira paulada. E de dentro da casa, "tapa os ouvidos", só se ouvem os guinchos, urros, não são mais mugidos. A cabeça decepada no chão, o corpo sem cabeça ainda pendurado, sangue gotejando sobre a grama, vermelho no verde.
“Um xis bacon e um xis galinha.” A ruína no meio de duas fatias de pão. A vida era boa.
Outro casal, outro casal igualmente jovem, outro casal igualmente sem dinheiro, ocupava uma mesa mais à frente. Como eles, dois numa mesa para quatro. As contas nunca fecham na vida real. Sobra ou falta, os dois que são um, o um que ocupa o espaço de dois, os dez que não valem um, matemática imprecisa, e talvez se não tentassem ajustá-la com toda essa veemência burra a vida poderia funcionar. O casal, o casal da outra mesa, não conversava alto. Pareciam falar amigavelmente, e embora a menina chorasse, os olhos levemente vermelhos, uma lágrima mansa escorrendo, ela tinha talvez o semblante mais tranquilo que alguém naquela situação poderia ter.
“Eles tão terminando”, ele disse.
“Como tu sabe?”
“É só olhar. E ele tá botando o cabelo dela pra trás, tirando a lágrima.”
“Mas ela pode estar chorando por outro motivo.”
“Mas não tá.”
“Como tu sabe?”
“Eu sei.”
E ele sabia. Homens sempre sabem. Não porque sejam mais espertos ou mais sensíveis, eles simplesmente sabem. Nem toda consciência tem ou pede explicação. Tirar os cabelos da frente do rosto de uma menina que chora. Secar as lágrimas dela. Beijá-la na testa. Pouca coisa pode ser pior do que um beijo na testa.
“Ela é bonita.”
Comemoravam involuntariamente um mês de namoro. Um xis bacon, um xis galinha e suco de laranja. O começo e o fim na mesma madrugada, na mesma lanchonete, a duas mesas de distância. Havia certa medida de poesia naquilo tudo. Bobagem isso de poesia, bobagem isso de namoro. Eles não se sentiam à vontade com a palavra. Não houve um pedido, porque pedidos de namoro são bestas. Ninguém quer ou não quer namorar; namora-se. Mas ela era a namorada, ele era o namorado. Já passava da hora de se pensar em algo melhor. Tampouco contavam os dias. Pior do que namoro, talvez só mesmo aniversário de namoro. O que eles têm na cabeça, afinal?
O outro casal levantou. Saíram de mãos dadas. Ele percebeu enquanto ela acompanhava os dois com o olhar. Sabia o que ela pensava porque pensava a mesma coisa.
Ela ajusta a coluna à cadeira.
“Qual o sentido de pensar nisso agora?”
“Ué, tu não pensou?”
“Pensei, claro, mas justamente por isso. Qual o sentido de pensar em como vai terminar quando recém se começou?”
“Não sei. Qual tu acha que é?”
“Nenhum. Boa coisa é que não pode ser.”
“Não é nada, né? Quer dizer, quando acontecer vai acontecer, mas por enquanto não é nada.”
“É.”
“Como tu acha que vai ser?”
“Acho que tu vai ser um boçal e sumir.”
“Eu acho que tu vai ser uma neurótica que vai me fazer ser um boçal e sumir.”
“Tu vai me dar motivos pra ser neurótica.”
“Porque tu vai me cobrar.”
“Cobrar o quê?”
“Atenção, que eu seja mais presente.”
“Tu não vai ser presente?”
“Não.”
“E se a gente terminar agora?”
“Agora?”
16 de outubro de 2012
(n)o final
Todos ligam ou mandam mensagens no dia seguinte. Querem dar uma volta, tomar um café, quem sabe sair de novo. Querem o que sempre querem. Entre uma cerveja e outra, mas invariavelmente sóbria demais, digito meu número em incontáveis modelos de celulares, as luzes do visor misturando-se às da pista. Dou a eles o número correto – por quê? – e nunca respondo.
São todos broncos. Inabilmente, começam a falar sempre as mesmas asneiras e dão a impressão ou a certeza de que nunca se empenharam em conhecer ou tentaram aprender a despertar vontade e interesse. Não são nem semiconscientes da vida. As piadas são infames, os comentários não dizem nada, a voz intrincada é desagradável. E mesmo assim sorrio, respondo, deixo que se aproximem, que me toquem e mesmo que me beijem.
Dançando sóbria entre pessoas bêbadas, minha consciência do entorno não encontra outro caminho senão minha consciência dela própria e me sinto ainda mais sóbria, mais do que em qualquer outra ocasião, mais do que sempre. O álcool que me permito ingerir já não tem efeito algum além do decréscimo no saldo – e então eles passam a me rodear. Nos momentos em que questiono a humanidade, nossa capacidade de sermos mais do que pessoas bonitas ou feias, a existência de um método para se sentir verdadeiramente vivo. O resultado não poderia ser mais desastroso. Devastador. A tragédia das relações humanas notívagas.
Às vezes falo com alguns que, depois, me procuram na internet. Adicionam nas redes sociais, puxam papo, fazem perguntas, e quando vejo não estou em uma conversa, mas em um inquérito. Pacientemente, respondo. Algumas vezes, leio as mensagens na tela e espero uns dias para dizer o quanto ando ocupada, sem tempo para internet. Em outras, simplesmente não falo até que venha a próxima indagação. Eles demoram a desistir, sempre têm uma maneira a mais de importunar. Dou corda para ver até onde vão e até onde eu posso ir. Quanto interesse preciso fingir, quanto desinteresse posso mostrar, o quanto posso ser rude, o quão diretas, ou curtas, ou mentirosas, podem ser minhas respostas – o quão ignóbil eu posso ser e ainda ter um homem atrás de mim – quanto tempo eles levam para perceber.
Nunca aconteceu de valer a pena. Eu me acostumei a um padrão alto – todos que já dormiram na minha cama mais de uma vez são homens que vão além do óbvio. Estabelecemos outro nível de relação interpessoal. Experimentei com eles o gosto de ser o que sou, na maior medida em se pode ser o que se é na presença de outra pessoa. A surpresa de arrepios e batimentos irregulares. Ouvir e falar. Corações calmos. Com o resto, homens que na verdade não são homens, o êxtase é improvável ou impossível. Fica fácil rir, deprimir-se, perder a fé e a paciência, minha xícara transborda e eu sigo enchendo.
Numa noite, um veio até mim e perguntou se eu emprestaria um cigarro. Em algum momento, tirou o chapéu, pôs os cabelos para trás, e eu pude ver o quanto era bonito. “Emprestar?”. “É”, ele disse, “no dia do juízo final eu vou te devolver”. No mínimo profético, o nome dele era Ítalo. O sofá vagou, nós sentamos e falamos sobre linguagem, as potencialidades e as restrições, sobre sensações, sobre como pensamos e traduzimos o mundo, a realidade. As horas passaram, a noite acabou. Ele não pegou meu número, eu não peguei o dele.
(N)o final, é sempre só sexo. Ou nem isso.
São todos broncos. Inabilmente, começam a falar sempre as mesmas asneiras e dão a impressão ou a certeza de que nunca se empenharam em conhecer ou tentaram aprender a despertar vontade e interesse. Não são nem semiconscientes da vida. As piadas são infames, os comentários não dizem nada, a voz intrincada é desagradável. E mesmo assim sorrio, respondo, deixo que se aproximem, que me toquem e mesmo que me beijem.
Dançando sóbria entre pessoas bêbadas, minha consciência do entorno não encontra outro caminho senão minha consciência dela própria e me sinto ainda mais sóbria, mais do que em qualquer outra ocasião, mais do que sempre. O álcool que me permito ingerir já não tem efeito algum além do decréscimo no saldo – e então eles passam a me rodear. Nos momentos em que questiono a humanidade, nossa capacidade de sermos mais do que pessoas bonitas ou feias, a existência de um método para se sentir verdadeiramente vivo. O resultado não poderia ser mais desastroso. Devastador. A tragédia das relações humanas notívagas.
Às vezes falo com alguns que, depois, me procuram na internet. Adicionam nas redes sociais, puxam papo, fazem perguntas, e quando vejo não estou em uma conversa, mas em um inquérito. Pacientemente, respondo. Algumas vezes, leio as mensagens na tela e espero uns dias para dizer o quanto ando ocupada, sem tempo para internet. Em outras, simplesmente não falo até que venha a próxima indagação. Eles demoram a desistir, sempre têm uma maneira a mais de importunar. Dou corda para ver até onde vão e até onde eu posso ir. Quanto interesse preciso fingir, quanto desinteresse posso mostrar, o quanto posso ser rude, o quão diretas, ou curtas, ou mentirosas, podem ser minhas respostas – o quão ignóbil eu posso ser e ainda ter um homem atrás de mim – quanto tempo eles levam para perceber.
Nunca aconteceu de valer a pena. Eu me acostumei a um padrão alto – todos que já dormiram na minha cama mais de uma vez são homens que vão além do óbvio. Estabelecemos outro nível de relação interpessoal. Experimentei com eles o gosto de ser o que sou, na maior medida em se pode ser o que se é na presença de outra pessoa. A surpresa de arrepios e batimentos irregulares. Ouvir e falar. Corações calmos. Com o resto, homens que na verdade não são homens, o êxtase é improvável ou impossível. Fica fácil rir, deprimir-se, perder a fé e a paciência, minha xícara transborda e eu sigo enchendo.
Numa noite, um veio até mim e perguntou se eu emprestaria um cigarro. Em algum momento, tirou o chapéu, pôs os cabelos para trás, e eu pude ver o quanto era bonito. “Emprestar?”. “É”, ele disse, “no dia do juízo final eu vou te devolver”. No mínimo profético, o nome dele era Ítalo. O sofá vagou, nós sentamos e falamos sobre linguagem, as potencialidades e as restrições, sobre sensações, sobre como pensamos e traduzimos o mundo, a realidade. As horas passaram, a noite acabou. Ele não pegou meu número, eu não peguei o dele.
(N)o final, é sempre só sexo. Ou nem isso.
Assinar:
Postagens (Atom)